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Revista Uruguaya de Ciencia Política

versión On-line ISSN 1688-499X

Rev. Urug. Cienc. Polít. vol.21 no.1 Montevideo ene. 2012

 

RELAÇÕES INTERGOVERNAMENTAIS NAS POLÍTICAS DE EDUCAÇÃO BÁSICA NO BRASIL: A ASSISTÊNCIA DA UNIÃO AOS GOVERNOS SUBNACIONAIS EM FOCO

 

The intergovernamental relations in Brasilian basic educational policies: the federal assistence to states and municipalities in focus

 

Relaciones intergubernamentales en las políticas de educación básica em Brasil: la asistencia del gobierno federal a los gobiernos subnacionales

 

Nalú Farenzena*

 

 

Resumo: É discutido o papel do governo da União no financiamento da educação básica brasileira por meio de ações de assistência financeira aos estados e aos municípios. A atuação da União é contextualizada em arranjos institucionais delimitadores de responsabilidades governamentais e de cooperação intergovernamental, bem como são caracterizadas políticas de assistência financeira aos governos subnacionais, os benefícios alocados e os critérios de repartição. Embora haja avanços em critérios de transferência e redistribuição de recursos, o montante do gasto da União na educação básica é considerado reduzido diante dos desafios da garantia de maior equidade e qualidade na educação e dos diferenciais de capacidade de financiamento da educação dos governos locais.

 

Palavras-chave: Financiamento da educação. Políticas públicas de educação. Relações intergovernamentais. Educação básica no Brasil.

 

Abstract: It is discussed the role of Federal Government in financing Brazilian basic education through actions of financial assistance to states and municipalities. The performance of the Federal Government is contextualized in institutional arrangements that delimitate governmental and intergovernmental cooperation responsabilities, and also are characterized policies for financial assistance to subnational governments, the benefits allocated and the criteria for allocation. Although there have been advances in defining the criteria for transfer and redistribution of resources, the amount spent by the Federal Government in basic education is considered reduced before the challenges of ensuring more equity and quality in education and the differential capacity of education funding from local governments.

 

Keywords: Education funding. Education public policies. Intergovernmental relations. Basic education in Brazil.

 

 

1. Introdução

 

Invertendo os termos de uma expressão difundida no Brasil na década de 1990, o mais grave problema do financiamento das políticas educacionais no Brasil não é que se gaste mal, mas sim o volume insuficiente de recursos alocados ao setor. Em 2009, a porcentagem do gasto em educação em relação ao produto interno bruto (PIB) foi de 4,98% (Ipea 2011). Indicadores comparativos de gasto em educação em alguns países, bem como dados da cobertura educacional brasileira, podem ilustrar a mencionada insuficiência do nível de gasto.

Amaral (2011) pondera que as comparações de gastos em educação entre países como proporção do PIB devem levar em conta o valor do PIB e a quantidade de estudantes em idade de frequentar o sistema educacional. O autor faz uma estimativa do gasto por pessoa em idade escolar em vários países, para o ano de 2008, em dólares ajustados pela paridade de poder de compra (dólar ppp). Esse gasto, no Brasil, ficou em 959 dólares, o que é menor, por exemplo, ao do Uruguai (US$ 1.348), do Chile (US$ 1.416), da Argentina (US$ 1.578) e do México (US$ 2.019), e muito menor ao dos Estados Unidos (US$ 8.816) ou da Noruega (US$ 15.578).

No que concerne à cobertura educacional no Brasil, há sérios desafios na agenda, no que diz respeito à expansão da oferta e à melhoria das condições de qualidade da educação no contexto dos deficits nas dimensões do acesso, da permanência e da conclusão das etapas do sistema educacional. Alguns indicadores exemplificam problemas e desafios nessa dimensão: a taxa de escolarização das crianças de zero a três anos de idade foi de apenas 18,4% em 2009 (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social 2010); a taxa média esperada de conclusão do ensino fundamental é muito baixa, 53,5% (Ipea 2008b); em 2009, frequentavam o ensino médio 51% dos jovens de 15 a 17 anos de idade, outra parcela desses ainda estava no ensino fundamental, dadas as sucessivas reprovações, e somente 37,6% dos jovens entre 18 e 24 anos haviam concluído o ensino médio (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social 2010).

As desigualdades na escolarização e na frequência ao sistema educacional entre os brasileiros são outra dimensão de problemas e desafios. Os recortes dessas desigualdades –de renda, regionais, de raça/etnia e de residência rural ou urbana da população– podem ser assim ilustrados: em 2007, frequentavam o ensino médio 81,5% dos jovens de domicílios com renda per capita superior a cinco salários mínimos, e apenas 33,2% dos jovens de domicílios com renda per capita entre um quarto e metade do salário mínimo (Corbucci et al. 2009); a taxa de frequência líquida ao ensino médio em 2007 foi de 36,2% na região nordeste e de 58,7% no sudeste, para uma média nacional de 48% (Corbucci et al. 2009); a taxa líquida de frequência ao ensino superior em 2007 foi de 19,8% para brancos e 6,9% para negros (Corbucci et al. 2009); em 2007, a média de anos de estudo da população da áreas rurais foi de 4,5 anos, contra 8,5 nas regiões urbanas metropolitanas (Ipea 2008a).

Os problemas que requerem intervenção pública são muitos e de naturezas diversas, associados a causas internas e externas ao sistema escolar, formando uma trama de múltiplas determinações. A configuração das responsabilidades das esferas de governo na oferta e no financiamento da educação faz parte dessa trama.

O Brasil é uma república federativa, com três esferas de governo –União, estados e municípios– que têm atribuídas responsabilidades no setor educacional, referentes à sua regulação, ao planejamento, ao atendimento direto (oferta) e ao financiamento. A organização em sistemas de ensino autônomos, a definição de competências de cada esfera governamental e de cooperação federativa podem ser tidas como diretrizes político-administrativas abrangentes da organização nacional da educação e da política educacional.

Posto esse marco institucional de responsabilidades (inter)governamentais no setor da educação, a discussão do seu financiamento não se restringe a diagnósticos e proposições sobre o nível geral de gastos públicos existente ou necessário vis-à-vis à oferta educacional existente ou projetada. Nessa discussão também se faz presente o tema controverso da distribuição de responsabilidades entre as esferas de governo, uma vez que há agudos desequilíbrios na capacidade de gasto público e de oferta de políticas sociais entre elas, num contexto de omissões, deficits e desigualdades na provisão de serviços. Na política educacional, dadas as especificidades setoriais, tem tido destaque, na agenda pública nacional, a problematização do papel da União no financiamento da educação básica.

O objetivo deste artigo é discutir o papel exercido pela União no financiamento da educação básica[1], através de programas de assistência financeira aos estados e aos municípios. Procuro fazê-lo por meio da contextualização da atuação da União dentro dos arranjos legais e institucionais setoriais que delimitam responsabilidades e ações dos níveis de governo e a cooperação intergovernamental. A dimensão política imbricada nesses arranjos e nas propostas de reconfigurá-los será tratada de modo mais transversal, pela referência a tendências e tarefas por fazer na equalização de oportunidades educacionais, no bojo de disposições que concernem à distribuição de poderes e de recursos na federação.

Na próxima seção, exponho delimitações teóricas referentes a relações intergovernamentais e configurações político-institucionais e contextuais quanto a responsabilidades das esferas de governo brasileiras para com a educação, com ênfase no papel da União na educação básica. Na seção seguinte, caracterizo políticas de assistência financeira da União aos estados e municípios no âmbito da educação básica, dando relevo ao montante de recursos alocados e a critérios de repartição, bem como à concepção dessas políticas como intergovernamentais. Nas conclusões, realço a centralidade da reconfiguração das responsabilidades governamentais e a insuficiência das ações de assistência financeira da União aos estados e municípios para a minimização das desigualdades educacionais.

 

 

2. Delimitações teóricas e contextuais-normativas: o papel da União na educação básica na inter-relação entre as responsabilidades de cada esfera de governo e a cooperação federativa

 

Para compreender o papel do governo da União no financiamento da educação básica, procuro traçar um panorama das responsabilidades governamentais no setor, com foco na oferta e no financiamento da educação. Reitero que a organização político-administrativa da educação no Brasil combina duas diretrizes basilares: autonomia dos sistemas de ensino (federal, estaduais e municipais) e organização em regime de colaboração. Desse modo, governos estaduais e municipais têm autonomia nas suas respectivas áreas de jurisdição na educação, mas a exercem subordinados a uma regulação posta por normas e ações de caráter nacional, quer dizer, que incidem sobre todos os sistemas.

Como se verá mais adiante, a oferta e o financiamento da educação são ações compartilhadas entre as esferas de governo, nesse marco mais geral de autonomia e interdependência entre as esferas da federação. Assim, é pertinente introduzir o tema de relações intergovernamentais na política educacional.

A noção de relações intergovernamentais diz respeito às relações entre diferentes níveis de governo, variando, na produção acadêmica, modos de abordagem. O estudo dos arranjos administrativos e legais que regem as relações intergovernamentais é importante, mas, conforme Souza (2002), uma orientação teórica que possa avançar no estudo das relações intergovernamentais deveria levar em conta a compreensão de como os conflitos são negociados, ou seja, a negociação política entre os grupos, com ênfase para os atores situados nas diferentes esferas de governo previstas no federalismo brasileiro. O ordenamento constitucional-legal é uma referência, como também o são os conteúdos das políticas e o sistema e as sistemáticas que se estabelecem na implementação das políticas intergovernamentais. O desafio, segundo a autora, seria compreender as políticas de concepção e/ou execução compartilhada entre governos no bojo de uma abordagem que inclua a dimensão política, isto é, o enfoque das relações de poder na negociação de conflitos, considerando a política (como politics) no campo estudado e na sua relação com a política em geral.

Neste artigo, são acentuados arranjos administrativos e legais que estão na base das relações intergovernamentais no setor educacional brasileiro. Não obstante, as ponderações de Celina Souza, acima destacadas, quanto à importância de enfocar a dimensão política das relações intergovernamentais, foram consideradas nas descrições e análises, embora de modo mais secundário. Essa foi a opção da pesquisa que deu origem a este texto, pela avaliação de que a compreensão dos arranjos institucionais envolvidos ainda é etapa pendente de investigação, inclusive para dar suporte a posteriores abordagens que tenham como foco a política nas relações intergovernamentais.

 

Responsabilidades das esferas de governo brasileiras na educação

 

A responsabilidade pela educação escolar brasileira é compartilhada pelos três níveis governamentais, observando: a atuação prioritária dos municípios no ensino fundamental e na educação infantil e a dos estados no ensino fundamental e no ensino médio; a atuação da União na organização e no financiamento da rede pública federal de ensino e na prestação de assistência financeira e técnica aos estados e municípios. Essas responsabilidades podem ser enfocadas pelo lado da oferta e do financiamento da educação, e ambas as faces convocam responsabilidades próprias de cada esfera de governo e interdependência.

A oferta pública na educação básica é historicamente descentralizada, com grande parte da responsabilidade assumida por estados e municípios. Essa situação foi influenciada pelo princípio de autonomia federativa, a partir do início do período republicano, e pela própria configuração da oferta escolar em períodos anteriores. Desse modo, processos recentes de descentralização intergovernamental na educação básica dizem respeito ao ensino fundamental e à educação infantil e significam o crescimento proporcionalmente maior das redes municipais frente às redes estaduais, seja por municipalização de escolas estaduais, seja pelo estancamento da oferta estadual. Em suma, a oferta educacional é compartilhada entre estados e municípios, uma das características da cooperação federativa na educação.

Diferentemente da atribuição a estados e municípios de priorizar uma etapa da educação na oferta educacional, para a União é preceituada a organização e a manutenção da rede federal de ensino, a qual é composta majoritariamente por universidades, institutos federais de educação, ciência e tecnologia, centros federais de educação tecnológica e escolas técnicas. Na prática, as prioridades na oferta são o ensino técnico e a educação superior. A oferta de educação básica é irrisória. No ensino técnico, as matrículas na rede federal representavam 9,6% do total em 2010 (Inep 2010). Na educação superior, a rede federal contava com 99 instituições, o que representava 4,2% do total de instituições de educação superior e 35,6% da categoria instituições públicas. Quanto à matrícula na graduação, a rede federal atendia em torno de 938 mil estudantes, representando 15% do total e 57% dos estudantes de instituições públicas.

Em termos de financiamento, as três esferas de governo possuem responsabilidades. Cada esfera de governo deve aplicar uma parte de suas receitas resultantes de impostos em educação –um mínimo de 18% é a parcela do governo federal e de 25% a dos estados e municípios–, assim como União, estados e municípios contam com frações do salário-educação, contribuição social mensal paga pelas empresas e que se destina ao financiamento da educação básica pública.

A cooperação federativa no financiamento da educação tem se efetivado por meio de uma série de políticas. Podemos apontar o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), vigente de 1997 a 2006, e o atual Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), vigente desde 2007, como os principais mecanismos de colaboração intergovernamental no que diz respeito ao financiamento da educação.

No bojo da colaboração intergovernamental no financiamento da educação básica, é destacada aqui a responsabilidade da União de assistir técnica e financeiramente a estados e municípios, responsabilidade essa inserida em função redistributiva e supletiva para a garantia de equidade e de padrão mínimo de qualidade na oferta educacional. Tal responsabilidade pressupõe e implica a cooperação da União para com os governos subnacionais, delimitada como um dever, esteada em objetivos e funções explicitamente declarados. Assim estabelece o art. 211 da Constituição da República Federativa do Brasil:

 

“A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios, financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino, mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.”

 

Dentre os significados de assistência, no Dicionário Houaiss, encontra-se o de “ato ou efeito de proteger, de amparar, de auxiliar”. Considerando o princípio de autonomia dos sistemas de ensino e a administração autônoma (não delegada) das redes escolares estaduais e municipais pelos respectivos governos, o caráter de apoio e suporte parece ser o que melhor se adéqua à atribuição da União de assistir técnica e financeiramente aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios. A assistência é posicionada como o instrumento que viabiliza o exercício das funções redistributiva e supletiva da União.

O termo técnica significa que os apoios ou suportes são esteados num conhecimento especializado, com base referencial técnico-científica. Essa assistência tem se materializado, principalmente, por meio da oferta de programas de capacitação de profissionais ou membros de conselhos da área da educação, programas de formação inicial de professores, disponibilização de ferramentas de planejamento, gestão e monitoramento de políticas e ações e realização de estudos, levantamentos e avaliações.

Conforme explica Cruz (2009), a assistência financeira da União compreende: 1) assistência financeira direta, que diz respeito a programas em que são distribuídos bens, tal como os programas de livro didático, biblioteca na escola ou informática na educação; 2) assistência financeira automática, a transferência de recursos financeiros em ações que estão previstas na legislação; 3) assistência financeira voluntária, a transferência de recursos financeiros e outros recursos sem que as ações estejam prescritas na legislação.

É preciso sublinhar que a assistência, o modo destacado de efetivar a cooperação, é balizada pelas funções supletiva e redistributiva. A função supletiva justifica-se pelo fato de que a União não atua diretamente na oferta escolar, portanto suas ações de assistência podem complementar e ampliar os recursos (em sentido amplo) estaduais e municipais disponíveis para a educação. É indispensável, contudo, considerar que os objetivos de garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino referenciam a função suplementar, o que significa que a assistência não pode ser pensada como aporte de ações e recursos residuais, uma vez que os desafios de equidade e de qualidade são ingentes. A função redistributiva pode ser interpretada como o desenvolvimento de ações públicas esteadas no princípio da equidade, quer dizer, a priorização da assistência para escolas e redes em situação relativamente desfavorecida. Assim, exercer função supletiva e redistributiva na assistência aos governos subnacionais no setor da educação é dever da União, o que pressupõe uma ação regular e continuada.

 

Alguns elementos contextuais na oferta e no financiamento da educação básica

 

A divisão de responsabilidades na oferta da educação básica entre estados e municípios brasileiros não é equilibrada, se considerarmos a repartição dos recursos tributários. Como se pode ver na Tabela 1, as matrículas nas redes municipais ampliaram-se entre os anos de 1996 e 2010, vindo a representar, em 2010, a maior proporção: 46% do total. Se forem consideradas apenas as matrículas estaduais e municipais, a proporção da oferta municipal fica em 54%.

 

 



 

Essa evolução, na direção de maior quantidade de matrículas nas escolas municipais, se deve a processos de municipalização da educação infantil e do ensino fundamental. Os municípios atendiam, em 2010, 72% da matrícula na educação infantil e 55% no ensino fundamental. No atendimento do ensino médio, contudo, as redes estaduais de ensino predominam, com 86% das matrículas.

Cabe destacar que, a par da repartição da oferta de educação básica no âmbito nacional (Tabela 1), a distribuição de matrículas entre redes estaduais e municipais varia em cada estado da federação, assim como em cada território municipal. É comum entre os estados brasileiros a municipalização e a oferta municipalizada da educação infantil, bem como a oferta estadualizada do ensino médio. Já no ensino fundamental, o movimento de municipalização anda em ritmos diferenciados, resultando em situações de oferta marcadamente municipalizada (como o é em todos os estados do nordeste e também no Pará e no Amazonas) e outras em que ainda predominam as matrículas em redes estaduais: São Paulo, Minas Gerais, Rondônia, Roraima, Acre, Amapá e Tocantins.

Para os objetivos deste texto, o quadro da distribuição da oferta educacional precisa ser confrontado com a distribuição da carga tributária do país e do gasto público em políticas sociais e em educação, pois, desse modo, é possível situar a importância e os desafios da cooperação federativa na educação.

Em 2005,[3] a distribuição da carga tributária disponível no país –aquela apropriada pelas esferas de governo após terem sido feitas as transferências intergovernamentais obrigatórias relativas a impostos e outros tributos– foi a seguinte: 57,89% para a União, 25,75% para os estados e 16,35% para os municípios. Essa distribuição do bolo tributário é inversa à repartição de matrículas na educação básica entre as dependências administrativas públicas, o que evidencia a centralidade da questão da divisão de recursos para o financiamento da educação no contexto do financiamento das políticas sociais.

Segundo Castro e Duarte (2008), de um gasto total público em educação estimado em 87 bilhões de reais em 2005, a repartição por nível de governo foi a seguinte: 16,6 bilhões foi o gasto da União (19%); 36,6 bilhões, o gasto dos estados (42%); 33,8 bilhões, o gasto dos municípios (39%). Essa partilha demonstra o esforço maior realizado pelos estados e pelos municípios, considerando sua atuação direta na oferta de educação básica e a apropriação relativamente menor da carga tributária. Sendo, contudo, a educação, setor que integra as políticas sociais, cabe explicitar a repartição do gasto público social no país, pois consensos e conflitos federativos quanto ao financiamento da educação estão inseridos na agenda política relativa às responsabilidades públicas na política social.[4]

Conforme estudo de Castro et al. (2008), em 2005 o gasto público social distribuiu-se da seguinte maneira entre as esferas de governo: 62%, União; 22%, estados; 16%, municípios. Podemos constatar que é uma distribuição bem diferente daquela do gasto público em educação, uma vez que a educação é um setor financiado principalmente por estados e municípios, como já registrado. Como este texto foca o papel da União no financiamento da educação básica, vejamos a distribuição setorial do gasto social federal: este é fortemente concentrado na previdência (68% do gasto social federal), depois vem a saúde (11%) e a assistência social e a educação (ambos os setores com 6% de participação). No período de 1995 a 2005, o gasto social federal passou de uma proporção de 11,24% para 13,82% do PIB. A par desse agregado, a proporção do PIB entre as áreas de política social variou positiva ou negativamente, do que são exemplos: previdência social geral, de 5% para 7% do PIB; benefício a servidores públicos federais, de 2,5% para 2,3% do PIB; assistência social, de 0,1% para 0,8% do PIB; educação, de 1,0% para 0,8% do PIB. Nos dados do estudo de Castro e Duarte (2008), o gasto público em educação teve, nesse mesmo período, um aumento real, de 61 bilhões para quase 87 bilhões de reais, mas a participação relativa da União diminuiu, crescendo mais, pela ordem, a dos municípios e a dos estados.

Na compreensão do contexto em que se inserem referências e ações públicas na política social, cabe assinalar as tensões e as contradições que permeiam a agenda pública, no que diz respeito ao confronto entre as opções de bem-estar social e de política macroeconômica. A Constituição da República de 1988 avançou na afirmação da cidadania social. Como ponderam Castro e Cardoso Jr. (2005), contudo, as opções de política macroeconômica adotadas no período subsequente impuseram estratégias de financiamento e gestão das políticas públicas no sentido de limitar a necessidade de gastos públicos sociais, especialmente na esfera federal.

 

 

3. Políticas de assistência financeira da União: escopo, magnitude e prioridades

 

Realizei um mapeamento e uma caracterização de políticas de assistência financeira automática da União a estados e municípios: Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar); PDDE (Programa Dinheiro Direto na Escola); complementação da União ao Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação); Pnate (Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar). As quatro ações são geridas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia que faz parte da estrutura do Ministério da Educação e que é responsável pela formulação de políticas e/ou pela efetivação de transferências financeiras e de outros recursos a governos, instituições ou pessoas.

Considerando o ano de 2010, pontuo a seguir, de modo sucinto, objetivos, recursos disponíveis, beneficiários e focalizações previstas nessas ações, bem como algumas observações quanto à representatividade do aporte de recursos da assistência financeira da União no âmbito de cada política.

 

Caracterização geral das políticas

 

O Programa Nacional de Alimentação Escolar caracteriza-se pela transferência de recursos a estados e municípios para a compra de gêneros alimentícios para alunos da educação básica, objetivando atender a necessidades nutricionais e formar hábitos alimentares saudáveis. O montante de recursos transferidos em 2010 ficou em torno de três bilhões de reais, visando a beneficiar 45,6 milhões de estudantes. São repassadas 10 parcelas mensais, considerando 20 dias letivos por mês, calculadas pela multiplicação do número de alunos por valores per capita diferenciados por aluno/dia: R$ 0,30 para pré-escola, ensino fundamental, ensino médio e educação de jovens e adultos; R$ 0,60 para creches e escolas indígenas e quilombolas; R$ 0,90 por dia para educação em tempo integral.[5]

O Pnae garante, para a maioria das situações, a compra de gêneros alimentícios para uma merenda diária, o que é indispensável, mas bem aquém de projetos de oferta de uma jornada escolar mais extensa. De um universo de 164 mil escolas públicas estaduais e municipais de educação básica, um valor diário maior por aluno/dia está previsto apenas para: 9.660 escolas públicas que oferecem ensino fundamental e/ou ensino médio em tempo integral; 1.663 escolas de áreas remanescentes de quilombos; 2.666 escolas indígenas; e 23 mil escolas que oferecem educação infantil (nestas, o repasse de R$ 0,66 por criança/dia letivo só está previsto para a matrícula na creche).

O Programa Dinheiro Direto na Escola transfere recursos a escolas públicas, almejando contribuir para a melhoria física e pedagógica das escolas, o reforço da autogestão escolar e a elevação de desempenho da educação básica. Em 2010, além do PDDE/Manutenção, que se destina a todas as escolas, havia, entre outras, as seguintes modalidades, que implicavam o repasse de recursos adicionais: PDE-Escola (Plano de Desenvolvimento da Escola); Funcionamento das Escolas nos Finais de Semana (FEFS), Educação Integral. Foram beneficiados mais de 41 milhões de alunos pela ação PDDE/Manutenção, de 137.640 escolas; pela ação PDDE/FEFS, 1.893.594 estudantes de 2.223 escolas; pelo PDDE/Educação Integral, 5.993.270 alunos de 9.660 escolas; pelo PDDE/PDE Escola, 10.007.894 alunos de 16.643 escolas. As transferências ficaram em torno de R$ 1,4 bilhão. Além disso, as escolas públicas rurais da educação básica receberam parcela extra de 50%, a título de incentivo.

No PDDE/Manutenção, os valores por aluno/ano apresentaram a seguinte variação, considerando a parcela mínima a ser destinada a cada escola, dividida pelo número mínimo de alunos: para escolas públicas do norte, do nordeste e do centro-oeste, os valores variam de R$ 9,50 a 28,60 por aluno/ano; para escolas do sudeste e do sul, a variação é de R$ 7,30 a R$ 23,80 por aluno/ano.[6] São valores extremamente baixos, que permitem às escolas a compra de materiais ou a contratação de serviços de primeira necessidade e não o desenvolvimento de projetos que oportunizariam diferenciais em termos de qualidade nas condições de oferta educacional.

As modalidades do PDDE expressam prioridades, de acordo com critérios específicos. As escolas que podem receber o benefício do PDDE/PDE Escola são as públicas consideradas prioritárias em função de seu índice de desenvolvimento da educação básica (Ideb)[7] relativamente mais baixo. O benefício variou de 15 a 75 mil reais por escola, conforme faixas de número de alunos. No PDDE/FEFS, podem ser incluídas escolas urbanas de regiões metropolitanas, com população com alto grau de vulnerabilidade social. As escolas passíveis de serem atendidads pelo PDDE/Educação Integral são aquelas que se enquadram em algumas condições, entre elas: localização em capitais e cidades com mais de 100 mil habitantes de região metropolitana ou entorno de capital; cidades com mais de 50 mil habitantes de estados com pouca densidade populacional, para atuarem como polos; escolas com Ideb relativamente mais baixo e de territórios com população com alto grau de vulnerabilidade social.

A complementação da União ao Fundeb é a transferência de recursos a fundos estaduais cujos recursos próprios do estado e dos municípios não garantem o valor mínimo nacional por aluno; o Fundeb visa a manter e desenvolver a educação básica e a valorizar os profissionais da educação.

A complementação da União ao Fundeb propicia aos estados beneficiários uma elevação apreciável na sua disponibilidade de recursos financeiros para a educação básica. Em 2010, foram transferidos em torno de seis bilhões de reais, para nove estados. A estimativa de valor mínimo anual por aluno nos estados beneficiários da complementação em 2010 foi de R$ 1.414,85.[8] Nos demais 17 estados e no Distrito Federal, a situação dessa estimativa de valor aluno/ano foi a seguinte: em um estado, Roraima, o valor-base mínimo estimado foi R$ 2.664,97, perto do dobro do mínimo nacional; em cinco estados e no Distrito Federal, entre R$ 2.003,00 e R$ 2.300,00; em outros 11 estados, o valor foi pouco superior ao mínimo nacional e até dois mil reais. O montante de complementação da União garante certa aproximação entre valores mínimos dos fundos estaduais, diferentemente do que ocorreu na vigência do Fundef. Por exemplo, em 2006, último ano de vigência do Fundef, o valor-base mínimo nacional foi de R$ 682,60, no Maranhão e no Pará. O maior valor, em Roraima, era mais do que o triplo (R$ 2.242,56) e em 12 estados era mais do que o dobro do mínimo nacional.

O Programa Nacional de Apoio ao Transporte do Escolar transfere recursos a estados e municípios, objetivando garantir o acesso e a permanência na educação básica de alunos residentes em áreas rurais que necessitam de transporte escolar. Em 2010, foram transferidos recursos prevendo beneficiar 4,9 milhões de estudantes. No mesmo ano, o valor transferido por aluno/ano variou de 120 a 170 reais, tendo sido alocados R$ 596,5 milhões. O cálculo do valor a ser repassado depende do Fator de Necessidade de Recursos do Município (FNRM), índice que leva em conta: o percentual da população que reside na zona rural; a área do município; o percentual da população abaixo da linha de pobreza; o Ideb. Os recursos podem ser aplicados em diversas despesas correntes e para contratar serviços de terceiros.

Os recursos transferidos pelo Pnate cobrem despesas correntes, estão bem aquém da cobertura dos custos do transporte escolar; grande parte do transporte escolar no Brasil é realizada pelos municípios, inclusive dos estudantes das redes estaduais. Para cobrir os custos da oferta de serviços, os municípios contam com os recursos repassados por meio do Pnate, recursos adicionais dos governos estaduais e recursos próprios.

Esse panorama das quatro políticas é complementado no item a seguir. Tais políticas são tomadas para ilustrar inflexões havidas na política de assistência financeira da União nos anos mais recentes.

 

Aspectos políticos expressos nas políticas

 

No setor da educação, há décadas a legislação federativa prescreve a assistência técnica e financeira da União aos governos subnacionais, a qual, na prática política, assumiu traços distintivos ao longo do tempo, num movimento que pode ser olhado no sentido de maior democratização das relações entre os níveis de governo, no contexto de um país federativo. Conforme Luce e Farenzena (2007), o traço misto –clientelista e tecnocrático– da assistência financeira e técnica da União aos estados e municípios, que atravessou as décadas de 1960, 1970 e 1980, transitou, entre os anos 1990 e 2000, para a oferta de políticas de assistência de escopo mais universalizado e com base em critérios mais explícitos e publicizados.

Ao falar desse traço clientelista característico da assistência financeira da União aos estados e municípios no setor da educação, podemos lembrar a difundida representação do FNDE como um dos órgãos federais do chamado balcão de negócios, através do qual se intercambiam recursos financeiros e apoio político, na dependência das intermediações político-partidárias, político-eleitoriais e dos interesses dos ocupantes de cargos dirigentes na administração pública federal.

Entendo que as políticas aqui tratadas são expressão de uma significativa inflexão nessa política de marca clientelista, uma inflexão que foi sendo construída progressivamente, a partir de denúncias, pressões e propostas dos setores interessados num jogo mais aberto e democrático para distribuição dos recursos da União. Uma inflexão, contudo, não significa abandono completo de práticas historicamente constituídas. O estudo de Cruz (2009) mostra que, no que diz respeito à assistência financeira voluntária, nos anos de 2001 a 2006 houve benefícios relativamente maiores apenas para dois dos sete estados mais pobres da federação, o que põe em xeque a função redistributiva no que concerne às ações voluntárias de assistência.

Outro destaque que demarca a política de assistência financeira da União é a concepção de seu caráter suplementar. As quatro políticas aqui focalizadas são concebidas pelo Ministério da Educação como programas suplementares ou complementação, sendo que esse termo é conotado como o aporte, por parte da União, de apenas uma fatia dos recursos necessários para o cumprimento dos seus objetivos finalísticos. Os governos dos estados e as prefeituras aportam os demais recursos para as respectivas finalidades, recursos esses, na maioria dos casos, bem superiores aos alocados pelo governo da União.

Cabe acrescentar neste item uma referência à assistência voluntária aos governos subnacionais, uma vez que a inflexão na política, acima referida, incidiu também nessa dimensão da assistência, no segundo mandato do presidente Lula da Silva. Em 2007, iniciou a implementação da política denominada Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação (Plano de Metas),[9] integrante do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), lançado no primeiro semestre de 2007 pelo Ministério da Educação.

A adesão ao Plano de Metas é, desde 2007, requisito para que os governos se habilitem a receber transferências voluntárias da União; quer dizer, a previsão é de que a assistência voluntária seja direcionada às redes escolares públicas com índices mais baixos de desenvolvimento da educação básica (Ideb) e que se comprometam com as metas do Plano de Metas e dos Planos de Ações Articuladas (PAR). As quatro políticas que abordo estão –todas e de vários modos– articuladas às ações previstas no PAR: capacitação de conselheiros dos conselhos de alimentação escolar e de educação; plano de desenvolvimento da escola; Funcionamento das Escolas nos Finais de Semana e Educação Integral (do PDDE); capacitação de dirigentes municipais de educação e outras ações para aperfeiçoar a aplicação e o controle dos recursos do Fundeb. Além disso, o principal indicador presente no Plano de Metas, o Ideb, é levado em conta para a definição dos beneficiários das modalidades do Programa Dinheiro Direto na Escola. Também é levado em conta na definição de coeficientes para transferência de recursos do Pnate.

Outra perspectiva de análise da ação política de assistência financeira da União diz respeito aos critérios para priorizar a alocação de recursos. Os principais, considerando as quatro políticas, podem ser agrupados em diferentes categorias, como proponho a seguir.

·         Critério socioeconômico/étnico: valor aluno/dia do Pnae é maior para escolas de comunidades indígenas e quilombolas.

·         Critério socioeconômico/demográfico: parcela extra do PDDE/Manutenção para escolas públicas rurais de educação básica; o fator de necessidade de recursos do município, do Pnate, leva em conta o percentual da população na zona rural; o Pnate, em si, beneficia alunos das zonas rurais; as modalidades do PDDE/Educação Integral e do PDDE/Funcionamento das Escolas nos Finais de Semana priorizam escolas de capitais e regiões metropolitanas.

·         Critério socioeconômico/vulnerabilidade social: recursos do PDDE/Educação Integral e do PDDE/Funcionamento das Escolas nos Finais de Semana para escolas de regiões metropolitanas com alto grau de vulnerabilidade social.

·         Critério regional: valores de repasse maiores do PDDE/Manutenção para as regiões norte, nordeste e centro-oeste.

·         Critério desempenho: destinação de parcela extra, em 2010, de recursos do PDDE/Manutenção para escolas que tivessem atingido a meta do Ideb de 2009; recursos do PDDE/Plano de Desenvolvimento da Escola e PDDE/Educação Integral para escolas com baixo Ideb.

·         Critério capacidade de financiamento público da educação: complementação da União ao Fundeb dos estados cujos recursos municipais e estaduais próprios não garantem o valor mínimo nacional por aluno fixado no âmbito do próprio fundo. Indiretamente, o critério aqui também é regional, uma vez que os estados beneficiados localizam-se no nordeste e no norte, onde a disponibilidade de recursos públicos é relativamente menor.

 

As políticas de assistência financeira da União aos estados e aos municípios procuram incidir em diferentes dimensões das desigualdades educacionais e sociais. O critério socioeconômico, que prioriza a população mais pobre, combina-se com algum critério adicional: étnico, para priorizar indígenas e negros que vivem em comunidades quilombolas; demográfico, para priorizar populações que vivem nas zonas rurais; vulnerabilidade social, para priorizar populações urbanas de regiões metroplitanas considerando não apenas os níveis de pobreza, mas também outros indicadores, como a composição familiar, as condições de saúde e o acesso a serviços de saúde, níveis/graus de violência e acesso a serviços educacionais.

O critério regional também é, de fato, socioeconômico, pois a prioridade à destinação de recursos para as regiões mais pobres –norte, nordeste e centro-oeste– nada mais é do que a prioridade àquelas com índices de pobreza relativamente maiores. O critério capacidade de financiamento público da educação está ligado ao critério regional e socioeconômico, basta verificar que os recursos de complementação da União vão para sete estados do nordeste e para dois estados da região norte. O critério de desempenho, diferentemente do critério regional, permite uma focalização na população mais pobre dos diferentes estados das diferentes regiões, considerando a correlação entre indicadores de desempenho escolar e níveis de pobreza da população.

Nessa composição que venho traçando para distinguir e articular normas, políticas e a política da União no financiamento da educação básica por meio da assistência financeira aos estados e aos municípios, trago outra peça, no item que segue: os gastos do FNDE, com realce para as transferências constitucionais e legais.

 

Magnitude da assistência financeira da União a estados e municípios

 

Em 2006, segundo o estudo de Cruz (2009), o FNDE foi responsável pela execução orçamentária de 78% dos recursos do Ministério da Educação voltados para a educação básica. Ainda segundo essa autora, o padrão de financiamento adotado pelo FNDE “revela o padrão geral adotado pelo governo federal em relação à educação de estados e municípios, ou seja, em relação à função supletiva e redistributiva definida constitucionalmente para a União, voltada à minimização das desigualdades educacionais no país” (Cruz 2009:363). Por esse motivo, dada a dificuldade de obtenção de informações sobre o total de recursos federais investidos na educação básica na modalidade assistência a estados e municipios, registro os gastos do FNDE, pressupondo que agregam a maior parte do gasto federal nessa modalidade.

 



Os dados da Tabela 2 oferecem uma medida razoável da distribuição e da magnitude da assistência financeira da União. As transferências legais e constitucionais triplicaram entre 2006 e 2010, principalmente pela progressão da complementação da União ao Fundeb. Essa complementação, em 2008, foi nove vezes maior que a complementação ao Fundef em 2006. O valor de 2010 é 67% a mais que o valor da complementação em 2008. Das demais políticas consideradas nessa categoria, o PDDE foi a que teve crescimento mais expressivo em volume de recursos, os quais foram multiplicados três vezes e meia considerando 2010 e 2006. No ano de 2009, as transferências do Pnae, do Pnate e do PDDE passaram a ser calculadas tendo por base a matrícula de toda a educação básica, elevando seus montantes e, por consequência, o valor do conjunto das transferências constitucionais e legais.

O salário educação foi registrado separadamente, pois se trata de uma contribuição arrecadada pela Receita Federal com uma fatia que deve ser repassada aos estados e municípios, a qual representa, atualmente, em torno de 60% do total arrecadado; no relatório de 2009 do FNDE, por exemplo, é posicionado na categoria repartição de receita e não na de transferência constitucional e legal. O crescimento real do seu valor no período tem a ver com o crescimento da própria economia e do nível de formalização do trabalho, uma vez que a contribuição é calculada sobre a folha de pagamento das empresas.

Considerando os dados de 2006, 2008 e 2009, as transferências legais e constitucionais somadas aos valores de repartição do salário educação tiveram muita expressividade, chegando a representar 93% em 2009. Em 2010, sua proporção foi mais reduzida. Nesse ano, o FNDE assumiu novas funções: gestão do sistema de bolsas de estudos e pesquisas da Universidade Aberta do Brasil e agente operador do Fundo de Financiamento ao Ensino Superior não gratuito (FIES) –a concessão de financiamento estudantil a discentes matriculados em instituições não gratuitas. Não foi possível, até esse momento, a obtenção de informações que permitam comparar os dados de 2010 com os de anos anteriores no que toca à educação básica.

Tomando o ano de 2009, pois esse foi um ano de atuação típica, o gasto do FNDE (pouco mais de R$ 18 bilhões) dividido pelo número de alunos da educação básica pública (45.052.972) resulta em R$ 401,42. Subtraindo do gasto total o valor da transferência de salário educação, o gasto por aluno baixa para R$ 265,62. Nesse mesmo ano, o valor médio de gasto público aluno/ano –que leva em conta os dados das três esferas de governo– na educação básica foi estimado em R$ 3.453,43[10] (INEP, 2012). A representatividade do gasto por aluno do FNDE frente ao gasto público por aluno da educação básica, a partir dessa medida de comparação, pode ser adjetivada como extremamente baixa.

 

 

4. Conclusões

 

Preliminarmente, neste artigo, situei responsabilidades da União na educação, buscando interpretá-las no marco das diretrizes político-administrativas da organização da educação nacional e de especificidades da oferta e do financiamento da educação no Brasil. Num país em que as matrículas públicas de educação básica estão predominantemente concentradas em redes estaduais e municipais de ensino, o ordenamento constitucional-legal prescreve como dever da União a prestação de assistência financeira e técnica a essas redes, no exercício de função supletiva e redistributiva, visando à garantia de padrão mínimo de qualidade do ensino e equalização de oportunidades educacionais.

Para adentrar o exame da política e das políticas de assistência federal aos governos subnacionais na educação, trabalhei com as principais políticas de assistência financeira automática a estados e municípios –Pnae, Pnate, PDDE, complementação ao Fundeb– a fim de aproximar-me da materialidade do exercício das funções supletiva e redistributiva, caracterizando seu escopo e benefícios, bem como os critérios para priorizar a alocação de recursos no interior de cada uma das políticas examinadas. Os gastos por aluno da soma das quatro políticas, bem como do gasto do FNDE, foram estimados para oferecer alguma medida de avaliação do esforço representado pela assistência da União.

Para a área da educação, a Constituição de 1988 inscreveu preceitos que direcionam para a universalização das políticas públicas no setor, inclusive para políticas de natureza redistributiva, dado o princípio de igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola, bem como a gratuidade do ensino público e a garantia, por parte do Estado, de padrões de qualidade do ensino. A arquitetura e as práticas setoriais da divisão e do compartilhamento de responsabilidades governamentais têm centralidade na demarcação de limites e possibilidades quanto à garantia de universalização e de igualdade na educação.

As desigualdades persistentes no acesso à educação e nas condições de qualidade da educação estão associadas aos desequilíbrios entre oferta de educação e capacidade de financiamento da educação entre os entes federativos que são os principais responsáveis pela oferta educacional. Assim, pensar em justiça na educação inclui problematizar as responsabilidades e as relações federativas, no que sobressai o debate sobre o papel da União.

A sinalização da política de assistência da União do período mais recente é para políticas universalizantes, com focalizações. Os critérios para o exercício da função redistributiva da União podem ser qualificados como pertinentes diante das diferentes nuances da desigualdade social e educacional do país, atentando para as desigualdades de renda, regionais, de etnia/cor, de residência urbana ou rural da população. O problema não é este. O problema é o assunto com o qual iniciei este texto, é a insuficiência de recursos para implementar políticas universalizantes que tenham resultados redistributivos e para que as focalizações surtam os efeitos compensatórios que deveriam surtir. Não são os valores de assistência da União à educação básica de redes estaduais e municipais atualmente praticados que garantirão maior justiça escolar, seja qual for a dimensão considerada: igualdade de acesso, de oportunidades ou de resultados na educação.

 

 

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* Doutora e mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); graduada em Ciências Sociais (PUCRS). Professora da área de Política e Gestão da Educação, da Faculdade de Educação, e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS. E-mail: nalu.farenzena@gmail.com

[1] A educação brasileira compreende dois níveis: educação básica e educação superior. A educação básica é composta das seguintes etapas: 1) educação infantil –que se subdivide em creche (para crianças de zero a três anos de idade) e pré-escola (para crianças de quatro e cinco anos de idade); 2) ensino fundamental, que tem nove anos de duração, destinado-se a crianças, a partir dos seis anos de idade, e a adolescentes (bem como a jovens e adultos que não tiveram acesso a ele na idade adequada); 3) ensino médio, para concluintes do ensino fundamental, sendo mais comum a oferta em três anos.

[2] INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, do Ministério da Educação (MEC).

[3] Trabalho aqui com dados de 2005, pois é para esse ano que contamos com estudos detalhados sobre o gasto em educação e o gasto social por esfera de governo.

[4] Por óbvio, a problemática é mais profunda; refere-se também ao gasto público como um todo, não apenas à política social. São determinantes as influências da política macroecômica na política de gasto público federal, por exemplo, as restrições impostas pela taxa de juros, amortizações da dívida pública e geração de superavit primário. Mesmo assim, apenas faço esse registro e, dados os limites deste artigo, priorizo a referência ao gasto social.

[5] Programa de oferta de educação em tempo integral, por meio da frequência a atividades no contraturno escolar, chamado Mais Educação.

[6] A regulamentação do PDDE prevê nove intervalos (faixas) de número de alunos, cada qual com um valor fixo para o número mínimo de alunos da faixa e uma parcela variável, esta no valor de R$ 4,20 para cada aluno a mais do número mínimo da faixa.

[7] O Ideb, criado pelo Inep em 2007, é um indicador de qualidade educacional que combina informações de desempenho em exames padronizados (Prova Brasil ou sistema de avaliação da educação básica) de alunos das etapas de ensino (4ª e 8ª séries do ensino fundamental e 3ª série do ensino médio) com informações sobre o rendimento escolar (aprovação), calculado a partir dos dados obtidos no Censo Escolar. Varia de 0 a 10, é divulgado a cada dois anos; já foram divulgados até o momento os índices de 2005, 2007 e 2009, por escola e por rede de ensino.

[8] Como há valores mínimos para cada etapa, modalidade e tipologias de escola, a referência aqui é ao valor mínimo do ensino fundamental/anos iniciais, nas escolas urbanas.

[9] O Plano de Metas, regulamentado pelo Decreto 6.094/07, está pautado em 28 diretrizes, propõe a adesão de estados e municípios; prevê a formulação e a implementação de um plano, visando à melhoria da qualidade da educação básica e na perspectiva de evolução positiva do Ideb. O Ideb é concebido como um indicador para monitorar a evolução da situação educacional, compreendendo metas intermediárias (a cada dois anos) e finais (2020).

[10] O valor nominal do gasto público na educação básica por aluno em 2009 foi de R$ 2.972,00; fiz a correção desse valor pelo IPCA, para março de 2012 (o mesmo procedimento da atualização de valores de gasto do FNDE).

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