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Revista Uruguaya de Ciencia Política

versión impresa ISSN 0797-9789versión On-line ISSN 1688-499X

Rev. Urug. Cienc. Polít. vol.31 no.1 Montevideo jun. 2022  Epub 01-Jun-2022

https://doi.org/10.26851/rucp.31.1.2 

Artículo original

Dissidentes sexuais e de gênero e a ditadura civil-militar brasileira: entre a Memória Política e as memórias cotidianas

The brazilian and civil-military dictatorship the sex/gender dissidents: between the Political Memory and the everyday memories

1Universidade de São Paulo / Acervo Bajubá yurifraccaroli@gmail.com


Resumo:

Iniciado com uma breve retomada do contexto histórico e legislativo que marca as dificuldades da constituição da Comissão Nacional da Verdade (cnv) no Brasil, o artigo recupera concisamente a articulação da temática «Ditadura e Homossexualidades» na cnv. Reconhecendo a importância dessa memória política em construção, o artigo se propõe a dialogar com esse campo a partir de duas reflexões principais: a) a crítica da escolha do termo «homossexualidades» como significante para se referir à totalidade de identidades e expressões de gênero e de sexualidade dissidentes perseguidas politicamente no período; b) na esteira das discussões sobre o uso do conceito de resistência nas histórias/memórias da ditadura civil-militar brasileira, refletir sobre outros comportamentos e relacionamentos dos dissidentes sexuais e de gênero com a ditadura, com foco no que foi lembrado por seis testemunhos.

Palavras-chave: memória lgbt; ditadura civil-militar brasileira; homossexualidades; lgbt.

Abstract:

Started with a brief description of the historical and legislative context that frames the constituency difficulties of the National Truth Comission (ntc) in Brazil, the article seeks to concisely recover the articulation of the topic «Dictatorship and Homosexualities» in the ntc bulge. Based on the recognition of the importance of this political memory in construction, the discussion intends to propose a dialogue with this field from two reflections: a) a critique of the choice of the term «homosexualities» as a significant to refer to the totality of dissident gender and sexuality expressions and practices politically persecuted in that period; b) considering current studies that verse about the concept of resistance’s use in the memories/histories of Brazilian civil-military dictatorship, the article aims to explore other behaviors and relations between the sex/gender dissidents and the dictatorship, emphasizing the everyday memories recovered by six testimonies.

Keywords: lgbt memory; Brazilian military dictatorship; Brazil; homosexualities; lgbt

1. Introdução

De modo distinto ao ocorrido em alguns dos países vizinhos que também vivenciaram anos de regimes ditatoriais na segunda metade do século xx, o acerto de contas com o passado da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) ainda esboça tímidos avanços. Como retrato desse contexto, a Comissão Nacional da Verdade (cnv) foi instituída apenas trinta anos após o fim da ditadura.

De um ponto de vista jurídico, cabe destacar que anteriormente à promulgação da lei 12.528/2011, que sancionou a cnv e suas diretrizes (iniciada somente em 2012), um grande número de processos já tramitava na Justiça Brasileira, em movimentos marcados por idas e vindas motivadas por interpretações divergentes de dispositivos jurídicos e de mudanças na legislação que estabelecia as regras de acesso aos arquivos de Estado. Entretanto, grandes avanços na questão ocorreram no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores, pt) e principalmente no de Dilma Vana Rousseff (pt), quem desde seus tempos na Casa Civil tratava da questão. Assim, pode-se afirmar que durante os governos petistas houve «o aprofundamento de uma política de memória do Estado, calcada na memória hegemônica, crítica ao regime militar e tributária da cultura democrática” (Napolitano, 2015a, p. 32).

Esse contexto peculiar às discussões sobre o recente passado político brasileiro é reconhecido por Green e Quinalha (2015, p. 17) como um dos principais aspectos que contribuíram à articulação na cnv2 das discussões sobre as ações de violência que tiveram diretamente as «homossexualidades» como alvo persecutório do Estado, resultando em maior visibilidade ao tema com sua inclusão em texto exclusivo no volume II (Textos Temáticos) do Relatório da cnv (Brasil/cnv, 2014), sob o título «Ditadura e Homossexualidades».

Articuladas em algumas Comissões Estaduais, essas ações tiveram como objetivo elucidar a atenção que a chamada questão do «homossexualismo» despertava nos órgãos de segurança pública nacional e o consequente impacto sob a vida cotidiana, indicando a necessidade de ações de reparação, posto que suas marcas remanesceriam no atual tecido social brasileiro (Brasil/cnv, 2014, p. 301).

Por mais que já existissem registros e ações pelas histórias e memórias das dissidências à cis-heteronormatividade em diversos locais do território brasileiro, pode-se dizer que esse movimento de formação de uma memória especificamente política fomentou uma nova onda de pesquisas e interesses pela temática, enunciando certas perspectivas de enquadramento dessas memórias e, consequentemente, novas escritas da história da ditadura. Ou seja, se o olhar ao passado histórico foi pautado pela memória social em movimento, essa, por sua vez, foi tocada por ações de escrita da história (Napolitano, 2015a).

A publicação do livro Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade (d&h) (Green e Quinalha, 2015), além de permitir o aprofundamento em questões presentes no Relatório da cnv, certamente desempenhou um papel relevante na construção e difusão de tal perspectiva de olhar ao passado. Pode-se dizer que pelo suficiente embasamento historiográfico e pelo rigoroso trabalho analítico, o livro consolida a construção de uma perspectiva política geral das experiências de repressão aos indivíduos que hoje entenderíamos como lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queer, intersexuais e assexuais (lgbtqia+) na ditadura. Entretanto, alguns de seus aspectos merecem certa consideração crítica.

Busco neste artigo argumentar por outras chaves de leitura do período a partir de duas críticas que me parecem centrais para tencionar alguns dos limites desse movimento por história/memória dos dissidentes à cis-heteronormatividade na ditadura, ciente de seu necessário essencialismo estratégico (Spivak, 1985) e das memórias que dele foram ensejadas, mas cauteloso com a pretensão de verdade em alguns de seus enquadramentos, reconhecendo também outros modos de vivenciar, perceber e/ou narrar o período.

A primeira crítica se refere à escolha da categoria «homossexualidades» como significante da totalidade de sexualidades, expressões e identidades dissidentes à cis-heteronormatividade no período. Essa escolha é baseada no entendimento dos autores do entendimento identitário hegemônico à época: «a verdade é que a travestilidade e a transgeneridade eram vistas, nesse momento histórico, hegemonicamente como formas de homossexualidade, daí esse emprego da palavra no plural» (Green e Quinalha, 2015, p. 11). Entretanto, tomando como embasamento teórico alguns dos capítulos da própria coletânea, essa pretensa verdade enunciada seria dificilmente sustentada, uma vez que os próprios arquivos consultados e citados se referem de forma específica a travestis, por exemplo.

Análises como as de Vieira e Fraccaroli (2018), Veras (2019), Moira (2021a), Afonso-Rocha (2021b) corroboram à compreensão da polifonia dos processos de construção identitária e das possibilidades de vivência cotidiana das sexualidades e identidades dissidentes nesse período, erodindo qualquer ideia de fixidez tal como formulada pelos propositores do tema na cnv. É preciso apreciar as diferenças em termos de exposição à violência do Estado e também aquela perpetrada pela sociedade civil, o que leva à necessidade de considerar os riscos assumidos ao se considerar a categoria «homossexualidade»” como «bloco homogêneo de experiência histórica comum» (Simonetto, 2018, p. 30).

Já a segunda crítica se constitui em relação ao uso do binômio “repressão/resistência”, que recentemente tem sido objeto de crítica por alguns historiadores da ditadura. Rollemberg (2016, p. 91) observa um desequilíbrio entre a produção acadêmica sobre a «resistência» em relação a pesquisas que versam sobre outros temas e perspectivas do período, entre as quais, as que tratam daquilo que a autora entende como «nossa zona cinzenta», composta pelas «posições e os comportamentos ambivalentes da maior parte da sociedade entre os extremos da resistência» (p. 91).

No que tange o objeto em discussão, ao elucidar os principais dispositivos jurídicos, teóricos e políticos por parte do Estado que fundamentavam suas ações persecutórias (repressão), e citar as principais movimentações de contestação por parte de grupos militantes do então Movimento Homossexual Brasileiro (mhb) e de algumas ações individuais (resistência), a centralidade que o binômio repressão/resistência tem nas narrativas desse campo traz como inerente limite a invisibilização de outros padrões de comportamento e relação dos dissidentes com a ditadura. Como afirma a própria introdução de d&h (Green e Quinalha, 2015, p. 23), havia setores sociais, principalmente das classes médias, que não estavam dispostos a problematizar a ditadura, e muito menos ocupar os mínimos espaços de participação política do então mhb, contentando-se com os espaços de sociabilidade existentes e as possibilidades de criar sua rede de amigos e/ou amigas (Green e Quinalha, 2015, p. 23).

Ainda que os autores elucidem que esse posicionamento seria resultado do medo gerado pela criação de «muitos gays e lésbicas» na ditadura, pouco ficamos a saber sobre tais padrões de comportamento e as relações com a ditadura para além da figura do respeitável militante e do frequentador do gueto (MacRae, 1982) ou da repressão às travestis em São Paulo durante as operações do delegado José Wilson Richetti - sendo até recentemente narradas apenas em terceira pessoa.

Como compreender, portanto, as relações múltiplas, ambivalentes, mutantes e complexas (Rollemberg, 2016, p. 93) entre os dissidentes de sexo/gênero e a ditadura civil-militar brasileira? Haveria, por exemplo, «resistência» nos espaços de sociabilidade e outros espaços para além dos priorizados pelo campo? Entre os extremos, haveria estratégias de negociação? O que seria a «zona cinzenta» nesse contexto e qual seu real peso? E, por fim, como indagar os limites desta memória política sem com isso aderir ou reforçar certo revisionismo liberal da história da ditadura civil-militar brasileira (Napolitano, 2015b, p. 105)?

Intenciono contribuir com esse importante campo em construção, a partir dos dados de uma pesquisa conduzida entre 2017 e 2019 (Fraccaroli, 2019), que se posicionou justamente nessa «zona cinzenta», indagando sobre as experiências cotidianas e as valorações políticas do período de entrevistados autoidentificados como homens gays, bichas e/ou homossexuais e que não militaram nos grupos do mhb. Considero, por um lado, a diversidade de relações entre a ditadura e os indivíduos dissidentes à cis-heteronormatividade e, por outro, os já mencionados limites da noção de «homossexualidade» enquanto categoria de análise histórica.

Para tanto, a partir de uma mirada psicossocial, historicamente situada, trato de colocar em diálogo as cenas que continuam vivas na memória daqueles que vivenciaram esse contexto em posições que, por vezes, confundem o binômio repressão/resistência. Como estrutura para a discussão, após breve seção metodológica, proponho uma argumentação marcada por três chaves de reflexão que foram recorrentes nos testemunhos orais, concernentes:

  • (i) às visões e percepções políticas da ditadura no cotidiano;

  • (ii) às exposições diferenciais à violência policial em razão das diferentes identidades e expressões de gênero e de sexualidade dissidentes;

  • (iii) às ambivalências, complexidades, negociações e outras formas de «resistir» e viver a ditadura que compõem essa «zona cinzenta»

.

Por fim, busco retomar os dois questionamentos inicialmente formulados para propor o entendimento dessa construção de memória política enquanto um «agenciamento coletivo de memória» (Lifschitz, 2014). Por meio dessa conceituação, trato de refletir como desde seus enquadramentos, mas também desde suas críticas, podemos avançar em uma «melhor compreensão de um tempo histórico» (Napolitano, 2015b, p. 105) ao pluralizar e ampliar não apenas as perspectivas teóricas e fontes de pesquisa, mas também as próprias possibilidades interpretativas do arquivo, concomitantemente à participação de subjetividades e práticas outras nas inerentes discussões sobre o passado no presente.

2. Breves considerações teórico-metodológicas

Na empreitada por outras narrativas, o desafio que se apresentou foi duplo. Ainda que a memória seja um dos mais potentes modos de pensamento, faz-se mister que sua ação esteja vinculada a um quadro de referências preestabelecido (Arendt, 2018, p. 31) e que tomemos cuidado quanto ao que se tem chamado de «dever de memória», o que segundo Didi-Huberman (2017, p. 94) é «objeto de tanto abuso, (que) consiste em fazer da dor uma obrigação, uma palavra de ordem, um capital psíquico, um fundo de investimento político (...) uma própria maneira de desvalorizar a dor dos outros».

Destarte, entre dados históricos, arquivos pesquisados e as memórias narradas por seis depoentes, a pesquisa adotou uma abordagem qualitativa, exploratória e dialógica (Jardim, 2016), metodologicamente orientada pela noção da pesquisa-participante (Gonçalves Filho, 2003). Nesse sentido, vale dizer que o movimento de escrita priorizou e partiu dos testemunhos produzidos no marco desse trabalho. Foram seis testemunhos realizados na cidade de São Paulo durante os anos de 2018 e 2019, gravados, transcritos e devolvidos aos entrevistados. As experiências narradas são circunscritas à cidade de São Paulo e, se parcialmente ampliam as indagações dos propositores da cnv sobre os impactos na vida cotidiana, reproduzem certo padrão de memórias localizadas no Sudeste e narradas por homens brancos, de classe média e, com poucas exceções, formados no ensino superior. Para pluralizar e situar essas percepções, amplio neste artigo as fontes de memória oral, incluindo outras experiências do mesmo período, ainda que restritas à cidade de São Paulo.

A opção pela escuta dos testemunhos compreende a memória enquanto mediador cultural entre gerações (Bosi, 2003), apostando em sua potência em termos de difusão e compreensão crítica da história. A experiência de diálogo com pessoas que vivenciaram esse contexto, além de sua importância psicossocial ao «manter o tema em aberto» (Jardim, 2016, p. 246), atende parcialmente aos cuidados que devemos empregar ao lidar com documentos marcados por uma desigualdade de enunciação (Simonetto, 2018).

3. O cotidiano da ditadura: “ninguém pensava assim eu tinha direitos”

Em introdução da obra d&h, Green e Quinalha (2015, p. 19) indagam sobre «os efeitos da ditadura no cotidiano de mulheres que amavam outras mulheres, de homens que desejavam outros masculinos ou mulheres e homens que se recusaram a reproduzir as noções e o comportamento hegemônicos de gênero», e em seguida questionam se teria havido uma consequência real na vida do «homossexual comum» a partir dos principais acontecimentos jurídicos e políticos da ditadura civil-militar, como a promulgação do AI-5, por exemplo.

Sem fechar os olhos à constante indefinição no entendimento identitário adotado pela obra, o que ponho em questão é a via argumentativa elaborada para resolver o impasse de «escala» formulado: opta-se por uma breve periodização histórica da ditadura, nas quais alguns casos de movimentações sociais e políticas de sujeitos dissidentes são acionados a título de ilustrações das condições políticas e sociais gerais, previamente narradas.

Destarte, produz-se uma narrativa que automaticamente vincula os casos reportados aos principais marcos de uma narrativa histórica de longa duração, assumindo um vetor unidirecional (macro ( micro; sociedade ( indivíduo) que pouco responde ao problema formulado, ou seja, os problemas cotidianos. Essa estratégia acaba por invisibilizar a multiplicidade de relações dos indivíduos com os coletivos acionados e pressupor implicitamente certa homogeneidade das disposições cognitivas e os mecanismos de decisão e ação (Levi, 1996), o que resulta problemático para se pensar o desigual contexto social brasileiro.

Como posicionamento de leitura alternativo, para se pensar o impacto da ditadura no cotidiano, opero a partir de outra disposição interpretativa fundamentada em três argumentos:

A consideração do acesso às informações que as pessoas dispunham à época e também seus diferentes modos de leitura e composição dos elementos dispostos. Esses seriam condicionados não apenas por seus interesses e intencionalidades, mas também por suas vivências, experiências e pelos limites do próprio contexto e da linguagem;

O reconhecimento da não-neutralidade dos registros históricos disponíveis, conforme argumenta Ginzburg (1991, p. 15-16) ao apontar a consciência textual desvelada por Clifford Geertz e os impasses resultantes das múltiplas vozes conflitantes presentes no arquivo e como lidar com elas;

Conforme Afonso-Rocha (2021a, p. 32-33), deve-se reconhecer a não-neutralidade da linguagem e a historização das próprias categorias que organizam os eventos da história. Criticando a lógica de cisão indivíduo-sociedade, o autor sinaliza ainda alguns problemas que decorrem de uma perspectiva historiográfica que opera apenas no campo da «experiência».

Ao abrir tais possibilidade interpretativas, busco fazer circular leituras distintas dos registros históricos, considerando as significações não apenas do Estado para baixo, mas considerando outros fluxos e processos em suas mais variadas circulações. Em outras palavras, busco romper tanto com uma visão que privilegia a voz do arquivo de Estado como descritor da realidade social vivenciada pelos dissidentes na ditadura, quanto com uma visão de Estado e de um conceito de poder que me parecem demasiado restritas para se compreender a capilaridade da ditadura na vida social e no cotidiano brasileiro. Desta feita, baseio-me nas ponderações de Afonso-Rocha (2021a, p. 34-35) como proposta alternativa:

Pouco importa saber se as instâncias sociais reproduzem ou repetem as estruturas estatais ou se seriam as estruturas do Estado que repetiriam tais instâncias. Há muito mais fluxos e indeterminações nessas relações mútuas de poder e de resistência.

No que concerne à presente discussão, torna-se possível, por exemplo, compreender que os dissidentes à época não necessariamente tivessem a percepção da violência da ditadura e/ou até mesmo que ao vivenciar experiências de violência ocasionados pela ditadura, essas não fossem por eles diretamente relacionadas à ditadura ou vice-versa. Entendo que isso seja possível pela existência de práticas de violência em outros campos da vida desses sujeitos e também por conta da compreensão deles pela ditadura a partir da ideia de «degenerescência» (Morando, 2015, p. 56).

Os testemunhos coletados pela pesquisa ilustram algumas dessas percepções. Bira, por exemplo, mencionou um maior medo por sua posição de estudante e a «pecha de subversivo» em relação a um medo específico da ditadura por sua sexualidade dissidente, reconhecendo uma tônica de medo generalizado nesse momento:

Era universal (...) porque a polícia podia fazer o que ela quisesse (...) e ninguém podia fazer nada, ninguém pensava assim: «tenho direitos, eu tenho... onde estão os meus direitos?». Não! Quem tem direito é a polícia e de fazer o que ela quiser. Então você que tome cuidado de não fazer nada que eles não gostem, né?

No único testemunho realizado por um agente da repressão, Seu L., policial reformado, 79 anos à época da entrevista, explicou as ações de repressão em que trabalhava afirmando:«Não era por você ser ou não ser homossexual, mas pelo motivo do que você tava fazendo na rua». A fala em questão faz referência a um padrão de moralidade e à Lei de Vadiagem e, consequentemente, à própria arbitrariedade no uso da violência e suas lógicas de controle e punição diferenciais. Arbitrariedade que se materializaria inclusive nas possibilidades de viver e transitar pelos espaços públicos. Foram frequentes as referências a uma possibilidade do que se «fazia na rua»/«fora de casa» em contraposição a espaços privados e/ou semipúblicos, como relatou Lair, quem explicitamente mencionou essa divisão espacial: «dentro de casa, eu era uma coisa, fora de casa eu era outra coisa».

No que parece operar no mesmo sentido, Bira relatou que apesar de alguns espaços serem reconhecidos enquanto territórios de caçação gay, as pessoas não poderiam se beijar, pegar na mão, abraçar... a menos que fosse a portas fechadas. Esta foi uma das principais restrições que foram relatadas e que eram frequentemente explicadas pelos depoentes com referências diretas ao contexto político vivido («a ditadura», «a repressão», «a polícia», etc.).

Em síntese, nota-se uma percepção geral de que «havia uma ditadura», que poderia estar relacionada aos casos de violência e algumas das restrições vivenciadas no âmbito público. Porém, a ideia de cidadania, expressada pela contemporânea expressão «ter direitos», não era existente à época. Concomitantemente, existiria o estigma historicamente construído e relacionado às sexualidades, expressões e identidades de gênero dissidentes, como refletiu Bira ao relembrar as precauções em espaços de caçação:

chegou e levou todo mundo pra uma salinha lá, falou que era da polícia e que não podia fazer aquilo, que aquilo era crime, atentado violento ao pudor... e deu uns cascudos na gente, bateu um pouco, mas nada assim muito de sangrar violento, mas deu uns sopapos lá na gente e liberou. Eu tinha muita vergonha, medo da vergonha de ser exposto numa situação assim. Nem de ser descoberto como gay, também, mas sobretudo nessa situação, nessa circunstância, né?

Deste modo, frente aos possíveis riscos e em razão da falta de um quê ou alguém para recorrer, eram estabelecidos certos parâmetros para a ação individual, de mediação da imagem pessoal (Simonetto, 2018) e um senso de sobrevivência e proteção. Insistiria ainda no peso da moralidade para além do medo de ser compreendido como «subversivo», sendo duplo o medo: por um lado, da violência e repressão policial em si, por outro, a vergonha da exposição pública e familiar (o outing forçado). Teríamos como separar essa duplicidade que compunha o medo? O que poderia ser imputado à ditadura ou não?

O conceito de deimopolítica (Afonso-Rocha, 2021b) é um dispositivo teórico que me parece sensivelmente adequado para esboçar coordenadas iniciais para essas questões. Em linhas gerais, Afonso-Rocha (2021b, p. 140) compreende que a partir de políticas do medo, as instâncias intra-estatais durante a ditadura produziriam o tipo ideal de cidadão essencial ao projeto nacionalista (o avesso do «subversivo»): «direcionando a compaixão e a sensibilidade a esse sujeito, que supostamente estava ameaçado pelos inimigos da sociedade».

Essa «inimigalização», ou seja, a definição do abjeto desse sujeito tipo-ideal, seria um dos mecanismos principais para a sustentação do projeto nacionalista, a partir de políticas de extermínio e de vida. Portanto, não seria o medo do regime ditatorial que faria esse tipo de poder e controle circularem, mas sim o gerenciamento do medo dos inimigos imaginários construídos pela ditadura (Afonso-Rocha, 2021b, p.140-141).

O desenho conceitual propõe um interessante giro que possibilita outras linhas de análise sobre as violências cometidas contra os dissidentes durante a ditadura, permitindo perceber a rearticulação de elementos políticos e sociais prévios ao golpe, assim como os espraiamentos do poder por outros espaços para além do Estado, como a família, as amizades e inimizades, as instituições, como a escola e o trabalho, os momentos de lazer e a própria internalização do poder. Sem descentrar o papel do Estado e sua inegável responsabilidade, compreendo que esse instrumental analítico dialoga com as condições histórico-sociais do momento de um modo mais amplo, considerando, por exemplo, certo apoio social ao golpe, rompendo com uma visão binária pautada numa visão simplistas das relações Estado-Sociedade e até mesmo com a validade da díade indivíduo/sociedade.

Como veremos nas próximas seções, há um constante jogo entre as ações do Estado com as de outras instâncias sociais. Além dos elementos de controle, haveria também o surgimento de espaços do chamado «gueto», uma maior circulação das drogas, expressões artísticas de contra-cultura, entre outros elementos que imprimem suas marcas na percepção política e social deste momento político.

4. «As bibas sempre tomavam pau»: exposições diferenciais à violência da polícia

Os testemunhos foram unânimes ao apontar as diferenças de riscos à violência policial em razão da «exposição» ou «tipo» da dissidência, como enfaticamente explicou Bira, ao comentar as diferenças entre ser «travesti» e ser um «entendidinho» - ainda que, no caso de uma «batida policial», o «entendidinho» corresse o risco de ser «levado também» pela polícia:

Mas é lógico que as travestis e as afeminadas sofriam mais! (...) o Luis (...) foi preso numa dessas arrastões aí do Richetti, então os viados também sofriam isso, não só as travestis, mas muito mais as travestis (...) Então, quem tava na rua, por exemplo, se eu tava na rua, mesmo entendidinho, mas se eu tava no meio das travestis, se passasse, me levava também.

Lair, sem fazer relações entre o contexto político da época, mencionou tal diferenciação ao dizer que nunca «tomou um baile» na rua: «eu nunca tomei um baile na rua (...) mas claro que tinha gente que sofria sim. Porque, assim, quando você é muito pintoso, você normalmente vai ser discriminado». Por sua vez, Regis foi ainda mais assertivo em suas ponderações, dizendo que «nada mudou», já que essa diferenciação continuaria presente:

Era a mesma coisa (...) As bibas sempre tomavam no pau. As (sic) travecas que fazia, que ficavam fazendo ponto pra sexo ou não, polícia vinha, pegava, jogava no camburão e prendia. (...) Agora o gay mais heteronormativo, não acontecia nada disso. Por isso que eu digo que nada mudou.

Na mesma direção, p.j. avaliou: «a ditadura foi dessa forma. Quem tava no armário vivia tranquilo, agora quem padecia mesmo e até hoje acho que é quem padece, é o afeminado ou travesti». Mas qual era o fundamento político e jurídico para as ações de repressão? E pensando nas problemáticas apontadas pelos testemunhos, como essas diferenciações eram operadas e/ou justificadas na prática?

Juridicamente, não havia nenhuma tipificação explícita no Código Penal de 1890, nem pelo de 1940 que pautasse a questão. Entretanto, com a mudança do Código Penal em 1940, o crime de vadiagem (art. 399 do Código Penal de 1890), anteriormente utilizado de forma arbitrária para a prisão e demais explorações dos sujeitos dissidentes, passou de «crime» para «contravenção penal», tipologia que surge para descrever crimes mais leves, sendo essa mudança uma necessidade do modelo de relação trabalhista adotado pelo varguismo (Ocanha, 2015, p. 155). Ao estabelecer implicitamente a obrigatoriedade do trabalho regulamentado por lei, o porte da carteira de trabalho assinada tornava-se uma prerrogativa da polícia para abordagens arbitrárias, dentre elas, a de dissidentes e outros «degenerados», situação fomentada também por uma infinidade de portarias em âmbito municipal e estadual para a repressão desses indivíduos (Morando, 2015, p. 54).

Entretanto, utilizada com ênfase pelas forças de repressão Brasil adentro, é essencial observar a arbitrariedade em seu uso. Como testemunhou Jacque Chanel (Vieira e Fraccaroli, 2018), mesmo em raros casos como o dela, em que se dispunha de um vínculo de trabalho formal, ao ser travesti, ter o registro de trabalho não era suficiente para evitar detenções e a vivência cotidiana da violência policial. Na prática, prevaleceria a pura arbitrariedade, inclusive na escolha dos alvos das ações policiais. Seu L. quem participava das operações como agente da repressão sob a gestão do delegado José Wilson Richetti, relata com detalhes os tipos de situação a que transexuais e travestis eram expostas após serem presas:

Aí eles punham elas pra lavar banheiro, punha pra... como que fala? É, punha pra varrer, é castigo. Chá de banco. E muitas delas, isso daí foi muito triste, se cortava (...) Tinha muita gente que se deformou se cortando. Não sei se teve gente que morreu, porque a gente não ficava sabendo, né? Mas era, e na repressão daquela época, na repressão não tinha isso, depois é que veio.

Em outro momento de sua fala, no qual clamou pela volta do Dr. Richetti, Seu L. teceu diferenciações entre duas categorias: o «homossexual» e o «viadinho», explicitando os atravessamentos da compreensão da sexualidade com classe social e o por que o último seria alvo da repressão:

Então essas coisas, meu filho, que foi acontecendo, eu falo tanta coisa que eu falo: «meu Deus, que saudade do Doutor Richetti!». Queria ver se esses viados fariam o que eles fazem aqui na rua. Porque tem uns... meu querido, presta bem atenção: existe o homossexual e o homossexual viadinho. Homossexual é aquele que tem postura, ele se impõe. Agora tem uns viadinhos, uns menininhos da periferia, nossa, é terrível né?

Essa associação entre pobreza e sexualidade que resulta no «viadinho», categoria que nesta composição semântica é entendida como um modo de existência distinto e inferior ao «homossexual», suscita não apenas reflexões sobre os atravessamentos da sexualidade com as questões de classe social e raça, como aponta às diferentes experiências de violência dentro de uma mesma «identidade» e como essas se territorializariam. Similarmente, Lair expressou o reconhecimento das diferenças entre «entendidos» e «pintosas»:

Tinha sim uma diferença, porque, na realidade, o pessoal muito pintoso, a gente evitava (...) Dentro da boate, eu tinha contato com os pintosos (...) tinha alguns pintosos que cê vai conhecendo na vida, né não? Pintosos que você tem amizade, mas você só fica com ela naquele lugar, fora dali, não existe. Ah, por quê? Porque queima o filme, você sabe como é? Mas é que assim, não é uma pessoa que eu encontro na rua fácil. Cada vez que eu encontrava com alguém numa boate, eu dizia: «oi!», ela mora lá na Zona Norte, eu morava no Centro, pronto.

No mesmo sentido, o gritante contraste entre as memórias de Lili Vargas e o casal César Giobbi e Paulo Mortari narradas no marco do programa «Memórias da Diversidade» do Museu da Diversidade Sexual de São Paulo3 ilustra parte dessas diferenças. Se em sua fala, Lili relembra as constantes batidas policiais e os riscos aos quais era cotidianamente exposta simplesmente ao ir ao trabalho, Paulo afirma que passou a ditadura fumando maconha e César aponta seu medo apenas como «cidadão» e não «por ser gay».

Como último comentário desta seção, gostaria de chamar a atenção para o silêncio sobre a questão racial em todos os testemunhos. Apesar do silêncio, resulta necessário considerar como a dimensão racial efetivamente condicionaria também esses processos de vigilância e controle, como descreve González (2020, p. 46) ao observar a desigual condição entre pretos e brancos na divisão racial do trabalho no Brasil, a inerente desigualdade em termos de renda e os efeitos na «sistemática perseguição, opressão e violência policiais» à população preta.

5. «A vida ia»... desde que: variações ao longo da ditadura, ambivalências, negociações e outras formas de resistir

Nesta última seção de desenvolvimento, tendo como base as seções anteriores, busco refletir sobre a complexidade cotidiana da relação entre ditadura e os sujeitos dissidentes, ampliando a compreensão de algumas das cenas narradas previamente. Trato de me aproximar da complexidade presente em «um tempo histórico marcado por um regime político complexo e por uma sociedade contraditória e plural» (Napolitano, 2015b). Para isso, direciono o olhar especificamente às ambivalências, às negociações e às outras formas de resistir na ditadura e busco elaborar uma aproximação a como as variações políticas e sociais ao longo do período da ditadura eram percebidas por esses indivíduos, inclusive na chamada «zona cinzenta».

Admitido em concurso para o Departamento de Ordem Política e Social (dops), em 1976, p.j. relatou que muitas pessoas se afastavam dele quando seu local de trabalho era revelado, pensando que talvez ele fosse um espião. Nesse mesmo contexto, no qual afirmou ter sido «apenas um escriturário» no dops, ele relatou o medo que sentiu quando dividiu o elevador com o Delegado Sérgio Fleury:

Quando eu embarquei no elevador, adivinha quem veio do subsolo, que era a carceragem? Fleury. Ai! E era a época do Esquadrão da Morte. Um homenzarrão alto, ele me olhava assim do alto, eu quase fiz xixi nas calças de medo. Quando eu cheguei na seção, uma colega me perguntou: «que que aconteceu? Você tá tão pálido». Eu falei que nada e fiquei imaginando um preso político na mão daquele infame.

Poucos anos após ingressar no dops, p.j. largaria seu cargo para ocupar uma posição de professor na rede pública e viria a se filiar ao Partido Comunista Brasileiro, onde também silenciaria sua «homossexualidade» por entender que «a esquerda também tinha preconceitos», campo político no qual se situa há algumas décadas.

Durante quase toda a vida, suas vivências enquanto «homossexual», identidade atualmente reivindicada, eram limitadas às relações esporádicas possibilitadas por práticas de caçação nas vias públicas, frequência às saunas e idas aos cinemas no centro. Em sua avaliação, «a vida ia tranquila» para quem estivesse no armário, porém, não para todos. Após dizer «eu passei pela ditadura e não tive nenhum problema», com mais calma, p.j. reavaliou sua afirmação:

Claro, quem não tinha, não era contrário ao regime, a vida ia, tocava, as coisas iam, só que quem não se incomodasse, por exemplo, de você estar andando na rua, para um policial, te pede o documento ou dentro de um ônibus passa a batida para pegar documento. Então tinha esses inconvenientes e também censura, de um jeito ou de outro, mas a vida ia.

Ao dizer «a vida ia», p.j. parece se referir à tolerância que as pessoas necessitavam para viver a ditadura e seus «inconvenientes». Nota-se certa insatisfação com esse «cotidiano que ia», o que em tal composição semântica aparenta ser contrário ao modo como se desejaria viver. Sua elaboração reitera claramente a percepção anteriormente apontada por Bira, condensada pelo termo «subversivo». Como conclusão, em movimento de memória, conjugando o passado vivenciado e a avaliação do presente político, apesar de crítico da ditadura, p.j. indagou sobre o conservadorismo e o fundamentalismo contemporâneos e os impasses em tentar compreender esse passado nos dias de hoje:

Mesmo sendo ditadura, acho que o moralismo de agora é maior e te digo isso com absoluta convicção. Não é que eu tenho saudades da ditadura, longe disso. Essa questão é uma faca de dois gumes, por quê? Eu nunca vi essa questão de fundamentalismo tão acirrado. Isso é um grande retrocesso. Olha, será que era a ditadura? Eu fico pensando. Era repressivo? Era, sem dúvidas, mas tinha vida, poxa. Agora também tinha o outro lado da moeda, né, porque a polícia te explorava, felizmente, não aconteceu comigo. Essa época dos cinemas era glamorosa (...) Por isso que se fala que a ditadura era uma faca de dois gumes. Porque foi um desbunde total, vê o Ney Matogrosso! Eu acho que apesar dos pesares do regime e da repressão e antes do advento da aids, as pessoas eram mais soltas, era um olhar e pronto. Já podia fazer. A promiscuidade era total.

Neste momento, ao que a fala de p.j. parece se reportar é à complexidade de um contexto histórico, marcado pela repressão da ditadura civil-militar, mas palco também de outros «interessantes acontecimentos» (Fico, 2015, p. 16), como uma crescente produção cultural contestatória, os efeitos da modernização desejada pela ditadura civil-militar e certa revolução nos costumes nas décadas de 1960 e 1970 inerentes a tais processos, apesar dos esforços conservadores dos governos em controla-los.

Essa suposta «contradição», articulada na ideia da «faca de dois gumes» é composta por eventos como a presença da ex-primeira- dama Iolanda Costa e Silva em shows da noite transformista em São Paulo e o sucesso de Les Girls ao lado de práticas de violência e repressão; houve até mesmo um sentimento nacionalista de orgulho pelas travestis brasileiras em certo momento da ditadura (Soliva, 2018). Essa estranha conjunção, por vezes, não seria compreendida nem mesmo no momento em que ocorria, como observou Lair:

Uma coisa que me chamava muita atenção era a Rogéria, essas travestis mais famosos, até as travestis que não eram tão famosos, mas que faziam shows em boate, eles tinham uma vida muito curiosa, porque eles eram respeitados pela sociedade. Logicamente que (sic) eles viviam na marginalidade, mas eles eram respeitados pela sociedade.

Outro exemplo que ilustra essa «contradição» se refere às condições de possibilidade para a existência de estabelecimentos comerciais voltados explicitamente para práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo (em especial homens), caso das saunas citadas por p.j. Como seria possível, que a Escola Superior de Guerra se preocupasse com a influência de Marcuse sob a juventude, com os riscos da liberalização dos costumes e a degenerescência (Cowan, 2015, 2016) ao mesmo tempo em que surgiam opções de lazer para indivíduos dissidentes em várias cidades do Brasil?

Entre as possíveis explicações para esse contexto, Green (2000, p. 399) compreende que a resposta estaria no grau de controle que os militares conseguiam impor à sociedade brasileira, sendo que a censura se direcionaria apenas ao conteúdo que fosse considerado «um desafio direto à política do regime ou à moralidade pública», não considerando «casas de banho e pistas de dança» e shows de travestis como afrontas ao regime. O historiador aponta também o interesse de empresários nessa «abertura à sociabilidade homossexual», tirando proveito da elevação da renda da classe média propiciada pelo milagre econômico (Green, 2000, p. 400).

Lanço mão dessas reflexões no sentido de indagar como esse complexo caldo cultural e político pode ter produzido diferentes experiências e percepções políticas e, assim, gerado distintas temporalidades a partir das mais variadas posições sociais e compreensões políticas. Em termos mais práticos, indagaria se esse boom nos espaços de sociabilidade teria sido vivenciado igualmente pelos indivíduos dissidentes, considerando não apenas suas diferentes identidades, mas também os efeitos desiguais do milagre econômico.

Como aponta González (2020, p. 47), ao observar as disparidades do desenvolvimento em termos de localização geográfica e a divisão racial do trabalho, «o milagre brasileiro beneficiou apenas uma minoria da população interna». Desta compreensão, depreende-se o cuidado com as generalizações e/ou grandes narrativas historiográficas do contexto brasileiro a partir de determinados centros urbanos que se beneficiaram de modo mais vantajoso do «milagre econômico», traço presente em algumas das clássicas referências de estudos e reproduzida pelo empreendimento d&h.

No caso dos testemunhos escutados, parece haver uma marcação da percepção da ditadura por meio das relações entre práticas sexuais, frequência à noite e uma ideia de liberdade, como fica claro na conjunção temporal expressada por Rui:

Eu sinto dessa forma: eu peguei abrindo, aí vem o Richetti e dá uma grande fechada na gente, ainda não tinha a aids, mas aí a perseguição política e por causa de gênero notadamente, né, aí a gente começa a liberar novamente, cai o Richetti, aí a população, a noite volta a se inflar.

Essa noção de uma efervescência da noite paulistana e de um período de experimentação, inclusive de drogas, foi também comentada por Regis: «Os anos 70 e os anos 80 eram louco, louco, louco, louco». Bira, à época estudante do curso de Matemática na Universidade de São Paulo, também mencionou uma época de «liberdade sexual» e o campo da experimentação («o lance de experimentar»):

E naquela época de liberdade, de liberdade sexual assim, ninguém se ligava de nada (...) As pessoas sabiam que eu era gay, mas eu era um gay que... tinha muitos homens héteros que queriam experimentar... tava todo mundo experimentando muito, a verdade é essa (...) Era uma coisa meio que bagunçada assim, porque o lance era experimentar, o tesão era conhecer coisas diferentes.

Em cinco dos seis testemunhos, os elementos que parecem determinar uma percepção de maior hostilidade da ditadura ou de medo de militares e/ou policiais são as operações do delegado Richetti. Entretanto, para os depoentes, como expressa a conjugação temporal de Rui, o maior impacto na experiência cotidiana, considerando os modos e práticas de sociabilidade, seria decorrente da epidemia de hiv/aids e o aumento do estigma e da recriminação das sexualidades e identidades de gênero que lhe acompanharam. É curioso, entretanto, observar que o termo «resistência» e as conjugações do verbo «resistir» na textualização dos testemunhos aparecem apenas duas vezes, ambas no testemunho de p.j.: uma para referir-se a algumas peças de teatro nas décadas de 1970 e 1980, como «Murro em Ponta de Faca», «Roda Viva»e «Bent», e outra para descrever o grupo somos de Afirmação Homossexual de São Paulo, compreendido como «resistência».

Em termos gerais, essa ausência ilustra as concepções dos testemunhos sobre a situação política do país, na qual por mais que possamos identificar casos de “resistência passiva” e/ou compreender que a própria presença desses corpos e práticas já seria algo transgressor, não poderíamos atribuir o significado de resistência para suas atitudes considerando o conteúdo das composições semânticas por eles expressadas.

Além da percepção de um contexto generalizado de repressão, percebeu-se também nos testemunhos o desinteresse pela política. Rui refletiu particularmente sobre o contexto político e sua falta de envolvimento com as questões políticas, descrevendo um trauma vivenciado durante sua infância em Salvador e a influência da Copa do Mundo em sua percepção despolitizada do contexto:

Em 68, Salvador foi um dos lugares mais fortes que teve confronto com os militares e população civil. Eu fui pego no meio entre aspas dessa coisa (...)eu peguei um trauma dessas histórias (...) Então, assim, eu tive assim uma certa trauma e nessa época, essa coisa de militância 60, início de 70, e eu em 1970 eu tava maravilhado com Copa do Mundo, o Brasil ganhando Copa do Mundo, eu não tava preocupado com guerrilha, nem ouvia falar, não sabia o que era guerrilha, né.

Para todos os entrevistados, marcos considerados centrais na articulação do empreendimento d&h na cnv, como por exemplo, a formação do Grupo somos e o lançamento do primeiro exemplar do Jornal Lampião da Esquina em 1978, não lhes «diziam muita coisa», como no caso de Rui, quem mencionou o fato de que, à época, nem sempre os conteúdos produzidos no Rio de Janeiro e em São Paulo chegavam a Salvador.

p.j. afirmou saber à época da existência do grupo, identificando essas ações como «resistência»: «Eu sabia que o grupo somos existia, mas eu nunca quis entrar (...) Sabia que tinha resistência, mas nunca participei, nunca tive o interesse». Além de dizer que «não tinha muito interesse em política», Bira também comentou sobre a questão da visibilidade, ao recordar que um ex-namorado, ex-participante do somos, relatou que uma das principais discussões no grupo era em relação aos registros fotográficos, já que muitos participantes seriam «enrustidos».

Ao pensarmos a memória enquanto tecer atravessado pelas emoções e sentimentos, indagaria ainda se as preocupações com a visibilidade não poderiam estar relacionadas tanto com as preocupações relacionadas ao estigma e à discriminação social de ser enquadrado como “homossexual” publicamente, mas além disso, o medo de ser associado à «pecha de subversivo».

Regis, atualmente autoidentificado como «apolítico», disse não ter expressado interesse nas reuniões do grupo à época, pois lhe parecia que «viado só quer saber de brigar» e que «os partidos políticos já (estavam) se infiltrando». É interessante observar no caso de Regis, que a partir dessa memória, seu discurso dirigiu-se ao presente político, pontuando achar interessante o surgimento de «gays conservadores». Desse aspecto, resultaria oportuno reconhecer a possibilidade de valorações mais conservadoras e até mesmo moralistas sobre o período da ditadura também por parte de alguns indivíduos dissidentes, por vezes calcada na ideia de uma maior «segurança pública», inclusive nos espaços de sociabilidade. Entretanto, para travestis e afeminados a situação não seria a mesma, em especial, quando se consideram narrativas em primeira pessoa.

Miss Biá, transformista de São Paulo, em depoimento ao programa «Memórias da Diversidade Sexual», contou sobre um período em que trabalhava em casas de frequência heterossexual, localizadas na região da Boca do Lixo. Em razão da censura, ela relembrou um momento no qual suas atuações foram restritas apenas a papéis masculinos, em shows acompanhados por vedetes. Entretanto, mesmo impedida de se apresentar em papéis femininos, Miss Biá tratava de subverter esse papel hegemônico masculino imposto a partir da restrita margem de ação que lhe era possível:

Eu trabalhei de homem, né? Eu trabalhava de hominho, me vestia de hominho meio fresco e fazia show junto com vedetes (...) Eu era novinho, tinha uma camisa cor-de-rosa, não era homem! Era uma menina!

Sobre os momentos nos quais pôde trabalhar como transformista, Miss Biá teceu certas diferenciações ao longo do tempo:

a gente não tinha condição de chegar montada assim, tinha que ir de cara pintada no máximo e peruca na mão, né? Se punha na cabeça, era prostituição, já era presa (...) depois foi liberando e liberando, aí eu comecei a me montar novamente e aí eu fui em frente.

Tomando como referência outras entrevistas de Miss Biá e suas participações em shows das boates Medieval e da Nostro Mondo, ambas inauguradas no começo dos anos 1970, pode-se inferir que talvez o «momento mais pesado» seja posterior à promulgação do AI-5, em 1968 até o começo dos anos 1970.

A percepção de variação e mudanças ao longo do tempo no padrão de violência pelo Estado e seus impactos no cotidiano foi comentada também por Lili Vargas, consultora de imagem, também em depoimento ao mds. Lili inicialmente descreve momentos da ditadura em que além da violência perpetrada pela polícia, corria-se o risco de apanhar de «grupinhos de meninos» que transitavam pelas ruas, ressaltando a impossibilidade de se apelar à polícia ou a leis e a construção de uniões com outras travestis como alternativa:

(Éramos), unidas mesmo, a gente se defendia uma a outra com unhas e dentes, entendeu? E isso que nos proporciona um tipo de segurança, entendeu? Porque a gente sempre se protegia, uma com as outras, não tinha essa de ‘ai, tá lá, vai apanhar’.

O relato de Neon Cunha4 narra outros aspectos dessas uniões que se criavam entre travestis e, em especial, a importância das redes de proteção estabelecidas nos lugares de moradia como modos de sobrevivência a tantas violências:

Esses coletivos é um lugar de sobrevivência, então não se morava só por causa da questão financeira, era meio para ter uma garantia de que, olha, você sabe onde eu estou, o que está acontecendo comigo, tinha essas alianças, essas forças, as relações com as famílias, que as pessoas vinham pra trabalhar, mandar dinheiro para suas famílias, fazer a casa dos pais e das mãe.

Neon Cunha entende que a violência às pessoas trans e travestis remontaria a tempos anteriores ao da ditadura e seria uma prática conjunta a outros extermínios, como os da população preta e pobre. Essa constatação a leva a questionar o lugar dessas pessoas nas atuais narrativas e empreendimentos de memória, após relembrar uma batida policial a uma comunidade de travestis nordestina no centro de São Paulo: «E as invisíveis, as que não foram fichadas, que não foram documentadas? Eu sempre questionei a vida inteira».

Por último, para pensar algumas das modalidades de violência policial, proponho um olhar à arbitrariedade das práticas policiais e de agentes da censura. Na visão de Lili, haveria uma diferença de comportamento entre as polícias de Rio de Janeiro e São Paulo, afirmando que com os últimos, as relações seriam mais «suaves» em razão das possibilidades de «acertinhos».

Elaborando especificamente sobre o papel da censura, Jane di Castro (Caparica; Cimino, 2014; Soliva, 2018), apesar de afirmar «os militares não se metiam com a gente não, viu?», explicitou certas adequações nos shows que eram feitas quando o elenco era informado da presença de censores na plateia. Nessa mesma entrevista, Jane relembra apenas de problemas com um delegado; porém. a simpatia da censora Dona Maria garantiria a continuidade dos shows.

Nessas falas, nota-se que certa consideração desses poucos policiais e censores seria expressada não necessariamente em termos de respeito às expressões de gênero ou identidades em si -talvez um conceito até mesmo anacrônico para a época, mas sim em razão dessa dimensão profissional/artística, por vezes ostentada pelas próprias transformistas. Em outro exemplo, Miss Biá relatou um evento após uma das grandes operações de detenção no centro de São Paulo, no qual uma pessoa dela conhecida convidou o delegado Richetti para assistir a um show: «Então ele foi com a equipe, assistiu a um show da gente e adorou. Ficou alucinado. Então ele liberou para que eu e as outras que trabalham comigo pudéssemos sair na rua de mulher5».

Porém, por mais que existissem essas raras condições de negociação ou de «compreensão» para as transformistas, seria pouco realista pensar nas mesmas possibilidades para as travestis que se prostituíam ou se dedicavam a profissões marcadas pela informalidade e precariedade. Seria mais razoável supor atravessamentos e sobredeterminações das questões de classe social e de raça nesses encontros, considerando as corporalidades das artistas transformistas aqui citadas.

Como conclusão desta última seção de desenvolvimento, observa-se nessas últimas narrativas que as ideias de tempo e da relação com a ditadura expressadas são produzidas de outro modo em comparação com as memórias dos indivíduos da subseção anterior. Percebe-se, por exemplo, as possibilidades de estar no palco ou de «se montar» como marcador da gravidade da ditadura, em conjunto a outros elementos, como o tipo de arte realizada enquanto marcador temporal (canto x dublagem, por exemplo).

Observa-se também que a noção de «direitos» não foi acionada tantas vezes e tampouco se mencionou a possibilidade de participar de «associações» por direitos à época, sendo a única exceção o depoimento de Neon Cunha, no qual uma tentativa de sindicato das travestis e profissionais do sexo formulada por Andreia de Mayo foi relembrada.

Enquanto em algumas narrativas da memória política se fala em resistência e nas memórias da subseção anterior percebemos a margem de ação para opções políticas e posturas diferentes em termos da mediação da imagem pessoal (Simonetto, 2018), a situação para as travestis seria diferente, atravessada pela marginalização social e a recusa em ocultar suas identidades a partir de determinado momento da história (Veras, 2019).

Nessa via interpretativa é que muitas das ações aqui narradas são melhor compreendidas à luz do conceito de sobrevivência, utilizado por Cunha, do que a ideia-noção de resistência, por exemplo. Essa sútil diferença terminológica e o abismo entre as possibilidades de existência por ela aportado nos remetem aos limites dos marcos coletivos da memória política dos indivíduos dissidentes na ditadura considerados pela escrita da história oficial no relatório final da cnv, inclusive em termos linguísticos, como elabora Moira (2020b).

6. Considerações finais

Para encaminhar a presente discussão às considerações finais, gostaria de retomar os dois questionamentos inicialmente formulados. No que concerne à terminologia elegida pelo texto temático presente no relatório final da cnv, é evidente o descompasso entre a categoria escolhida («homossexualidades») e as expressões utilizadas pelos testemunhos para se referirem a si mesmos ou a terceiros (pintosas, entendidos, bichas, travestis, transformistas, etc.). Essa diferença levanta certas dúvidas sobre a afirmação de que o conceito de «homossexualidades» seria o entendimento hegemônico à época e de que travestis e transexuais eram então compreendidas como formas de homossexualidades. Nesta incisiva afirmação, faltaria um sujeito a quem atribuir tal entendimento. Em síntese: entendidas assim por quem?

Mesmo no caso de aceitarmos a argumentação que tal entendimento hegemônico seria o utilizado pelos setores e agentes da repressão- argumento pouco sustentável tomando a própria obra d&h como referência -valeria refletir criticamente sobre o significado político e social implícito em dar primazia aos entendimentos elaborados pelo aparato de repressão em detrimento das expressões e entendimentos dos indivíduos dissidentes sobre si mesmos.

Desde uma perspectiva queer, Simonetto (2021) propõe uma consideração crítica das categorias nativas do arquivo como modo de compreender as percepções das sexualidades e identidades dissidentes, e como alternativa, aposta no valor de práticas que engajem com as percepções pessoais e os modos pelos quais a experiência do sexo (e aqui adicionaria gênero) se faziam possíveis. Tencionando os limites dos arquivos da repressão, Neon Cunha se questiona sobre as pessoas indocumentadas, o que permitie certa aproximação ao conceito de «desrostidade» elaborado por Campos Leal (2021) para pensar a situação das «travestis pretas, despicumadas, y ainda assim belíssimas» e outras sujeitas subalternas. Nesse sentido, é preciso operar não apenas uma noção mais amplificada de documento e de suas possibilidades interpretativas (Martínez, 2016), mas também uma ética de reconhecimento da não presença de certas subjetividades no corpus do arquivo de Estado, em razão das próprias limitações sócio-históricas para sua visibilidade e das faculdades antropológicas dos funcionários que o escreveram (Simonetto, 2018, p. 31). Uma maior generosidade no reconhecimento de fontes orais seria oportuna, em especial, quando tratamos de comunidades historicamente marginalizadas das possibilidades de escrita da história.

Insistindo no primeiro questionamento, valeria ainda refletir sobre a historicidade do conceito de «homossexualidades», situando-o em uma perspectiva histórica que leve em consideração as posicionalidades envolvidas em suas definições e usos tanto no passado, quanto no presente; é preciso historicizar também a categoria de análise histórica (Afonso-Rocha, 2021a). Deve-se atentar ao que há de social nos processos de memória -e, nesse caso, nas escritas da história, já que tão intimamente relacionados no enquadramento d&h.6

Quando pensamos especificamente na cnv, o recorte conceitual adotado é extremamente similar à compreensão construída no passado pelos grupos que compunham o mhb, cujos ex-integrantes contribuíram crucialmente ao entendimento expressado pelo texto final. E dentro dessa sobreposição temporal, tão própria das dinâmicas da memória política, alguns entendimentos foram priorizados em detrimento de outros, reproduzindo um entendimento que resulta na invisibilização e apagamento dos entendimentos e vivências de outros sujeitos.

Apesar da busca por objetividade, usualmente relacionada ao campo da história, os processos que envolveram a cnv foram pautados também por dinâmicas de memória. É preciso considerar sua dimensão política e social, assim como a preponderância de certas vozes em detrimento de outras. É nesse sentido que compreendo o empreendimento d&h como um «agenciamento de memória política»:

Longe de serem monolíticos, esses agenciamentos não ocorrem sem tensões e conflitos internos. Mas entre os agentes da memória e os agentes do campo político também há diferenças que foram menos contempladas pelos autores (Lifschitz, 2014, p. 153)

Destaco esse excerto, pois para além das disputas pelo capital da memória entre os agentes da memória e o Estado, haveria diferenças nos modos de se recordar e narrar o passado entre os próprios agentes de memória e os agentes do campo político, por vezes ressoadas pelas próprias diferenças de recursos. Desta feita, penso que outros padrões de comportamento e de experiências dos dissidentes na ditadura não sejam centrais ou estejam presentes numa articulação por direitos de reparação, por exemplo.

O trabalho de memória/história protagonizado pela cnv foi sem dúvidas importante no reconhecimento da violência perpetrada pelo Estado contra os dissidentes. E, evidentemente, muitas das críticas que hoje podem ser formuladas derivam em grande medida da visibilidade alcançada pela temática. Entretanto, é algo problemática a acusação de essencialismo, fixação trans-histórica e a-historicidade (Quinalha, 2021, p. 246-247) de perspectivas que operam com outros registros, práticas e entendimentos epistemológicos da história. Parece-me pouco democrático arrogar-se à posição de detentor do real e conclamar por outras pesquisas, dada a falta de «trabalhos mais empíricos» com o devido «lastro material do processo histórico». Penso que esse posicionamento pouco reflete sobre as possibilidades de acesso a esses materiais, operando um problemático apagamento de trabalhos de intelectuais (em especial, pessoas trans e de outras regiões do Brasil) e de iniciativas arquivísticas, como o Museu Transgênero de História e Arte.

O arquivo do Estado é uma importante fonte, mas não a única ou a mais importante para se compreender esse momento histórico. E mesmo considerando apenas os arquivos do Estado, há outros modos de se lidar com seu corpus documental, ponto no qual as perspectivas historiográficas queer e decoloniais podem promover interessantes deslocamentos.

Ao tratarmos da história e da «busca da verdade», parece-me mais adequado engajar-nos cada vez mais com espaços e práticas afeitos não apenas à enunciação, mas também à escuta. Valeria recordar a importância dos testemunhos nas comissões da verdade nos países da América Latina. É neste sentido que entendo que os testemunhos podem nos auxiliar a melhor compreender a complexidade da ditadura civil-militar brasileira, que talvez em uma de suas mais cruéis faces, tenha até mesmo esse poder de não ser nomeada por muitas pessoas no passado e no presente (Jardim, 2016).

Retomar as ações da militância e da contrarreação à violência da ditadura é certamente central para compreendê-la; mas também é essencial questionar os seus não-ditos, suas posições de silêncio, de indiferença e também outras variações de agência, como indaga Travesti (2021) ao pensar nas criações de outros sentidos à vida, capazes até mesmo de «nos salvar alegremente das mediocridades de uma ditadura». E aqui a importância de narrativas e pesquisas sobre o segundo questionamento. Para compreender a ditadura e as dissidências, antes de valorações moralistas sobre a não-participação de certos setores («se contentavam» ou não), penso que melhor faríamos ao cotejar historicamente as possibilidades e condições para a participação política.

Há um vasto campo a ser percorrido nos estudos que relacionem as dissidências sexuais e de gênero e a ditadura civil-militar brasileira. Uma breve agenda incluiria pesquisas que articulem as migrações de travestis e transexuais argentinas e uruguaias para o Brasil nesse período, uma maior atenção a outros arquivos e fontes e a relevância do registro oral ainda possível. Um maior diálogo com as novas perspectivas historiográficas desenvolvidas pelos pesquisadores da ditadura no Brasil certamente contribuiria para uma melhor discussão epistemológica e metodológica.

Há também elementos do presente que incidem na questão. Como discutir sobre a ditadura enquanto uma de suas principais instituições, a Polícia Militar, segue presente e lidamos ainda com sua herança social e política? Qual é o espaço dos grupos sociais mais atingidos no passado e no presente nessas ações de memória? Quais são as subjetividades que têm podido participar desse processo e a partir de quais práticas?

Como último comentário, gostaria de dizer que, em certo grau, concordo com Quinalha quando critica os ricos de «uma fixação trans-histórica de uma identidade». Entretanto, ciente da cis-plicação deste texto (Afonso-Rocha, 2021a, p. 36), parece-me ser ainda menos prudente a sistemática negação de outras perspectivas e narrativas históricas sobre o período, quando essas inclusive já existem.

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2Como destacado por Quinalha (2017, p. 17), isso não significa que a relevância da temática fosse consenso entre os membros da comissão.

3Todos os depoimentos da série “Memórias da Diversidade Sexual” aqui citados estão disponíveis no canal do Museu da Diversidade na plataforma de vídeos Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=j3Vd5BZb4Ac&list=PLhaT5KyGUzgOUmuHxtIgZbkFftni0UmQj. Acesso em: 27/07/2021.

4Relato disponível no portal eletrônico do dossiê “Orgulho e Resistência” produzido pelo Instituto Temporário de Pesquisa sobre Censura. Disponível em https://institutotemporario.casaum.org/Orgulho-e-Resistencias. Acesso em: 27/07/2021.

5Trecho recuperado de «Conheça Miss Biá, Pioneira Drag Queen brasileira», Draglicious,3 de junho de 2020. Disponível em https://draglicious.com.br/2020/06/03/conheca-miss-bia-pioneira-drag-queen-brasileira/. Acesso em: 27/07/2021.

6Nos termos da presente discussão, isso pode significar o reconhecimento dos efeitos da relação autores/atores, como observado por Trindade (2002).

Nota: Este artículo fue aprobado por la editora de la revista Dra. Verónica Pérez

Nota: El autor es el único responsable del artículo.

1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (capes) - Código de Financiamento 001.

Recebido: 11 de Janeiro de 2022; Aceito: 26 de Abril de 2022

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