1. Introdução
São Paulo, 29 de abril de 1980 (...) Eu estou lhes escrevendo a procura de um lugar ao sol... (...) Sabe, eu ando meio triste, assim cabisbaixo. Apenas muitos pensamentos, e gostaria que alguém me falasse das cores das flores molhadas de orvalho ao sol da manhã (...) Eu sou um gay assumido, mas ignorado, tratado como se fosse uma pessoa a mais num mundo de anonimato, isso me destrói. Eu acho que junto a vocês eu encontrarei gente com sensibilidade suficiente para me entender, me sorrir e me beijar. Eu estou saturado de tratar um mundo cheio de incompreensão e hipocrisia, com uma sociedade decadente e pútrida. Gostaria de me filiar ao Grupo Somos na certeza de ser (...). (Carta de Maurício. Em: ael/Unicamp)
Florianópolis, 11 de julho de 1981 (...) Fiquei realmente muito contente, criei alma nova, ao receber sua carta tão gentil, tão amável. De minha parte, (quando sempre tiver em condições) tudo farei para contribuir, nem que seja com uma pequena coisa, para (que) êste maravilhoso grupo se fortaleça cada vez mais e se propague além das fronteiras do nosso querido e amado Brasil. Êste grupo (...) será uma bandeira levantada nas mais altas alturas, em defesa dos oprimidos, indescriminados, marginalizados, sacrificados (...). Deveria haver maior amor, compreensão, respeito a classe homosexual. (Carta sem identificação. Em: ael/Unicamp)
Porto Alegre, 04 de agosto de 1981 (...) Gostaria muito de participar desse grupo, pois me sinto muito só e preciso saber que existem pessoas igua(is) a mim. Gostaria de saber o que debatem, o que fazem e como conseguiram reunir tantas pessoas que vissem interessadas em debater esse assunto. Tenho certeza que me ajudarão nesse momento não tão agradável de minha vida, pois como já disse sinto-me só. Certo de ser atendido, subscrev(am)-me sem mais. (Carta de James. Em: ael/Unicamp)
Três pessoas que procuravam mais de seus iguais, que se percebiam como homossexuais, escreveram essas cartas, deixando entrever suas situações pessoais de profunda solidão em diferentes cidades do Brasil, e ao mesmo tempo, buscando comunicação com um grupo organizado do incipiente movimento homossexual brasileiro. As três cartas foram enviadas ao Somos: Grupo de Afirmação Homossexual.2 Datadas do ano de 1980 e 1981, no período final da ditadura brasileira (1964-1985), elas fazem parte de um conjunto de cartas preservadas no Arquivo Edgard Leuenroth (ael), abrigado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (ifch) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nesse conjunto de missivas, muitas pessoas, de Norte a Sul do Brasil, escreveram seus conflitos pessoais, medos e angústias, ao mesmo tempo que expressaram sua solidariedade e esperança frente ao movimento político que estava sendo criado.
Ao (d)escreverem a si mesmos e o contexto de opressão no qual viviam, em diferentes partes do Brasil, os três depoimentos deixam ver algumas subjetivações sobre a ação política que estava sendo empreendida pelo grupo Somos e outros grupos de pessoas lgbtqia+ que estavam se formando. Essas correspondências nos direcionam para a discussão que propomos desenvolver neste artigo: a problematização da formação de algumas redes de lutas e empoderamento das sexualidades dissidentes brasileiras no final da ditadura, e a importância das correspondências para o estabelecimento e funcionamento dessas redes.
Atualmente parte das documentações do somos e de outros grupos organizados que atuaram nesse momento, como o Grupo de Ação Lésbico Feminista (galf)3 e o grupo Outra Coisa: Grupo de Ação Homossexualista4 estão preservadas e disponibilizadas no ael/Unicamp. É pertinente pontuar que o ael/Unicamp é considerado o maior arquivo de história social da América Latina5, e muitos de seus documentos só podem ser acessados presencialmente, assim, a digitalização feita pela equipe do Laboratório de Estudos de Gênero e História da Universidade Federal de Santa Catarina (legh/ufsc), em outubro de 20186, permitiu a exequibilidade desta pesquisa, mesmo com as limitações da distância e da pandemia de covid-19. Além dessas fontes, estamos utilizando duas entrevistas orais com ativistas e pessoas que viveram a ditadura, Marisa Fernandes e Fernando Seffner. As entrevistas fazem parte do acervo construído pelo legh/ufsc em suas pesquisas sobre gênero, feminismos e ditaduras no Cone Sul (Silva, Pedro e Wolff, 2018).
As cartas, além de conterem um riquíssimo conteúdo de histórias de vida e da formação de algumas organizações políticas em diferentes territorialidades do Brasil (Borges, Zacchi e Zandoná, 2019; Borges, 2021a), apresentam também depoimentos de parte de uma geração que, em plena ditadura, ousou desafiar e transgredir a moral e os bons costumes do regime (Quinalha, 2021). Em busca de ajuda e reconhecimento, muitas dessas pessoas começaram a procurar espaços possíveis para responder às suas angústias, medos e traumas em relação às suas condições marginais enquanto sexualidades dissidentes em uma sociedade brasileira autoritária e moralmente conservadora, pautada em uma heterossexualidade compulsória (Borges, 2021a).
Os trechos das cartas citadas acima, assim como as centenas de correspondências preservadas no ael/Unicamp, nos ajudam a compreender as amplas redes de resistências coletivas e individuais realizadas no período. A partir do estudo do conjunto documental disponibilizado pelo ael/Unicamp, assim como de algumas entrevistas realizadas pelo legh/ufsc e de bibliografias especializadas sobre o assunto, objetivamos neste artigo complexificar o debate sobre os desafios e as redes de resistências formadas pelas sexualidades dissidentes no recorte temporal da fundação do Somos em 1978 até 1985, com o início da redemocratização do país.
Procuramos destacar a agência das correspondências, no sentido da afirmação das identidades sexuais dissidentes naquele momento, e suas consequências políticas. Entendemos a categoria agência de forma ampla, e relacionada com o propósito da mudança social, tal como propõe Lois McNay (2000, p. 155). Saba Mahmood (2006, p. 123), sugere pensarmos a noção de agência humana não simplesmente como sinônimo de resistência em relações de dominação, mas como capacidade para uma ação criada e propiciada por relações concretas de subordinação historicamente configuradas. Mesmo sozinhas, e por muitas vezes, estigmatizadas e desrespeitadas por familiares e colegas, muitas pessoas expressaram nas cartas suas esperanças e encontraram nelas e nos movimentos organizados, nas publicações, nas sociabilidades e em outros espaços de ação política, propósitos que tiveram significados tanto em suas vidas pessoais, como no cenário político brasileiro.
Este artigo está dividido em duas partes. Em um primeiro momento, faremos um breve sobrevoo sobre a história da repressão no contexto latino-americano nesse momento, durante a Guerra Fria na segunda metade do século xx, dando destaque ao Cone Sul. Na segunda parte, nos centraremos sobre o papel dos discursos e das correspondências na luta política. Propomos investigar sobre duas principais questões, que se relacionam entre si. A primeira é entender como pessoas de diferentes lugares do Brasil e do mundo conseguiram os números das caixas postais dos movimentos organizados brasileiros, em uma época onde os sistemas de comunicação e informação em vigor não eram rápidos e de fácil acesso? A segunda questão é compreender como isso ocorreu em um período particularmente repressivo e autoritário, ao mesmo tempo fazendo parte de um processo maior de luta pela democracia. Por fim, ressaltamos as múltiplas possibilidades das fontes do ael/Unicamp e legh/ufsc para a construção de novas pesquisas sobre a dissidência sexual na ditadura, assim como do presente artigo para a construção de novas historiografias sobre o período.
2. Ditadura e dissidências sexuais e de gênero no Brasil
Nossa pesquisa se situa no passado recente do Brasil, que, como outros países da América Latina, viveu uma ditadura com liderança militar, apoiada por amplos setores da sociedade civil e baseada na Doutrina da Segurança Nacional, entre 1964 e 1985. A ditadura reprimiu violentamente os sindicatos de trabalhadores, os partidos e movimentos de esquerda, e também vigiou de perto os grupos feministas e homossexuais que se organizavam nessa época. A violência e a repressão incluíam o uso da tortura, de sequestros de pessoas, desaparecimentos, prisões, a censura a todos os meios de comunicação, às artes e a vigilância constante (Fico, 2017). Mas a ditadura brasileira também foi marcada por uma série de medidas que visavam penetrar no tecido social de forma propositiva, como foi o caso da inclusão de disciplinas e conteúdos nas escolas com conteúdo moral e cívico (como Educação Moral e Cívica), nas quais se ensinava, entre outras coisas, como deveria ser a família, como as pessoas deveriam portar-se, hábitos de higiene e valores patrióticos (Duarte, 2017).
É importante pontuar que a repressão no Brasil, ou mesmo no Cone Sul, não começou com as ditaduras, mas desde a colonização e posteriormente com suas formações nacionais. O historiador argentino Daniel Lvovich (2020) nos explica a importância da categoria violência estrutural como ferramenta analítica para se entender a repressão no Cone Sul, através de uma perspectiva de longa duração. De acordo com Lvovich, por muito tempo as ditaduras dos anos 1960 e 1970 foram consideradas como períodos excepcionais em relação à repressão estatal aos opositores políticos no Cone Sul, contudo o autor entende o período muito mais como um sintoma das desigualdades e da sofisticação do aparelho repressivo. Sobre esse debate, Franco e Iglesias (2011), Ortiz de Zárate (2020), Motta (2020), Bohoslavsky e Franco (2020) nos trazem em detalhes as potencialidades metodológicas para a pesquisa em história, de se desvencilhar de modelos cronológicos, defendendo uma análise multitemporal e transnacional sobre a repressão estatal na Argentina, Uruguai, Chile e Brasil.
As propostas das/dos autoras/es não vão no sentido de diminuir a intensidade da repressão política das ditaduras do Cone Sul, mas sim entender as permanências e transformações dos dispositivos repressivos ao longo do tempo. Nesse sentido, as/os pesquisadoras/as têm uma característica em comum: pensar em modelos analíticos e historiográficos que saiam da dicotomia democracia-ditadura para compreender a complexidade da história desses países. Esta questão é muito importante para o estudo da questão das sexualidades e gênero dissidentes, na medida em que a repressão a estas formas de existências não foram inauguradas pelas ditaduras, assim como mostram vários autores, entre eles Green (1999; 2012), Sempol (2013; 2015), Simonetto (2016), Quinalha (2021) e Borges (2021a; 2021b).
A questão da homossexualidade, além de ser considerada uma questão moral e contra os preceitos religiosos cristãos, aos quais as sociedades latino-americanas estavam vinculadas desde a colonização no século xv, no século xix, além dessa característica, tornasse também um problema científico e jurídico. Na ditadura, na segunda metade do século xx, a racionalidade médico-legal estava com um aparato muito mais consolidado e difundido. Nesse momento, médicos, psiquiatras, psicólogos e educadores sexuais, defendiam que, por um desequilíbrio hormonal, pessoas com sexualidades e identidades de gênero não heterocisnormativos poderiam desenvolver a criminalidade. Alguns médicos sugeriam a internação para curar a doença, enquanto outros defendiam que o Estado deveria policiar esses comportamentos «desviados». Nesse momento, qualquer outra identidade que se desviasse da heterossexualidade compulsória ou da cisgeneridade, era considerada uma depravação moral e doença mental, que precisava ser corrigida, tratada ou eliminada (Green, 2012). É importante pontuar que essa demonstração do higienismo7 não era nova nesses países, mas eram práticas, saberes e discursos sobre a sexualidade exercidas em boa parte do mundo ocidental (Foucault, 1984; 1988). Diego Sempol (2013; 2015) mostra a influência destes preceitos no Uruguai e na Argentina, neste período, e a sua importância para a forma como se tratava os e as homossexuais. Estas teorias circulavam o mundo e estavam presentes na Europa e por toda a América, já desde finais do século xix.
Um dos múltiplos exemplos de que não devemos esquecer desse momento, e que foi, e continua sendo em grande medida, uma prática estatal no Brasil e outros países da América Latina, é o abuso de poder realizado pelas polícias. Com base em preceitos do higienismo e com conteúdo moral e, ainda, dentro dos princípios da Doutrina de Segurança Nacional no pós-Segunda Guerra Mundial, a polícia brasileira, como a de outros países do Cone Sul, tinha como prática comum a repressão a grupos marginalizados, considerando-os como subversivos à família tradicional brasileira - como as travestis, homossexuais, prostitutas, negros, usuários de drogas, pessoas sem carteira de trabalho, religiões não cristãs... (Nicola, 2020). Essas pessoas eram presas, sem processo judicial, numa prática claramente totalitária, que através de vários mecanismos continua acontecendo. Nessa abordagem, se a pessoa tinha dinheiro, conseguia pagar a propina ou a fiança, e poderia sair prontamente. Nesse sentido, havia uma clara separação de classes, já que muitos/as não tinham como pagar. Muitas pessoas, caso não tivessem dinheiro, ficavam na cadeia submetidas a más condições e trabalhos forçados por alguns dias. No documento abaixo, parte da correspondência do grupo Somos, podemos refletir melhor a repressão estatal ocorrida na cidade e no Estado de São Paulo nesse momento:
CARTA ABERTA À IMPRENSA E À POPULAÇÃO
Novamente entrou em ação o aparato repressivo do delegado Wilson Richetti. Sábado dia 15/11, por volta das 23 horas foram invadidos bares e restaurantes: FERRO´S BAR, BIXIGUINHA e CACHAÇÃO.
No dia seguinte foi a vez do CHOPP ESCURO BAR e no dia 22/11 paralelamente ação repressiva abateu-se sobre a cidade Guarulhos e São Bernardo. Na totalidade foram presas cerca de 500 pessoas, sendo a maioria homossexuais; estivessem ou não munido de documentação, inclusive carteira de trabalho, o que não significa que possuir ou não qualquer documento de a polícia o DIREITO DE PRENDER CIDADÃOS. No caso de mulheres lésbicas foram indiscriminadamente levadas com seguintes argumentos: “VOCÊ SAPATÃO”.
FOI CONSTATADO QUE OS POLICIAIS RECEBIAM DINHEIRO PARA LIBERTAREM AS PESSOAS, sendo que aquelas que não possuíam lá permaneceram. Esta repressão é a continuação daquela que imperou na região do Largo do Arouche e adjacências no início deste ano e resultou na prisão de 15.000 pessoas e cujo nome foi popularizado pela imprensa “O RONDÃO DO RICHETTI”.
É imprescindível apontar que essas detenções interferiam ilegal e violentamente no direito de ir e vir das pessoas, além da invasão irresponsável de bares e restaurantes.
Estamos novamente as voltas com ação violenta da polícia, ação esta que mais uma vez ficará impune no que diz respeito às autoridades. DENUNCIAMOS NESTE DOCUMENTO ESSA VIOLÊNCIA E IMPUNIDADE E REPUDIAMOS TAIS ATOS. CONCLAMAMOS TODAS AS PESSOAS, ORGANIZAÇÕES, GRUPOS A SOLIDARIZAREM CONOSCO ATRAVÉS DE MOÇÕES, DIVULGAÇÃO DESSES FATOS EM TODOS OS MEIOS POSSÍVEIS DE COMUNICAÇÃO E ENDEREÇO DE ADVOGADOS DISPONÍVEIS PARA ATUAREM JURIDICAMENTE (somos, s/d, ael/Unicamp).
Casos como este, como já mencionado, não eram novidade na brutal realidade latino-americana marcadas pelo autoritarismo e pela corrupção. De acordo com a audiência da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo «Rubens Paiva», destinada a investigar a repressão às homossexualidades do período, as práticas de averiguação eram comuns na capital paulista8.
Embora essas práticas fossem comuns no período da ditadura, elas também ocorriam antes e depois. Durante a ditadura, o que foi diferente é que essa prática que há muito era utilizada na repressão às sexualidades e gêneros dissidentes e às prostitutas, passou também, a partir do Ato Institucional 5 (a versão brasileira do estado de sítio) a ser aplicada também para pessoas brancas, cisgênero, intelectuais ou militantes de esquerda, das classes médias ou trabalhadoras. Alguns militantes contam em suas memórias como era a convivência na prisão com estas pessoas e como isso foi importante para a sua compreensão do social (Maia, 1997, p. 100).
Desse modo, o espaço e as ruas são lugares por excelência das disputas de poder (Butler, 2018). Para além desses apontamentos, é interessante pensar que apesar da repressão, também haviam pessoas e movimentos organizados que estavam na luta, se solidarizando com o movimento homossexual brasileiro. A carta que citamos acima, denunciando o autoritarismo em São Paulo, foi assinada por diversos movimentos sociais do período:
TERRA MARIA - OPÇÃO LÉSBICA(,) GRUPO SOMOS DE AFIRMAÇÃO HOMOSSEXUAL C. Postal 22.196(,) GRUPO DE AÇÃO LÉSBICA-FEMINISTA C. Postal 293(,) COLETIVA ALEGRIA ALEGRIA, OUTRA COISA - GRUPO DE AÇÃO HOMOSSEXUALISTA C. Postal 8.906(,) GRUPO EROS C. Postal 5110(,) GRUPO LIBERTOS/ GUARULHOS C. Postal 132(,) GRUPO AUÊ/RIO(,) FACÇÃO HOMOSSEXUAL DA CONVERGÊNCIA SOCIALISTA(,) NÚCLEO DO PT DA MOÓCA(,) GRUPO SEIVA(,) MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO(,) ASSOCIAÇÃO DE MULHERES(,) NÓS MULHERES(,) BRASIL MULHER(,) SOS MULHERES(,) FRENTE FEMINISTA DE MULHERES(,) DEPARTAMENTO FEMININO DCE - USP(,) JORNAL ‘O TRABALHO’(,) JORNAL ‘EM TEMPO’(,) JORNAL ‘O INIMIGO DO REI’(,) FEDERAÇÃO PAULISTA DE CINE-CLUBES (somos, s/d, ael/Unicamp).
Diante dessas alianças e solidariedades, se percebe que, para além da repressão, também havia a construção de uma rede de apoios, que apesar dos múltiplos conflitos, se fez de forma interseccional com vários setores da sociedade brasileira.
Também é importante lembrar que a construção dos movimentos homossexuais no Brasil não era uma questão isolada. Já desde os anos 1960 que vários movimentos se organizavam nos Estados Unidos, Europa e na América Latina. Na vizinha Argentina, o país portenho já estava na vanguarda do cenário político latino-americano com o Grupo Nuestro Mundo, em 1967, e a Frente de Liberación Homosexual Argentina, em 1971 (Simonetto, 2017; Insausti, 2019). No mesmo ano de 1971, no México, se funda a Frente de Liberación Homossexual Mexicana (Simonetto, 2017). No Chile, o primeiro grupo conhecido, ainda que não fosse um movimento social organizado com muitos participantes, foi o Integración, que se formou em 1977 (Robles, 2008). As pessoas e as ideias circulavam, e, assim como o feminismo, os movimentos homossexuais foram se formando, apesar das dificuldades, da repressão e das ditaduras. E, mesmo não sendo reconhecidos pelos grupos de esquerda, tiveram um papel importante na configuração destas sociedades na construção da democracia.
Na parte seguinte do artigo, vamos nos debruçar sobre o papel dos discursos e das cartas na construção das ações políticas realizadas pelas sexualidades dissidentes durante o período, no final da ditadura no Brasil.
3. Escritas de si: discursos e redes de luta
Historicamente, o que se fez estabelecer como movimento homossexual pode ser descrito como um exemplo de um complexo campo de discurso. Nesses, a formulação do direito de expressão da homossexualidade manifesta uma modalidade de sujeito que faz dela o projeto referenciador de sua identidade social (Souza, 1997, p. 34).
A citação do linguista brasileiro Pedro de Souza (1997), fruto de sua tese de doutorado, intitulada Confidências da Carne: o público e o privado na enunciação da sexualidade, nos ajuda a pensar sobre a importância da linguagem para a estruturação da identidade sexual. Em sua investigação doutoral, Souza fez uma pesquisa de campo no ael/Unicamp, em que analisou as cartas dirigidas ao Somos. Através dessas fontes, Souza (1977) discute em sua pesquisa que o movimento homossexual vem historicamente lutando e conquistando, tanto no espaço público, quanto no privado, maiores espaços de fala para advogar seu direito legítimo de expressar livremente sua sexualidade, seus afetos e suas expressões de si, desafiando, assim, as fronteiras desenhadas institucionalmente pelos setores cristão-médico-jurídicos nos corpos. Não só a homossexualidade masculina, mas outras sexualidades não normativas vêm reivindicando e lutando historicamente por reconhecimento e igualdade (Cowan, 2021; Lopes, 2016; Fernandes, 2018b).
De acordo com o linguista brasileiro, foi através dos movimentos organizados, que propunham um discurso coletivo de afirmação e de aceitação da sexualidade, que muitos homossexuais se encorajaram a «se assumir e sair do armário». O sujeito ao aceitar-se e confessar-se9 enquanto homossexual, legítima e empodera tanto o discurso coletivo de afirmação da homossexualidade, quanto no âmbito privado e individual, encontrando, assim, a possibilidade de politizar o eu. Nesse sentido, historicamente os discursos de afirmação sobre a sexualidade vêm se constituindo como ferramenta de politização da identidade social (Souza, 1997).
Com relação às cartas enviadas no período, destacamos o papel extremamente transgressor da formação política das sexualidades dissidentes na ditadura brasileira, que estava pautada em valores como a família tradicional, Deus e Pátria. Esse tipo de discurso, que volta a ter repercussão na atualidade a partir de grupos que se remetem à ditadura como um momento em que reinava a ordem, justamente essa ordem patriarcal, cisheteronormativa e autoritária. Para Souza, as correspondências teriam um elemento intertextual com «um funcionamento enunciativo, ou seja, como uma maneira, através de certas formas de linguagem, os indivíduos tornarem-se sujeitos de sua transgressiva prática sexual» (Souza, 1997, p. 49).
Para a filósofa estadunidense Judith Butler (2018), a linguagem está intrinsecamente ligada a performances discursivas e corpóreas de resistências e empoderamento. Butler nos ajuda a pensar que a performatividade sobre determinada identidade social é fundamentalmente caracterizada por esses «enunciados linguísticos que, no momento da enunciação, faz alguma coisa acontecer ou traz algum fenômeno à existência» (Butler, 2018, p. 32). E, de certa forma, estas cartas nos permitem vislumbrar esse acontecimento, o da construção de uma consciência, e uma performatividade de uma existência em um momento de negação e proibição de sua enunciação em várias instâncias sociais e políticas. E nos ajuda a pensar estas cartas como agência, ou seja, mesmo sendo ações individuais, no contexto em que estão inseridas, elas adquirem sentido político (Ortner, 2006, p. 51).
Os relatos individuais e as confissões presentes nas cartas enviadas ao somos e a outros grupos, nos mostram que a consciência de si e a anunciação passavam por complexos processos emocionais, políticos e morais (Souza, 1997). Nessa perspectiva, uma das propostas dos movimentos homossexuais e lésbicos, nesse momento, foi a realização de pequenos grupos de reflexão ou de conscientização para debater as desigualdades do cotidiano. No somos, por exemplo, esse formato de auto-conscientização teve o formato de «Grupos de Reconhecimento» (Green, 2018). Esses grupos foram um dos pilares internos dos movimentos para discutir dialogicamente sobre o processo de opressão e de aceitação. Nesses espaços, que se pareciam muito com os «grupos de consciência» feministas, as pessoas contavam suas experiências, falavam de suas dificuldades, e se reconheciam nos relatos uns dos outros, formando uma noção de coletivo, de que suas experiências eram compartilhadas. De certa forma, valia para esses grupos também a palavra de ordem feminista: o pessoal é político.
Essas práticas, conhecimentos e metodologias de autopercepção, consciência e agência contra as relações de poder do cotidiano foram comuns em discussões nos movimentos sociais com matrizes feministas, sobretudo dos anos 1970. De acordo com Sara Ahmed (2015), a terapia feminista e os grupos de reflexão/consciência foram fundamentais para agir politicamente no âmbito individual e coletivo contra experiências e sentimentos traumáticos vividos no dia a dia. Desse modo, esses espaços feministas buscaram debater e ressignificar os machucados decorrentes das relações de poder estruturais nos corpos (Pedro, 2012).
Além disso, uma das alternativas para ampliar a rede de lutas, conforme aponta Souza (1997), foi a manutenção de um setor de correspondência dentro dos movimentos organizados. Sobre esse funcionamento dos grupos organizados para reflexão da opressão, Marisa Fernandes (2018a), historiadora brasileira e ativista lésbica que participou do somos e do galf nesse momento, atuando no setor de correspondências, nos conta que ela:
tinha uma missão, que era por exemplo responder às cartas. Eu gostava muito de ver como estava sendo a repercussão. Sempre muito pesquisadora, assim, minha cabeça sempre... e tal. E tinha cartas que diziam «eu ia me matar». No sertão do sertão, aquelas cidadezinhas do norte e nordeste, e... «mas eu sei que agora eu não estou sozinha». (...) Mas também não podia ir no nome delas, vocês tinham que ver as cartas que elas mandavam. Dos cuidados, porque tinham carimbo, né? «lf» ou «galf», né? Não! Sabe, era toda uma estrutura montada tanto pro envio, quanto (faz gesto com a mão de volta, indicando «recebimento»). Às vezes era para o endereço, ou para uma outra caixa postal, que ela abria numa outra cidadezinha. Mas chegava, né? Então foi muito importante. Quando você pode falar que você salvou vida... (p. 25).
Conforme Souza (1997) e Fernandes (2018a), as cartas serviam como uma alternativa relativamente segura para as pessoas (d)escreverem suas opressões, traumas e desejos em um contexto extremamente autoritário e ditatorial. Conforme aponta Fernandes (2018a, p. 25): «todos os grupos do Brasil tinham uma caixa postal, todos os grupos feministas. Porque a gente tinha muito medo da ditadura. E mesmo assim, chegou bilhetinho. Ameaçando. Sabe?» (Fernandes, 2018a, p. 25). Ou seja, nas caixas postais apareciam bilhetes com ameaças. É preciso lembrar que, mesmo nesse período final da ditadura brasileira, que depois de 1979 já não havia censura oficial à imprensa, mas ainda havia muito medo da repressão, que ainda monitorava regularmente grupos de esquerda, grupos feministas e outros grupos considerados “subversivos” (Duarte, Silva e Santos, 2019; Lopes, 2020).
Nessa ótica, como, mesmo dentro de um brutal contexto de repressão, censura e medo, sexualidades dissidentes de Norte a Sul do Brasil, e internacionalmente, conseguiam o endereço postal dos movimentos organizados brasileiros?
De acordo com as nossas análises sobre as documentações do ael/Unicamp e de entrevistas realizadas pelo legh/ufsc, com pessoas que viveram o período, nós levantamos algumas respostas. A primeira, conforme indicado por Marisa Fernandes (2018a), é a circulação de periódicos, que divulgavam as caixas postais dos movimentos organizados. O jornal O Lampião da Esquina, por exemplo, é um exemplo de um jornal alternativo que, mesmo com muitas dificuldades, conseguiu chegar a bancas de jornais de algumas capitais brasileiras (Borges et al., 2019). De acordo com Popadiuk, Schmitt e Karina Woitowicz (2019, p. 64), alguns jornais feministas da época, neste caso o boletim Chanacomchana, produzido pelo galf, reservavam uma coluna de cartas «para que as leitoras possam fortalecer canais de diálogo e expressão em torno dos assuntos abordados e do próprio movimento». Esses e outros espaços foram fundamentais para a organização de redes de comunicação dentro dos movimentos feministas. O Chanacomchana, também teve esse papel de chegar a alguns rincões do Brasil, conforme a fala de Marisa Fernandes (2018a):
O Chanacomchana, ele vai começar a circular em 83 (...). Ele vai atingir lugares no Brasil, porque divulgava caixa postal, isso é bom falar (...). Nós tínhamos uma caixa postal. (...) Porque nos documentos a gente põe a caixa postal para divulgar o grupo, né? Porque era adesão. E no jornal também. Então elas compravam, faziam assinaturazinha, tudo em cruzeiro, né? (p. 25).
Nesse sentido, Marisa complementa, através da sua experiência dentro do galf, como o Chanacomchana conseguia chegar a várias localidades através de laços de amizade e luta:
olha, veio tanta lésbica, gente, que eram moradoras do nordeste, que vieram para São Paulo, para entrar no lf, mulheres que já estavam, por exemplo, já tinham terminado a faculdade. E vinham para São Paulo, e entraram no galf, entrava no lf, sabe? Muita gente deixava sua terra natal e vinha para cá, e daí lógico, né? Você tem suas amigas lá... Eu não sei qual era a dinâmica, mas chegava. (Fernandes, 2018a, p. 26)
Além disso, segundo ela, outro acontecimento importante para a divulgação destas redes foi a participação de uma das participantes do galf em um programa de televisão de grande audiência:
Quando a Roseli dá entrevista na Hebe Camargo, ela fala por duas vezes, ela mostra o Chanacomchana, e por duas vezes ela dá o número da caixa postal da galf. E nenhum programa tinha a audiência que tinha o da Hebe Camargo na tv Bandeirantes. Era um... Sei lá hoje quem é que tem audiência maior, se é Faustão, não sei quem é. Mas era, a maior audiência era a Hebe Camargo. E aquilo passava no Brasil inteiro, então as pessoas, imagina se eu sou uma lésbiquinha alí, se eu não podia escrever eu decorava, né? A caixa postal (risos). Óbvio, né? E foi por isso, inclusive, que o programa dela, a censura, o censor federal que atuava em São Paulo proibiu, fez aumentar a faixa etária, subiu. Se era quatorze anos, fez aumentar para dezesseis, porque era imoral aquele debate que teve, e porque divulgou o grupo. (Fernandes, 2018a, p. 26)
Com essas e outras dinâmicas e redes de informação, sexualidades dissidentes de todo o Brasil10, e também internacionalmente11, puderam manter contato com o movimento homossexual e lésbico brasileiro. Outro ponto interessante, conforme o depoimento do historiador brasileiro Fernando Seffner (2019), foram as redes de amizades com pessoas que tinham acesso a revistas e informações sobre os movimentos sociais nacionais e internacionais. Segundo Seffner, as sociabilidades foram fundamentais para essa construção de redes. Muitos levavam e traziam revistas nas malas, e quando viajavam transportavam essas informações para diferentes locais.
Além disso, os encontros nacionais e regionais dos movimentos organizados foram fundamentais para aumentar essa rede de contatos no início da década de 1980, ainda sob a ditadura, como no I Encontro de Grupos de Homossexuais Organizados (egho), no ii egho, na I Conferência Nacional dos Homossexuais da Convergência Socialista, no I Encontro dos Homossexuais Organizados do Nordeste (eghon), no I Encontro Paulista dos Grupos Homossexuais Organizados (epgho) e no I Encontro de Negros de Negros do Norte e Nordeste12.
Nas coleções disponibilizadas no ael/Unicamp, as cartas demonstram não só parte da luta coletiva e dos movimentos sociais do período13, mas também de algumas resistências no âmbito privado e individual, como, por exemplo, de pessoas procurando se aproximar dos movimentos organizados. Desse modo, as cartas serviam tanto como pontes para construir um lugar enunciativo de expressões de si e de subjetividades no sentido privado, que até então estavam na clandestinidade e não tinham sido ouvidas, quanto para formações discursivas coletivas e públicas sobre aceitação e militância (Souza, 1997). Nesse sentido, o ael/Unicamp, ao preservar e disponibilizar essa documentação histórica, pode ser considerado um lugar de memória e de luta das sexualidades dissidentes (Zacchi e Borges, 2020; Borges, 2021a).
Nesse período, apesar do contexto especialmente repressivo da ditadura, foi possível o início da organização política das sexualidades dissidentes brasileiras. Face aos diferentes tipos de repressão presentes naquele momento, essas redes de comunicação foram fundamentais para a articulação de lutas em diferentes territorialidades do Brasil e do mundo (Imagem 1). Isso está relacionado com o contexto global desse período do final dos anos 1970 e início dos 1980, quando os movimentos lgbtqia+ estavam se organizando em muitos países e reivindicavam reconhecimento de suas lutas contra os preconceitos e a violência a que estas pessoas estavam submetidas (e ainda estão). Entretanto, somente na década de 1990 essa discussão chega às Nações Unidas, a partir da noção de Direitos Humanos, e somente em 2011 passa a figurar nas declarações deste organismo (Langlois, 2018).
Fonte: Elaboração de Luiz Augusto Possamai Borges, com base nas cartas pesquisadas no Arquivo Edgard Leuenroth
De nossa perspectiva, os estudos sobre os feminismos e as organizações homossexuais do período da ditadura, abrem uma nova janela sobre esse período, que permite uma melhor compreensão dos processos de redemocratização, e dos limites da democracia brasileira, que se evidenciam no momento atual. Essa historiografia dos feminismos e dos movimentos lgbtqia+ é bastante recente, mas tem produzido muitos trabalhos e dentro de alguns anos será possível ter um panorama bastante amplo sobre a vida destes grupos que estiveram apagados da escrita da história brasileira por tanto tempo (Rodrigues, Veras e Schmidt, 2021).
Ao tomarmos em conta a complexidade que envolve as diversas fontes do ael, repletas de historicidades e subjetividades de múltiplos/as sujeitos/as, perpassada por diversas marcas de poder em seus corpos, destacamos o papel deste arquivo como esse lugar privilegiado para pensar a memória de diversas pessoas que (r)e(s)xistiam e lutaram durante a ditadura (Borges, 2021a). Apesar do medo e da clandestinidade, essas pessoas, de norte a sul do país, resistiram e formaram redes de lutas e solidariedades, seja através das cartas, dos jornais, dos afetos e da própria sociabilidade com a comunidade e o movimento organizado no período (Green, Quinalha, Caetano e Fernandes, 2018; Borges et al., 2019).
As cartas enviadas a estes grupos militantes, são documentos particularmente ricos, na medida em que mostram o cruzamento entre a liberação e politização da sexualidade e as trajetórias e angústias individuais dos correspondentes. Segundo Pedro de Souza (1997, p. 46): «as cartas enviadas ao Somos valem como documento dessa breve história da homossexualidade como um fator de consciência de si».
4. Conclusão
Manaus, 18.06.81 (...) É realmente, muito bom, receber correspondências de vocês. Me sinto completo, quando percebo que já estou no sol de uma turma como essa: maravilhosa.(...) Bicho! Adorei o trabalho que vocês tem movimentado, em prol de nosso lugar ao sol. Nessas horas, é que eu gostaria de morar em SP, para me manifestar com vocês. O jornal «o corpo», já deveria ter passado da etapa experimental: é fantástico, e tem tudo para fazer a cabeça de muita gente. Vocês estão de parabéns, a poder colocar em máxima circulação esse boletim esplêndido (...). Bem, a vida de uma homossexual daqui, de Manaus, não é tão agitado, como a vida dos homossexuais daí de fora. O pessoal daqui é bastante parado: não se manifesta, sem impulso para reivindicar. Temos apenas um «baile»: a «Amazon-Gay», que é um espetáculo, todavia essa funciona no fim de semana. O nosso cinema é o «Guarany». Na Praça da Matriz é que se concentra a turma de em geral. Travestis, bissexuais e outros, se cruzam nesta praça, que quase não recebe a visita da polícia. É um sossego! Bem, contato aberto e, vamos em frente com a nossa nova amizade. Disponha sempre! Um beijo e um abraço do novo amigo». (Carta com assinatura ilegível. Em: ael/Unicamp)
Finalizamos este artigo refletindo sobre esta carta enviada ao grupo somos por uma pessoa de Manaus, extremo Norte do Brasil. Nela, assim como em tantas outras enviadas, entendemos que apesar da distância, pessoas de várias partes do Brasil tiveram contato com os movimentos organizados do período. Apesar de ser uma cidade conservadora, percebemos nesta pesquisa que em Manaus, assim como outras cidades brasileiras, havia alguns espaços para viver as sexualidades dissidentes, que apesar de clandestinos, eram lugares importantes para a formação de sociabilidades e de afetos sem o importuno ou censura da polícia ou da sociedade autoritária. Além disso, essas correspondências demonstram a materialização de algumas resistências em todas as regiões do Brasil, não só no eixo Rio-São Paulo, mas também em várias capitais e cidades interioranas do país.
Para Butler (2018), a mobilização social é uma prerrogativa básica para a emancipação frente às relações desiguais em nossa sociedade, e o que tentamos mostrar é que essa mobilização aconteceu mesmo durante o período de ditadura (1964-1985), e uma das maneiras pelas quais as pessoas de todo o país conseguiam se conectar a esses movimentos era através de correspondências. Através das cartas, da leitura de jornais, de grupos de reflexão e das sociabilidades, buscaram os meios possíveis para compreender e ressignificar suas angústias, medos e traumas na procura de saúde mental e de empoderamento no anseio da arte do bem viver.
Desse modo, os grupos, as cartas, as amizades, as sociabilidades, os afetos, os jornais e outros meios tiveram um papel fundamental de articulação política nesse momento, servindo como um «lugar enunciativo onde o indivíduo subjetiva-se na ordem da relação consigo mesmo, que interfere e se deixa interferir por diferentes formações discursivas» (Souza, 1997, p. 111), resultando, por suposto, em lutas sociais, culturais e políticas sobre suas existências.
Ao nos orientarmos a novas perspectivas sobre a ditadura brasileira, optamos por uma direção epistêmica feminista que não só analisa a natureza das relações de poder e opressão do período ditatorial para com as sexualidades dissidentes, mas, também, que historiciza as cartografias das redes de resistências formadas por essas populações. Para compreender essas existências, os afetos, as subjetividades e as emoções têm um papel fundamental, e as cartas de todas essas pessoas são fontes privilegiadas para isso (Wolff, 2021).
O Brasil ainda hoje é lugar de imensa e intensa violência contra os corpos lgbtqia+14, exacerbada pelo crescimento de uma onda conservadora que coloca no centro de seu discurso o ideal de uma família cis-hetero-patriarcal que exclui as sexualidades e gêneros dissidentes como se ameaçassem todo o sistema. No Brasil atual, como no período estudado aqui, as sexualidades e identidades de gênero dissidentes adquirem um sentido político de resistência ao discurso fascista presente em redes sociais, igrejas, e mesmo em órgãos governamentais. Estamos em outro momento, os movimentos estão mais organizados, atuantes, temos algumas/ns vereadoras/es, deputadas/os e senadoras/es comprometidas/os com as pautas lgbtqia+, e várias vitórias no campo das leis e das decisões judiciárias, conseguidas em anos anteriores e mantidas a custo de muita mobilização e resistência.
Por isso a importância dessa memória, da construção de uma história desses sujeitos que foram obliterados da historiografia, e que, com o acervo do ael, ganham efetividade na construção histórica do Brasil, e de uma cultura e sociedade que esteja aberta às dissidências, ao respeito às diferenças e aos direitos humanos. As cartas são testemunhos de que essas pessoas existiam, pensavam, se organizavam, e afirmavam suas identidades diversas, na certeza de ser…