Em diversas partes do mundo identificar-se como uma pessoa lésbica, gay, bissexual, transgênero ou travesti (LGBT) pode resultar em perda de direitos, ser alvo de violência e, até mesmo, perigo de morte (Redcay et al., 2019). Tal intolerância pode ocorrer em diferentes âmbitos, como organizações, instituições familiares, religiosas, educacionais e de saúde (Salgado et al., 2017). No Brasil, país com maior índice de registro de crimes letais contra pessoas LGBT (Mendes & Silva, 2020), o Supremo Tribunal Federal (2019) instituiu a homofobia e transfobia como crimes equiparados aos atos de racismo.
Mesmo em contextos com legislações protetivas, pessoas LGBT continuam sendo estigmatizadas, especialmente em países com culturas conservadoras (Redcay et al., 2019). Ainda, violências tidas como silenciosas ou sutis têm se tornado cada vez mais frequentes, por não serem denunciadas ou consideradas nos termos da lei (Souza et al., 2017). Dentre as violências sutis estão as microagressões, definidas como abjeções verbais, comportamentais ou ambientais, que transmitem desprezos e insultos e são direcionadas a grupos minorizados, como as pessoas LGBT (Resnick & Galupo, 2019). Mesmo que sutis e breves, elas impactam negativamente suas vítimas, causando baixa autoestima, depressão, traumas (Nadal, 2019), tristeza, afastamento de atividades regulares e ideação ou tentativa de suicídio (Parr & Howe, 2019).
As discriminações sutis contra pessoas LGBT no trabalho costumam ser menos percebidas do que atos de violência física ou sexual (Souza et al., 2017). Todavia, elas podem impactar em sua inserção e permanência no mercado de trabalho, aliadas à negligência de direitos básicos e a vulnerabilidade social. A pessoas transgênero enfrentam ainda mais dificuldades, como altas taxas de desemprego, subemprego e insatisfação no trabalho, além de serem direcionadas a trabalhos informais, autônomos e prostituição (Costa et al., 2020).
Diante de microagressões sofridas no trabalho, pessoas LGBT costumam empregar diferentes estratégias de enfrentamento, como permanecerem passivas diante da agressão (não reagindo e ignorando os comentários negativos, mesmo sendo afetadas negativamente), confrontarem a pessoa agressora (reagindo ativamente e desafiando-a) ou emitindo comportamentos de autoproteção (agirem cautelosamente para garantir sua segurança física, como manter-se atentas ao ambiente) (Nadal et al., 2011; Papadaki et al., 2021). Acerca das possíveis reações cognitivas a tais eventos, elas tendem a aceitar que tais agressões fazem parte da vida de uma pessoa LGB, a buscar se empoderar para responder às pessoas agressoras, ou a assumir sua orientação sexual, caso ainda não o tenham feito (Papadaki et al., 2021).
A literatura que aborda essas discriminações a pessoas LGBT no trabalho e seu impacto ainda é relativamente incipiente (Richard, 2021), mais ainda em se tratando de instrumentos de medida voltados para investigar explicitamente as microagressões direcionadas a esta parcela da população. Os poucos estudos quantitativos tendem a realizar alterações na redação de medidas que investigam discriminação racial, para que possam ser aplicadas às pessoas LGBT (Medina, 2022). Considerando que é de suma importância investigar ocorrência e impacto de tais experiências nas pessoas LGBT, tem-se que os instrumentos de medida especificamente construídos para elas podem constituir uma importante estratégia de investigação.
A Escala de Experiências de Microagressões LGBT no Trabalho/EEM-LGBT (LGBT Microaggression Experiences at Work Scale, LGBT-MEWS) é um instrumento de medida desenvolvido nos Estados Unidos para investigar este tipo de discriminação. Diferentes estratégias foram adotadas em sua elaboração: revisão de literatura, relatos de pessoas LGBT que sofreram microagressões no local de trabalho e análise de instrumentos que investigavam experiências heterossexistas, envolvendo estratégias tanto indutivas quanto dedutivas (Resnick & Galupo, 2019).
Inicialmente, 64 itens foram elaborados e submetidos a investigação de evidências de validade baseadas no conteúdo e de estrutura interna, por meio de análises fatoriais exploratória (AFE) e confirmatória (AFC). A versão final é composta por 27 itens distribuídos em três dimensões com os seguintes índices de índices de ajuste χ2 (321) = 1226,30; p< 0,001; CFI = 0,76; SRMR = 0,08; RMSEA = 0,09; 90 % (0,091, 0,102) e de confiabilidade (alfa de Cronbach) entre 0,82 e 0,93. Apesar de o CFI (Índice de ajuste comparativo) estar abaixo do recomendado, com o SRMR (Raiz quadrada padronizada da média residual), RMSEA (Root Mean Square Error of Approximation) e o intervalo de confiança abaixo de 0,10, houve rejeição do teste de inadequação, indicando o uso do instrumento (Resnick & Galupo, 2019).
O modelo tridimensional oriundo da construção da medida é composto por: (1) valores no local de trabalho, (2) suposições heteronormativas, e (3) cultura cisnormativa. A dimensão valores no local de trabalho está relacionada ao sistema de valores gerais de uma organização, envolvendo as interações interpessoais dos trabalhadores LGBT com seus colegas (como piadas depreciativas e insultos), além de seu status no trabalho relacionado à contratação, promoção, escala de pagamento e segurança no emprego (Resnick & Galupo, 2019). A dimensão suposições heteronormativas descreve o heterossexismo cotidiano no trabalho que invalida a experiência e a identidade dos profissionais LGBT, como pressuposição de que a pessoa é heterossexual e afirmações para marginalizar, invalidar ou desprestigiar suas experiências enquanto pessoa LGBT (Resnick & Galupo, 2019). Vale destacar que, tradicionalmente, tem-se que algumas organizações podem apresentar uma cultura mais heteronormativa do que outros espaços sociais, especialmente quando compostas predominantemente por homens cis heterossexuais (Palo & Jha, 2020). A dimensão cultura cisnormativa está relacionada ao desrespeito à identidade e/ou expressão de gênero da pessoa e como ela é vivenciada no trabalho, reforçando que as pessoas se identificam com o sexo atribuído no nascimento, desconsiderando a multiplicidade de identidades e expressões de gênero. Isto envolve ausência de políticas inclusivas relacionadas com a utilização da banheiros, linguagem neutra e código de vestimenta. Para o modelo, essa separação entre dimensões é de suma importância para reforçar que há diferenças nas microagressões sofridas por pessoas transgênero (Resnick & Galupo, 2019).
Uma pesquisa quantitativa realizada com 325 profissionais LGBT americanos, utilizando a EEM-LGBT, identificou que microagressões predisseram positivamente estresse no trabalho (( = 0,23, p < 0,001), sintomas de estresse (( = 0,05, p < 0,001), de depressão (( = 0,05, p < 0,001) e de ansiedade (( = 0,06, p < 0,001), bem como predisseram negativamente satisfação no trabalho (( = -0,17, p < 0,01). Os resultados também evidenciaram que mesmo as pessoas que não se identificam abertamente como LGBT podem também sofrer discriminação (Richard, 2021).
Outra pesquisa também quantitativa com 88 profissionais americanos cisgêneros e LGB, adotou a EEM-LGBT, identificou as variáveis preocupações com a aceitação (( = 0,24; p= 0,034) e motivação para ocultação da orientação sexual (β = 0,49; p< 0,001) como preditoras de microagressões (F(2, 85) = 9,97; p< 0,001; R 2 = 0,19). Ainda, microagressões não predisseram significativamente a satisfação com o relacionamento amoroso (Medina, 2022). Por fim, outra pesquisa quantitativa, realizada com 314 profissionais LGBT residentes no Canadá (66 %) e nos Estados Unidos (34 %) e adotando a EEM-LGBT, identificou alta correlação entre incivilidade (comportamento rude e desrespeitoso) e microagressões (r= 0,64; p< 0,001). Os resultados indicaram que a relação entre microagressões e engajamento no trabalho (b= -0,10; p< 0,05) foi considerada significativa apenas quando em conjunto com outness (grau em que uma pessoa revela sua orientação sexual e/ou identidade de gênero) como uma potencial variável moderadora (Sooknanan, 2023).
Apesar de as pessoas LGBT serem um dos grupos mais marginalizados nas organizações brasileiras, há carência de pesquisas sobre suas vivências no ambiente de trabalho (Zanin, 2019). Quanto às microagressões a pessoas LGBT no trabalho, não há instrumento de medida para investigar sua ocorrência no Brasil, dificultando a identificação da sua ocorrência, os seus impactos e o desenvolvimento de estratégias para impedi-las. Diante de tais lacunas, visando fomentar novos estudos e auxiliar as organizações na gestão da diversidade, esta pesquisa buscou adaptar e obter evidências de validade de estrutura interna da EEM-LGBT para o contexto brasileiro.
A opção pela adaptação de um instrumento internacional foi embasada nas vantagens de tal procedimento em comparação com o desenvolvimento de uma nova medida. Dentre elas, a possibilidade de comparar dados coletados com a mesma medida em amostras de diferentes contextos e populações, tornando a avaliação mais equivalente, e maior capacidade de generalizar dos resultados (Borsa et al., 2012).
Método
Esta seção foi seccionada em duas partes. A primeira delas corresponde ao processo de tradução e adaptação transcultural do instrumento para o contexto brasileiro. A segunda delas corresponde ao processo de busca das evidências de validade de estrutura interna.
Parte 1: Tradução e adaptação transcultural da escala
Autoras da versão original da EEM-LGBT foram consultadas e autorizaram a realização da pesquisa. A adaptação seguiu as seguintes etapas: tradução do instrumento para o novo idioma, síntese das versões traduzidas, avaliação por experts, avaliação pelo público-alvo e tradução reversa (Bandeira & Hutz, 2020; Borsa et al., 2012).
A tradução do instrumento do inglês para o português brasileiro foi realizada por três pessoas nativas em português e fluentes em inglês, estudiosas da área de Psicologia e pertencentes ao público-alvo da pesquisa (dois homens cisgênero gays e uma mulher cisgênero lésbica), selecionadas de forma intencional pela equipe de pesquisa, em decorrência das características supracitadas, e contatadas por e-mail. Posteriormente, a equipe analisou as três versões traduzidas para obtenção de uma única versão, avaliando as discrepâncias semânticas, linguísticas, contextuais e conceituais.
Um comitê de juízes experts avaliou individualmente a equivalência entre a versão traduzida e o instrumento original quanto à equivalência semântica, idiomática, experimental e conceitual. O comitê foi composto por quatro pesquisadores da área de Psicologia (três docentes com doutorado e um mestrando), experientes em construção e adaptação de instrumentos, sendo que dois deles faziam parte do público-alvo da pesquisa, cuja seleção também foi intencional e o contato por e-mail. Os apontamentos foram analisados pela equipe de pesquisa, considerando a equivalência conceitual com a versão original e a proporção de concordância dos juízes, calculada pelo Índice de Validade de Conteúdo (IVC). A interpretação considerou desejável o IVC acima de 0,80 (Alexandre & Coluci, 2011).
Em seguida, quatro pessoas do público-alvo avaliaram a compreensão da versão oriunda da etapa anterior, sendo elas um homem cisgênero gay pós-graduado em Marketing, um homem cisgênero bissexual graduando em Engenharia Mecânica, uma mulher cisgênera lésbica graduanda em Medicina Veterinária e uma mulher transgênero heterossexual com ensino médio completo, cuja amostragem se deu por bola de neve e o contato por e-mail. Elas foram entrevistadas individualmente, lendo em voz alta cada tópico do instrumento e explicando sua compreensão dele. Quando informaram problemas na compreensão, foram solicitadas a sugerir sinônimos e alterações a nível semântico. Ao final, as sugestões foram avaliadas pela equipe de pesquisa considerando clareza, equivalência à versão original e frequência de sugestões de alterações.
Por fim, o instrumento foi traduzido de português para inglês por uma tradutora profissional, nativa em português brasileiro e com nível superior em Psicologia. A versão retrotraduzida foi analisada pela equipe de pesquisa e enviada para as autoras do instrumento original, para identificar inconsistências e erros conceituais entre as versões.
Parte 2: Investigação das evidências de validade de estrutura interna e confiabilidade da EEM-LGBT para o contexto brasileiro
Participantes
Participaram desta pesquisa 226 profissionais LGBT, de 18 a 56 anos (M= 28,50; DP= 7,13), sendo 57,40 % do gênero masculino (n= 128), 38,56 % feminino (n= 86) e 4,04 % não binário (n= 9). Pessoas transgênero ou travestis constituíram 11,95 % (n= 27) da amostra, sendo que 6,64 % (n= 15) delas afirmaram possuir um nome social.
Os(a) participantes se identificaram como gays (51,35 %; n= 114), bissexuais (22,98 %; n= 51), lésbicas (20,72 %; n= 46), pessoas (transgênero) heterossexuais (3,15%; n= 7), assexuais (1,35 %; n= 3), e pansexuais (0,45 %; n= 1). A maioria se declarou branca (61,50 %; n= 139), seguido de parda (25,22 %, n= 57), negra/preta (10,62 %; n= 24), amarela (2,22 %; n= 5) e indígena (0,44 %; n= 1). A maioria residia na região sudeste (80,97 %; n= 183), seguido de sul (7,08%; n= 16), nordeste (5,31 %; N= 12), centro-oeste (4,43 %; n= 10) e norte (2,21 %; n=5), predominantemente em cidades do interior (53,78%; n= 121).
A maioria era solteira (69,91 %; n= 158), vivia com companheiro(a), era casado(a) ou em união estável (28,32 %; n = 64) e separado(a) ou divorciado(a) ou viúvo(a) (1,77 %; n= 4). Predominaram pessoas com ensino superior completo (30,63 %; n= 68), seguido de superior incompleto (27,03 %; n= 60), pós-graduação completa (23,87 %; n= 53), pós-graduação incompleta (11,26 %; n= 25), médio completo (5,86 %; n= 13), médio incompleto (0,90 %; n= 2) e fundamental incompleto (0,45 %; n= 1). Quanto ao tempo de empresa, possuíam de 4 meses a 32 anos (M= 3,16; DP= 4,99).
Instrumento
Escala de Experiências de Microagressões LGBT no Trabalho (EEM-LGBT, LGBT Microaggression Experiences at Work Scale, LGBT-MEWS; Resnick & Galupo, 2019). Instrumento composto por 27 itens distribuídos em três dimensões: valores no local de trabalho (12 itens), suposições heteronormativas (9 itens) e cultura cisnormativa (6 itens). As respostas foram assinaladas em uma escala do tipo Likert de 1 (nunca) a 5 (muito frequente).
Questionário de dados sociodemográficos. Perguntas sobre idade, região do país, cidade, cor da pele, estado civil, escolaridade, tempo de empresa, identidade de gênero, nome social e orientação sexual.
Procedimentos éticos e de coleta de dados
A pesquisa foi realizada respeitando as exigências contempladas na Resolução 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que trata da realização de pesquisas envolvendo seres humanos. A coleta de dados foi iniciada após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Uberlândia (CAEE: 39232120.2.0000.5152).
Os critérios de inclusão envolviam se identificar como uma pessoa LGBT, ser maior de idade e possuir experiência profissional de, no mínimo, 3 meses. Não foram incluídas pessoas que sem acesso à internet e que se declarassem analfabetas ou com algum comprometimento que impedisse o entendimento do instrumento.
O instrumento foi disponibilizado via internet, por meio de um link virtual (Google Forms) que deu acesso a um formulário online, contendo o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), com o objetivo geral da pesquisa, a confidencialidade dos dados e condições para participação, e o questionário da pesquisa. O link foi compartilhado em mídias sociais (Facebook, Instagram e LinkedIn) e enviado a grupos e organizações não governamentais (ONGs) voltados a pessoas LGBT, utilizando o método bola de neve. A coleta de dados ocorreu entre junho e agosto de 2021.
Ao abrir o link, o(a) participante teve acesso à versão online do TCLE. Após a leitura do documento, era necessário assinar a opção obrigatória “Li, compreendi e tenho interesse em participar da pesquisa”, para ter acesso ao questionário. Caso não aceitasse participar, receberia uma mensagem de agradecimento, encerrando sua participação.
Procedimentos de análise de dados
Os dados coletados foram tabulados e analisados no software JASP, versão 0.16. Para avaliar a plausibilidade da estrutura tridimensional, foi realizada análise fatorial confirmatória (AFC). A adoção do método de estimação Robust Diagonally Weighted Least Squares (RDWLS) se deu por sua adequação para dados categóricos (Li, 2016).
Os índices de ajuste e seus valores de referência investigados foram: χ2 (não significativo); χ2/gl < 3; Comparative Fit Index (CFI > 0,95); Tucker-Lewis Index (TLI > 0,95); Standardized Root Mean Residual (SRMR < 0,08) e Root Mean Square Error of Approximation (RMSEA < 0,06, com intervalo de confiança (limite superior) < 0,10) (Brown, 2015). A confiabilidade da medida foi investigada pelo alfa de Cronbach e fidedignidade composta, sendo aceitáveis valores acima de 0,70 (Valentini & Damásio, 2016).
Resultados
Parte 1: Tradução e adaptação transcultural da escala
A versão original da EEM-LGBT consta na Tabela 1. Na tradução do inglês para o português, destaca-se que os(a) tradutores(a) apontaram necessidade de buscar uma tradução equivalente para o termo tokenized, no item 20 (Being “tokenized” at work on the basis of your LGBT identity), pois sua tradução direta seria tokenizado, uma palavra pouco usual no Brasil. Na síntese das versões traduzidas, optou-se pela adoção do rotulado para substituir tokenizado. Nos demais itens, houve a necessidade de acrescentar flexões de gêneros (ex. a/o) ou termos neutros (ex. alguém) na versão em português brasileiro, pois o idioma original do instrumento apresenta uma linguagem neutra (ex. a ou an).
Na análise de juízes experts, os resultados do IVC foram adequados: instruções (1), escala de resposta (1), dimensão valores no local de trabalho (0,98), dimensão suposições heteronormativas (0,94) e dimensão cultura cisnormativa (1). A avaliação qualitativa das sugestões dos juízes culminou em alterações na escala de resposta e nos itens 20 e 22. Na escala de resposta, houve uma alteração de às vezes para ocasionalmente, possibilitando o entendimento de uma intensidade moderada.
No item 20 (Ser ‘rotulado’ no trabalho com base em sua identidade LGBT), considerando o termo original tokenized, a sugestão dos juízes culminou na modificação para “Ser tido/a como representante da comunidade LGBT no trabalho, com base em sua identidade”. No item 22 (Ter seu nome designado no nascimento, e não seu nome social, nos documentos oficiais, como crachá, endereço de e-mail ou placa de identificação), foi retirado o termo designado no nascimento e substituído por nome de nascimento. As alterações foram realizadas e compiladas em uma única versão (Tabela 1).
Na avaliação pelo público-alvo, os itens 3, 7, 9, 18, 23, 24 e 26 foram alterados. No item 3 (Não receber crédito por uma ideia por causa de sua identidade LGBT), o termo crédito foi alterado para reconhecimento. No item 7 (Ter um/a colega, que sabe de seu status de relacionamento com outra pessoa, referindo-se a ela como seu ‘amigo/a’), o trecho “desconsiderando seu relacionamento afetivo” foi incluído, enfatizando que é uma forma de minimizar o relacionamento. No item 9 (Ter seu comportamento imitado em forma de piada devido a sua identidade ou expressões/aparência LGBT), o final foi alterado para “identidade LGBT, suas expressões ou aparência”, facilitando a compreensão. No item 18 (Ouvir a frase “Isso é tão gay!” no trabalho para descrever algo ou alguém), o trecho “para se referir negativamente a” foi incluído, enfatizando a visão negativa. No item 23 (Ter pessoas se referindo a você utilizando os pronomes incorretos), exemplos “(ex. ele ou ela)” foram adicionados ao final da frase, facilitando o entendimento. No item 24 (Ter pessoas fazendo comentários sobre as roupas que você veste por não estarem de acordo com as normas de gênero), o termo normas foi alterado para padrões sociais, destacando que trata de questões sociais. O item 26 (Ser tratado/a com uma linguagem de gênero que não corresponde a sua identidade de gênero, como “senhora” ou “senhor”) foi alterado para “Ser chamado(a) por termos que não correspondam a sua identidade de gênero (ex. senhorita, senhora ou senhor)”, utilizando linguagem mais clara e acrescentando mais um exemplo. Quanto às flexões de gênero dos itens 2, 7, 8, 10,11, 14, 16, 20 e 26, barras foram substituídas por parênteses, melhorando a compreensão. A versão do público-alvo, correspondente à versão final adaptada, consta na Tabela 1.T2
Tal versão foi submetida à tradução reversa e enviada para as autoras do instrumento original. Para elas, a versão estava adequada, mas houve uma alteração na escala de resposta (de sempre para muito frequentemente), já que seria menos provável de alguém assinalar o primeiro, por indicar que a situação aconteceria todas as vezes. Após esta alteração, a versão final foi aprovada pelas autoras.
Parte 2: Investigação das Evidências de Validade de Estrutura Interna e Confiabilidade da EEM-LGBT para o contexto brasileiro
Considerando a estrutura original do EEM-LGBT, o modelo de primeira ordem com três dimensões independentes (valores do local de trabalho, suposições heteronormativas e cultura cisnormativa) foi testado neste estudo. Os resultados da AFC indicaram um excelente ajuste do modelo aos dados: χ2/gl = 1,22; CFI = 0,994; TLI = 0,993; SRMR = 0,076; RMSEA = 0,031 (IC 90%, 0,018 - 0,041), sugerindo sua plausibilidade. Os resultados da estrutura do modelo estão sumarizados na Figura 1.
Após a AFC, análises de confiabilidade foram executadas. Os resultados indicaram alfas de Cronbach adequados: valores do local de trabalho (0,92), suposições heteronormativas (0,86) e cultura cisnormativa (0,86). A confiabilidade composta também foi adequada: 0,92, 0,86 e 0,84, respectivamente.
Discussão
Esta pesquisa buscou adaptar e obter evidências de validade de estrutura interna da EEM-LGBT para o contexto brasileiro. A primeira parte da pesquisa, referente à adaptação para o contexto brasileiro, seguiu as seis etapas propostas por Borsa et al. (2012) e Bandeira e Hutz (2020). A escolha por este modelo de adaptação foi embasada no fato de, diferentemente de outros modelos, incluir importantes aspectos, como a avaliação itens do instrumento pelo público-alvo e o diálogo com autoras do instrumento original, verificando possíveis ajustes na versão final.
Na etapa de síntese, uma importante informação foi considerada: a necessidade de adição das flexões de gênero ou termos neutros. Na língua portuguesa, a flexão masculina era tradicionalmente tida como um termo neutro/genérico, mas é excludente especialmente em se tratando de pessoas LGBT (Covas & Bergamini, 2021). Assim, essa alteração buscou tornar o instrumento mais inclusivo.
Na análise de juízes, o IVC foi utilizado para calcular o nível de concordância, apresentando resultados satisfatórios. Este é o método o mais utilizado para investigar evidências de validade de conteúdo, pois possibilita analisar os índices de cada item e do instrumento como um todo (Alexandre & Coluci, 2011; Kovacic, 2019). A versão sintetizada neste estudo apresentou equivalência semântica, idiomática e conceitual em comparação à sua versão original, sofrendo poucas alterações, indicativo de qualidade.
A análise pelo público-alvo indicou alterações importantes, como acréscimo de exemplos, modificações de termos e adoção de parênteses nas flexões de gênero. Tais alterações estão em conformidade com a literatura que aponta a importância desta etapa para assegurar um instrumento acessível e compreensível ao público-alvo (Bandeira & Hutz, 2020; Borsa et al., 2012).
A versão foi traduzida para o idioma original e submetida a análise das autoras do instrumento, culminando na alteração da escala de resposta. Tal verificação se faz importante para indicar possíveis inconsistências e erros conceituais entre as versões. Vale destacar que esta etapa é pouco presente em outros modelos de adaptação de medidas, apesar da importância (Borsa et al., 2012).
A segunda parte da pesquisa, referente à investigação de evidências de validade baseadas na estrutura interna, visou garantir a aplicabilidade do instrumento no contexto brasileiro. A partir da adoção da AFC foi possível investigar se a teoria subjacente (modelo investigado) se ajustava aos dados obtidos no contexto brasileiro. Considerando o modelo de primeira ordem com três dimensões (valores no local de trabalho, suposições heteronormativas e cultura cisnormativa), os resultados indicaram um excelente ajuste aos dados, mostrando-se superior aos resultados preliminares obtidos no estudo original. Isto porque, no caso da presente pesquisa, todos os indicadores investigados apresentaram resultados adequados considerando os valores de referência adotados. Por sua vez, o estudo original apresentou CFI abaixo do indicado, apesar do RMSEA e SRMR dentro do esperado, o que indicaria sua utilização (Resnick & Galupo, 2019).
Acerca da confiabilidade da versão brasileira da EEM-LGBT, esta pesquisa adotou dois indicadores: alfa de Cronbach e confiabilidade composta. O alfa de Cronbach é o índice mais empregado para avaliar a confiabilidade de instrumentos (Valentini & Damásio, 2016), tendo sido empregado no estudo original da EEM-LGBT e apresentado valores dentro do indicado pela literatura. Os resultados encontrados na presente pesquisa mostraram-se adequados e equivalentes aos resultados do estudo original (Resnick & Galupo, 2019), indicativo da robustez do instrumento em diferentes populações.
Apesar da ampla utilização, a literatura tem contraindicado a adoção deste indicador, pois ele pressupõe que todos os itens apresentam a mesma importância para sua dimensão, o que poucas vezes ocorre. Diante disso, há forte tônica para a adoção da confiabilidade composta, um indicador mais robusto e que considera as cargas fatoriais como passíveis de variação (Valentini & Damásio, 2016). Os valores de confiabilidade composta apresentados neste estudo atenderam ao recomendado pela literatura, indicando sua precisão.
Os resultados encontrados evidenciaram que o processo de adaptação e busca de evidências de validade de estrutura interna da EEM-LGBT para o contexto brasileiro apresentou boa qualidade, alcançando os objetivos definidos neste trabalho e indicando sua adoção em outras pesquisas e o tornando o primeiro instrumento a investigar experiências de microagressões LGBT no contexto brasileiro. Sua utilização pode auxiliar as organizações a diagnosticar e gerir diversidade. Ademais, pode ser usada para fomentar pesquisas na área e auxiliar na maior compreensão do fenômeno e da vivência de profissionais LGBT no ambiente de trabalho, diante da lacuna de publicações no Brasil.
Entretanto, a coleta de dados online e nos formatos intencional e de bola de neve foram limitações do estudo. As pessoas respondentes foram compostas majoritariamente de profissionais brancos(a) e com níveis de escolaridade alta, divergindo da população geral brasileira. Ademais, cerca da metade dos participantes se autodeclarou homem cis gay. De acordo com a literatura, eles representam a maioria dos participantes das pesquisas com pessoas LGBT nas organizações (Silva et al., 2021). Essa participação desproporcional de profissionais da sigla LGBT pode repercutir nas políticas de diversidade nas organizações, tornando-as predominantemente voltadas a este recorte, em detrimento das demais orientações sexuais, identidades e expressões de gênero.
Houve também baixa participação de pessoas transgêneros e travestis, situação semelhante às pesquisas anteriores na área (Resnick & Galupo, 2019; Richard, 2021). O mercado de trabalho é particularmente mais difícil para esta parcela da população, que apresenta as maiores taxas de desemprego e tende a ser direcionada a trabalhos informais e autônomos (Costa et al., 2020), o que pode refletir em sua baixa participação nas pesquisas.
O tema de microagressões no Brasil ainda é um assunto pouco explorado, mas de suma relevância para as empresas e profissionais LGBT. Diante das boas qualidades psicométricas da EEM-LGBT no contexto brasileiro e do caráter pioneiro para investigar o construto no país, é importante que sejam realizadas pesquisas com vistas a buscar mais evidências de validade baseadas na estrutura interna, por meio de análises de invariância da medida, bem como buscar evidências de validade com variáveis externas, como estresse no trabalho, depressão, ansiedade, satisfação no trabalho, incivilidade, outness, autoestima, bem-estar, engajamento no trabalho, intenção de rotatividade, produtividade e suporte organizacional, além de considerar amostras mais amplas e homogêneas.