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Ciencias Psicológicas

versión impresa ISSN 1688-4094versión On-line ISSN 1688-4221

Cienc. Psicol. vol.17 no.2 Montevideo dic. 2023  Epub 01-Dic-2023

https://doi.org/10.22235/cp.v17i2.2823 

Artigos Originais

Promoção da empatia, autoconceito e valores básicos: uma intervenção no cárcere feminino

Promoción de la empatía, el autoconcepto y los valores básicos: una intervención en una cárcel femenina

Elias Fernandes MascarenhasPereira1 
http://orcid.org/0000-0002-8012-0373

Leonardo Rodrigues Sampaio2 
http://orcid.org/0000-0003-2383-4094

Francis Natally de Almeida Anacleto3 
http://orcid.org/0000-0001-5309-1186

1 Fundação Universidade Federal do Vale do São Francisco, Brasil, eliasmasc12@gmail.com

2 Fundação Universidade Federal do Vale do São Francisco, Universidade Federal de Campina Grande, Brasil

3 Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil


Resumo:

O encarceramento feminino é permeado por inúmeras problemáticas estruturais e pela ineficiência na garantia de direitos fundamentais e assistência psicológica às mulheres. Neste artigo, analisam-se os efeitos de oficinas de intervenção para a promoção do autoconceito, da empatia e de valores básicos em mulheres encarceradas. Participaram do estudo 56 mulheres, em uma Cadeia Pública, com idades entre 18 e 63 anos (M = 32,23; DP = 9,25). Quinze destas mulheres participaram do programa de intervenção, enquanto que o restante da amostra compôs o grupo controle. Ambos os grupos foram avaliados no período pré e pós-intervenção, por meio da Escala de Autoconceito, o Interpersonal Reactivity Index e o Questionário de Valores Básicos. Notas de campo e a observação participante foram utilizadas para descrever experiências significativas vivenciadas durante os encontros. Não foram encontradas variações estatisticamente significativas nos escores das escalas empregadas, o que pode estar relacionado à necessidade de adequação desses instrumentos para públicos com baixa escolarização. Em contrapartida, avalia-se que o uso de oficinas possibilitou a construção de um espaço pedagógico, com contingências muito distintas do ambiente carcerário, no qual as mulheres foram estimuladas a experimentar suas emoções e sentimentos.

Palavras-chave: prisões; mulheres; educação de prisioneiros; empatia; autoimagem

Resumen:

El encarcelamiento femenino es permeado por muchas problemáticas estructurales y por la falta de eficacia en la garantía de los derechos fundamentales y la asistencia psicológica a las mujeres. En este artículo se analizan los efectos que tiene los talleres de intervención para la promoción del autoconcepto, de la empatía y de los valores básicos en mujeres encarceladas. Participaron del estudio 56 mujeres, en una cárcel pública, con edades entre de 18 a 63 años (M = 32.23; DE = 9.25). Quince de estas mujeres participaron del programa de intervención, las demás de la muestra compusieron el grupo control. Ambos grupos fueron evaluados en el período de pre y posintervención por medio de la Escala de Autoconcepto, el Interpersonal Reactivity Index y el Cuestionario de Valores Básicos. Las notas de campo y la observación participante fueron utilizadas para describir experiencias significativas vividas durante los encuentros. No fueron encontradas variaciones estadísticamente significativas en los resultados de las escalas empleadas, lo que puede estar relacionado a la necesidad de adecuación de esos instrumentos para públicos con baja escolarización. En cambio, se evalúa que el uso de talleres posibilitó la construcción de un espacio pedagógico con contingencias muy distintas al ambiente carcelario, en el cual las mujeres fueron estimuladas a experimentar sus emociones y sentimientos.

Palabras clave: prisión; mujeres; educación de los presos; empatía; autoconcepto

Abstract:

Incarceration of women is permeated by countless structural problems and inefficiency in guaranteeing fundamental rights and psychological assistance to women. In this article, the effects of intervention workshops aimed to promote self-concept, empathy, and basic values for incarcerated women are reviewed. The study comprised 56 women aged between 18 and 63 years, incarcerated in a Public Prison (M = 32.23; SD = 9.25). Fifteen of these women participated in the intervention program, while the remaining sample comprised the control group. Both groups were evaluated in the pre- and post-intervention period, using the Self-Concept Scale, the Interpersonal Reactivity Index and the Basic Values Questionnaire. During the meetings field notes and participant observations were used to describe meaningful experiences. No statistically significant variations were found in the scores of the scales used, which may be related to the need to adapt these instruments to groups with low levels of education. On the other hand, the study found that the use of workshops enabled the construction of a pedagogical space, with very different contingencies compared to the prison environment, in which women were encouraged to experience their emotions and feelings.

Keywords: prisons; women; correctional education; empathy; self concept

É de conhecimento do grande público as mazelas vivenciadas pelas pessoas presas no Brasil, a exemplo da superlotação das instituições carcerárias, da falta de atividades laborais, educacionais e de lazer, além das condições estruturais, higiênicas e sanitárias precárias (Brasil, 2017). Sabe-se que essa problemática não está diretamente ligada ao gênero, pois homens e mulheres encarcerados, cisgêneros ou transgêneros, são expostos diariamente às condições supramencionadas (Conselho Nacional do Ministério Público, 2016).

Todavia, de forma geral, as instituições carcerárias brasileiras não consideram em sua organização as especificidades que deveriam ser pensadas em relação à população feminina, mesmo com o crescimento exponencial do encarceramento de mulheres ao longo dos anos. A este respeito, verificou-se no Brasil um crescimento de mais de 600 % na taxa de aprisionamento feminino, entre os anos 2000 e 2016. Atualmente, o país já se configura como a quarta maior população carcerária feminina do planeta, com aproximadamente 44.700 mulheres presas, perdendo apenas para os Estados Unidos, China e Rússia (Brasil, 2017). Dada a complexidade das questões que emergem dos crimes e do encarceramento de pessoas no mundo, torna-se necessário que variáveis psicológicas podem contribuir com o processo de reinserção social, uma vez que a falha do sistema reverbera em incalculáveis prejuízos sociais, além dos altos custos financeiros para o Estado (Barnett et al., 2011; Martinez et al., 2014; Robinson & Rogers, 2015).

O aumento progressivo do encarceramento feminino, associado à não adequação das instituições prisionais para atender às demandas relacionadas ao gênero, acentua as vulnerabilidades expressas por essa população. Além disso, faz emergir a ineficiência do Estado em garantir a essas mulheres um espaço que suporte demandas sociais (trabalho e educação), específicas (gestação e puerpério), familiares (berçários, espaço para receber a família), psicológicas (lazer e promoção da saúde mental), entre outras (Brasil, 2017).

As precariedades e deficiências supramencionadas contribuem para que o sistema de ressocialização não consiga cumprir seu objetivo principal de preparar o apenado para voltar a sociedade de forma digna, capaz de exercer seus direitos e de cumprir os deveres como qualquer cidadão. Porém, esses fatores não são os únicos responsáveis pela baixa capacidade que o país tem de promover as condições de reintegração dessas pessoas à sociedade. A esse respeito, ainda se constata ausência de políticas públicas e de programas de intervenção com foco em ações de promoção ao desenvolvimento psicossocial e moral das pessoas encarceradas, apesar de já haver um corpo robusto de evidências científicas que demonstra como esse tipo de ação contribui para a reinserção social.

Em muitos países, variáveis como a empatia, o autoconceito e os valores humanos são utilizados como parte do processo de avaliação de pessoas que cometem crimes e em programas de intervenção dentro do cárcere. Inclusive, em alguns casos, a participação nesses programas configura-se como parte da pena e condicionam a progressão do apenado para a liberdade (Barnett et al., 2011; Echeburúa & Fernández-Montalvo, 2007). Assim, treinamentos voltados para promoção da empatia e do autoconceito tem sido utilizados em programas de reabilitação de infratores como ferramentas que visam fortalecer comportamentos prosociais e diminuir os fatores que favoreceriam a criminalidade, e, por conseguinte a reincidência (Christopher & McMurran, 2009; Day et al., 2011; Roche et al., 2011).

De forma geral, a empatia pode ser compreendida como uma capacidade com componentes cognitivos e afetivos, os quais possibilitam a tomada de perspectiva e o experienciar de respostas afetivas que são congruentes com aquilo que se está observando em relação ao que outras pessoas estejam sentindo (Batson, 2009; Eisenberg et al., 2006; Hoffman, 2000). As experiências empáticas são importantes para regulação da vida em sociedade, formação da consciência social e mediação nos processos decisórios, especialmente àqueles direcionados ao cuidado, respeito e moralidade (Dutra, 2020; Pavarino et al., 2005; Sampaio et al., 2021).

Em contrapartida, a falta de empatia tem sido identificada como um mecanismo que prediz o engajamento em comportamentos agressivos e delituosos (van Zonneveld et al., 2017). Níveis menores de empatia estariam diretamente relacionados a comportamentos antissociais e lesivos (Drayton et al., 2018), crimes como estupros e homicídios (Domes et al., 2013) e à ofensa (Jolliffe & Farrington, 2004). Em pessoas encarceradas, os déficits de empatia aparecem associados à psicopatia (Gehrer et al., 2020; Korponay et al., 2017).

Ao analisar o perfil diferencial de agressores do sexo masculino na prisão com e sem psicopatia, Echeburúa e Fernández-Montalvo (2007) constaram que os agressores com psicopatia além de serem menos empáticos também apresentavam menor autoestima. Ou seja, o sentimento de satisfação que uma pessoa tem sobre si mesma, um dos componentes do autoconceito, também aparece comprometido nessa população.

O autoconceito pode ser definido como a percepção que o indivíduo tem de si próprio, de suas capacidades, dos seus recursos, em diferentes situações e fases da vida, formando um conceito a partir do qual fará leituras de si e do mundo à sua volta (Vaz-Serra & Pocinho, 2001). Segundo Veiga (2006), o autoconceito pode ser resumido em dois questionamentos: Como me vejo? E como penso que os outros me veem? Se modificando a partir das experiências do indivíduo, na mesma medida que modifica a percepção da experiência, esse movimento dialético sofre influência das relações sociais e do contexto situacional, constituindo-se como uma das variáveis que intervém no comportamento humano e na formação da identidade (Basílio et al., 2017).

Basílio et al (2017) comentam que existe certa instabilidade do autoconceito, que se modifica de forma sutil no decurso da vida. Dentro das prisões essas modificações são de caráter negativo e parecem estar ancoradas na falta de elementos essenciais para o fortalecimento do autoconceito, em decorrência da rigidez das rotinas institucionais e o excesso de regras que dificultam o desenvolvimento pessoal dos reclusos, impactando na construção de sua identidade (Antunes, 2012; Basílio et al., 2017).

Assim, o autoconceito negativo pode se configurar como um fator de risco para o desenvolvimento funcional de pessoas encarceradas, algo que foi observado num estudo com um grupo de tratamento de agressores sexuais, no qual o escore de autoestima pós-tratamento foi a única, dentre outras medidas do domínio socioafetivo, que predisse significativamente a reincidência sexual e/ou violenta (Barnett et al.,2011). Além disso, se constatou que a intervenção foi particularmente boa em encorajar os homens a identificar e reconhecer problemas com sua autoestima, o que reverberou na diminuição das taxas de cometimento de novos delitos.

Outros trabalhos indicam que indivíduos com pontuações mais baixas de autoestima também têm maiores índices de agressividade (Webster et al., 2005) e de risco de suicídio (Vaz-Serra & Pocinho, 2001). Já o fortalecimento do autoconceito (positivo e mais estável) se constituiria como uma importante ferramenta para a diminuição de comportamentos antissociais e facilitaria a compreensão de como as pessoas em situação de cárcere adequam seus pensamentos, valores, emoções e comportamentos nas mais diversas situações (Antunes, 2012; Basílio et al., 2017).

Dado que os valores representam cognitivamente as necessidades humanas, transcendem situações específicas e guiam a seleção de comportamentos e eventos (Gouveia et al., 2009), é razoável supor que estes também estejam associados, em alguma medida, ao cometimento de atos infracionais e crimes. A esse respeito, estudos demonstram que a conduta antissocial está associada negativamente a valores normativos (obediência, religiosidade e tradição), suprapessoais (beleza, conhecimento e maturidade) e a valores interativos (afetividade, suporte social e harmonia social) (Formiga & Gouveia, 2005; Medeiros et al., 2015). A conduta delitiva também estaria associada a uma maior busca por satisfação, prazer e por novas sensações, estando presente em pessoas que têm suas relações interpessoais prejudicadas e que prezam menos pelo cumprimento das normas sociais (Gouveia, 2003). Por fim, Amorim-Gaudêncio et al. (2023), ao analisar em que medida o traço de psicopatia correlaciona-se com os valores humanos em uma amostra carcerária predominantemente feminina, constatou uma relação positiva, ainda que fraca, entre o estilo de vida socialmente desviante/antissocial e a experimentação (valores ligados ao prazer, sexualidade e emoção).

Para Loinaz et al. (2018) avaliar e utilizar variáveis socioemocionais e psicossociais nas intervenções com pessoas encarceradas torna-se de suma importância, quando se pensa na ressocialização dessa população. Na mesma direção Wang et al. (2021) argumentam que não é possível pensar em um convívio social bem-sucedido quando a capacidade de estar ciente do que as outras pessoas estão sentindo e pensando é negligenciada, algo que tem sido levado em consideração nas políticas de ressocialização promovidas em outros países.

Na Inglaterra e no País de Gales, por exemplo, os programas de tratamento fazem parte da rotina das instituições carcerárias, abrangendo em média 176 h e abordando áreas como: motivação para mudança, compreender a ofensa, empatia da vítima, habilidades de autogestão e gerenciamento emocional, intimidade, compulsividade, engajamento comunitário, comportamento de cobrança e prevenção de recaídas (Barnett et al., 2011). Já nas prisões espanholas, intervenções cognitivo-comportamentais têm sido aplicadas a homens que cometem violência contra as mulheres, visando diminuir a agressividade em relação a suas vítimas. O programa dura 40 horas, que são divididas em 20 sessões e aborda, entre outras dimensões, aspectos motivacionais e a aceitação das responsabilidades do seu crime, treinamento de empatia, habilidades de autorregulação socioemocionais e prevenção de recaídas. Avaliações de eficácia apontam que esse tipo de intervenção encoraja os participantes a repensar suas atitudes em relação às mulheres e sobre utilização da violência como resposta aos conflitos (Echeburúa & Fernández-Montalvo, 2007).

Em se tratando da realidade brasileira, trabalhos anteriores buscaram promover atividades de cunho artístico e lúdico, partindo do pressuposto de que a criação de espaços que subsidiem trocas subjetivas e novas aprendizagens é crucial para a construção de ações de ressocialização no cárcere. Por exemplo, estudos de intervenção com adolescentes e adultos em situação de privação de liberdade mostram que ações voltadas à promoção e prevenção da saúde (Costa et al., 2019), à reflexão sobre questões de trabalho, esporte e cultura (Andrade & Vilas Boas, 2019), o uso da música (Silva, 2018) e de oficinas de desenho (Esteca & Andrade, 2018) contribuem para o aumento da consciência sobre o autocuidado, a percepção de si como sujeito de direito, a redução da agressividade e com um maior engajamento com atividades didático-pedagógicas. Além disso, reduzem os estereótipos e preconceitos da população em geral em direção a pessoas presas.

A realização dessas atividades evidencia a importância da arte, da educação, do lazer e dos espaços dialógicos dentro das prisões como ferramentas integradoras, ressocializadoras e de promoção da saúde mental, emergindo como possibilidade de ruptura da vida criminal, por meio da produção de novos sentidos para suas práticas e aspirações futuras. Nesse percurso, muitos aspectos do funcionamento cognitivo são importantes para que essa finalidade seja alcançada, a exemplo da competência e do ajustamento social e a diminuição dos comportamentos disruptivos e antissociais. Conforme, Spink et al. (2014), a utilização de oficinas como estratégia metodológica permite, ao mesmo tempo, produção de dados para investigação científica e criam um ambiente de negociação de sentidos e de exposição dialógica.

Apesar disso, ainda são escassos trabalhos que buscam promover, especificamente, a intervenção sobre variáveis diretamente relacionadas ao comportamento prosocial, ao desenvolvimento socioafetivo e ao funcionamento psicológico como um todo. Face ao exposto, no presente trabalho buscou-se analisar os efeitos de um programa de intervenção para promoção do autoconceito, da empatia e dos valores básicos em mulheres encarceradas em uma cidade do interior do nordeste. Para tanto, foi elaborado um programa com doze oficinas como foco nesses temas, as quais foram realizadas por um período de três meses.

Método

Participantes

As participantes da pesquisa foram 56 mulheres encarceradas em uma cidade no sertão do Estado de Pernambuco, com idades entre 18 e 63 anos (M = 32,23; DP = 9,25), que se dispuseram a participar voluntariamente do estudo. Foram excluídas da amostra as mulheres não alfabetizadas (n = 5) e as que não preencheram adequadamente os instrumentos psicométricos (n = 2). As demais participantes foram aleatoriamente alocadas em dois grupos, por meio de sorteio eletrônico: grupo intervenção (GI) (n = 15) e grupo controle (GC) (n = 41).

Instrumentos

A Escala de Autoconceito (Piers-Harris & Herzberg, 2002), em sua versão adaptada e validada para a língua portuguesa de Portugal por Veiga (2006) - PHCSCS-2, foi usada para a avaliação do autoconceito. A PHCSCS-2 é composta por 60 questões dicotômicas, que abordam fatores como comportamento, estatuto intelectual e escolar, atributos e aparência física, ansiedade, popularidade e satisfação-felicidade. Neste estudo, fizemos a adaptação da escala para o português brasileiro, com o apoio de cinco especialistas, doutores em psicologia e em linguística, que foram convidados a propor a tradução dos enunciados, de forma que ficassem fidedignos aos itens originais.

Após esse processo, o pesquisador selecionou os enunciados mais adequados e aplicou em um grupo de 15 pessoas - adultos jovens, com idades entre 18 e 27 anos, solicitando que elas respondessem à escala e marcassem os itens que não apresentavam fácil compreensão. Em seguida, os itens foram novamente revisados e aplicados em cinco mulheres privadas de liberdade, que foram questionadas sobre a sua compreensão a respeito dos enunciados dos itens. A versão adaptada mostrou-se de fácil compreensão para o público-alvo.

Destacamos que a população carcerária feminina apresenta baixa escolaridade e, portanto, questões do tipo dicotômica (sim ou não) facilitam a compreensão. Outro aspecto relevante para a escolha do instrumento foi o fato de que os fatores comportamentais e o estatuto intelectual e escolar estão intimamente ligados ao ideal de ressocialização, voltado para o trabalho e a educação (Brasil, 1984). Na mesma direção, a aparência física, a popularidade e a satisfação podem ser importantes recursos para o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento às situações adversas vivenciadas no cárcere.

A empatia foi mensurada por meio do Interpersonal Reactivity Index (Davis, 1983), em sua versão adaptada no Brasil por Sampaio et al. (2011), composta por 26 sentenças que descrevem comportamentos, sentimentos e características relacionadas à empatia, ao longo de quatro dimensões: Tomada de perspectiva (TP), Fantasia (FS), Consideração empática (CE) e Angústia pessoal (AP).

A AP relaciona-se aos sentimentos de desconforto ou ansiedade diante de situações estressoras, sendo esta autodirigida (focadas no self). Por sua vez, a CE estaria voltada para um comportamento mais prosocial, motivado pela disposição em ajudar outras pessoas. Os outros dois componentes, TP e FS, são representados, respectivamente, pela capacidade de projetar-se em situações vivenciadas por outras pessoas, buscando compreender como elas se sentem e se posicionam diante daquela situação, e por uma capacidade cognitiva similar, mas em relação a personagens fictícios de filmes e livros, por exemplo (Sampaio et al., 2011).

Para a avaliação dos valores foi utilizado o Questionário de Valores Básicos (QVB), desenvolvido por Gouveia (2003), composto por 18 itens (valores) específicos, distribuídos igualmente em seis subfunções psicossociais, descritas a partir das caraterísticas das pessoas orientadas por esses valores: Experimentação, Suprapessoal, Interativa, Realização, Existência e Normativa (Gouveia, 2003; Gouveia et al., 2009).

A junção das subfunções permite a formação de dois eixos que os organizam estruturalmente em tipo de motivador e tipo de orientação, sendo eles, respectivamente: (1) valores como expressão de necessidades (necessidades idealistas ou necessidades materialistas) e (2) Valores como padrão-guia de comportamentos (metas pessoais, metas centrais ou metas sociais) (Gouveia, 2003; Gouveia et al., 2009).

Além dos instrumentos supramencionados, foi utilizado um questionário sociodemográfico contendo questões sobre idade, escolaridade, estado civil, raça/cor, tempo de prisão, tipo de pena, entre outros.

Procedimentos

As escalas e o questionário foram administrados por três pesquisadores previamente treinados para a realização dos procedimentos. As participantes foram divididas em pequenos grupos de cinco pessoas e levadas para uma sala que oferecia condições ambientais e espaço físico adequado para a aplicação dos instrumentos.

Os membros da equipe de pesquisa auxiliaram as mulheres durante todo o preenchimento das escalas e questionários, dando o suporte necessário para a execução da tarefa. Os instrumentos eram apresentados separadamente, um a um, para as participantes, visando evitar a monotonia e possíveis desconfortos psicológicos e postural. Esses procedimentos foram realizados duas vezes nos dois grupos (GI e GC), antes e após o encerramento das oficinas, seguindo uma dinâmica de pré e de pós-teste.

Programa de intervenção

As intervenções foram realizadas apenas no GI, em formato de oficinas, em uma sala cedida pela instituição, onde funcionava a escola da cadeia, com capacidade para aproximadamente 30 pessoas. Os encontros tinham duração de 2 horas e foram realizados uma vez por semana, sempre mediados por, pelo menos, um facilitador e duas auxiliares. As integrantes do GC mantiveram suas rotinas institucionais regulares e não participaram de qualquer tipo de atividade com a equipe de pesquisa durante o período de realização das oficinas, a não ser a própria testagem psicológica nos momentos pré e após intervenção.

As oficinas duraram três meses e a organização dos encontros contemplava momentos vivenciais durante os quais eram desenvolvidas atividades que buscavam promover o autoconceito, a empatia e os valores básicos das participantes, de forma que as experiências e a história de vida das mulheres eram evocadas como dispositivos de aprendizagem e de reflexão. A Tabela 1 apresenta a descrição das atividades e objetivos gerais de cada encontro.

Para o levantamento de dados qualitativos, as técnicas de coleta de dados utilizadas foram a observação participante e a construção de diário de campo, a partir das falas das mulheres colhidas durante as oficinas. A observação participante configura-se como um importante instrumento para a apreensão da dinâmica do grupo, possibilitando ao pesquisador uma visão holística e natural do cenário observado (Alferes et al., 2017).

De forma complementar, após a realização de cada encontro eram coletadas informações sobre o estado de humor das mulheres. A atividade era realizada ao final, com a intenção de saber como elas avaliavam os encontros e como elas se sentiam após a realização das atividades.

A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Vale do São Francisco (CEP-UNIVASF) e aprovada (CAAE: 68528517.2.0000.5196) antes do início de qualquer atividade. As oficinas tiveram início apenas após a obtenção da autorização institucional e da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelas participantes.

Tabela 1: Atividades desenvolvidas durante o programa de intervenção 

Análise dos dados

No presente trabalho, optou-se por uma abordagem quanti-qualitativa para análise dos dados, de modo que fosse possível abarcar de forma mais a complexidade dos fenômenos estudados. Assim, os dados provenientes dos instrumentos psicométricos foram tabulados e organizados na planilha eletrônica Microsoft Excel, versão 2016, e sua análise foi feita através do Statistical Package for Social Sciences - SPSS, versão 22.0, adotando um nível de significância p < 0,05. O teste Shapiro-Wilk indicou que os dados referentes às escalas não seguiam uma distribuição normal e por isso optou-se por empregar testes não paramétricos para realizar as estatísticas inferenciais. Para fins de aplicação dos testes inferenciais, foram incluídos apenas os protocolos das participantes que tinham respondido completamente todas ases escalas. Dessa forma, foram analisados os dados de 15 integrantes do Grupo de Intervenção e 16 do Grupo Controle.

Os dados qualitativos são fruto da análise dos registros de diários de campo, notas e materiais produzidos durante as oficinas com as participantes. Trata-se da descrição e análise de aspectos subjetivos percepcionados e ancorados na literatura vigente sobre a temática, enquanto um operador analítico. Além disso, esses dados refletem o apanhado de impressões e vivências dos membros da equipe que atuou diretamente nas intervenções junto às participantes, os quais se reuniam periodicamente para avaliar o andamento do programa de intervenção.

Resultados

Análises quantitativas

A Tabela 2 apresenta um perfil sociodemográfico e histórico prisional das participantes. Conforme se observa, a maioria das mulheres são autodeclaradas pardas, com baixa escolaridade, solteiras e que recebem visitas às vezes.

O teste de Spearman foi utilizado para verificar a existência de correlações entre as variáveis dependentes e independentes deste estudo, tendo sido constatado que a subfunção normativa correlacionou-se significativamente com o tempo de prisão (p= 0,410; p< 0,001). Além disso, a subfunção normativa correlacionou-se positivamente com a empatia geral (p= 0,335; p< 0,05).

O teste de Kruskal-Wallis indicou uma diferença significativa nos itens satisfação e felicidade (χ2= 12,09; p= 0,002) e popularidade (χ2= 8,82; p= 0,012), no sentido de que as mulheres que sempre recebem visitas pontuaram mais nesses componentes do autoconceito do que as que não recebem visitas e do que as que recebem apenas às vezes.

O teste de Friedman indicou que há diferença entre as seis subfunções dos valores, quando comparadas entre si. Complementarmente, o teste de Wilcoxon indicou que as subfunções existência e normativa (Z = -0,880; p= 0,37) não diferem entre si, mas diferem significativamente de todas ases outras (todos os p, comparando-se as subfunções duas a duas, são menores que 5 %).

No que se refere à testagem sobre os efeitos da intervenção, o teste de Wilcoxon indicou que não houve variações significativas entre o pré e o pós-teste em nenhum dos componentes da Empatia, do Autoconceito e dos Valores Básicos, nem no grupo intervenção (GI) nem no grupo controle (GC). Além disso, o teste de Mann-Whitney apontou que não houve diferenças entre o GI e o GC no pré e no pós-teste em nenhuma dessas variáveis. As Tabelas 3, 4 e 5 apresentam as médias das posições (Mean Ranks) da Empatia, Autoconceito e Valores Básicos, em função do grupo de participantes e do momento de testagem.

Tabela 2: Caracterização sociodemográfica e prisional das participantes 

Tabela 3: Média das posições em cada dimensão da empatia, em função dos grupos de participantes e do momento de testagem 

Tabela 4: Média das posições em cada dimensão do autoconceito, em função dos grupos de participantes e do momento de testagem 

Tabela 5: Média das posições em cada dimensão dos valores básicos, em função dos grupos de participantes e do momento de testagem 

Análises qualitativas

Referente aos encontros nas oficinas de Autoconceito, a fotografia foi o recurso mais exitoso, tanto no encontro em que utilizamos a técnica do Light Painting quanto no ensaio fotográfico. O Light Painting é uma técnica de iluminação fotográfica em que é possível, com a ajuda de uma lanterna, um ambiente escuro e uma câmera programada para uma longa exposição, pintar o que a pessoa quiser com a luz. Essa técnica causou muito interesse nas mulheres, sobretudo em manusear as câmeras, as lanternas, e, posteriormente, ver como ficaram as fotos.

Vencidas todas as etapas burocráticas e respeitando os aspectos éticos (termos de consentimento e direito de imagem), realizou-se o ensaio fotográfico, outra atividade que utilizava recursos visuais, dessa vez para uma abordagem mais centrada na autoimagem. De início, a atividade foi recebida com certa restrição por parte de algumas mulheres, mas esse impasse logo foi resolvido. Grande parte delas havia se preparado para esse dia, maquiaram-se, fizeram penteados, escolheram roupas, e as fotografias foram tiradas em vários ambientes, e, pouco a pouco, elas foram se despindo diante das câmeras. Não se trata de uma figura de linguagem, pois aos poucos elas estavam literalmente despidas, sem roupa.

Por meio das fotografias, as mulheres levantaram várias questões sobre como elas se enxergavam, falaram das mudanças físicas após o encarceramento e o quanto esse processo modificou a percepção sobre si mesmas. O foco das discussões permeou a aceitação do próprio corpo e este, visto como belo, apesar das condições adversas.

Nas oficinas de Empatia, as atividades que se destacaram foram aquelas que abordaram os direitos interpessoais e a atividade de resolver os problemas das outras. Dentre a lista de 23 direitos, que pressupõem um dever na mesma direção para com a outra, dois deles foram escolhidos por todas do grupo como os mais importantes: o direito a ser tratada com respeito e dignidade e o direito de parar e pensar antes de agir.

O direito de parar e pensar antes de agir possibilitou abordarmos os crimes que elas cometeram, a falta de empatia e, sobretudo, a possibilidade de modificar o comportamento a partir da reflexão. Pensar antes de agir significa ponderar antes de escolher, buscando a maneira mais apropriada para resolver determinada situação. Resolver o problema da outra parecia uma tarefa fácil, mas assumir a perspectiva da outra e resolver o problema da melhor maneira possível (para a outra) configurou-se em um desafio para as mulheres. Frente a frente, umas com as outras, não faltaram choros e abraços durante a realização dessa atividade. Quando o espaço foi aberto para a discussão, as mulheres relataram que ainda não tinham se atentado que o problema de uma era tão próximo do problema da outra.

Em relação aos encontros na oficina de Valores Básicos, a atividade de perdas e danos se diferenciou das outras não por causa da sua adesão, pelo contrário, foi uma das atividades na qual as mulheres mais ofereceram resistência em realizar. Não conseguíamos dar andamento à atividade em meio a tantas queixas e reclamações, de modo que tivemos que reorganizá-la várias vezes para conseguir executá-la.

A atividade inicial consistia em escrever o nome de algumas pessoas importantes na sua vida e, consecutivamente, dizer o que havia aprendido com a pessoa e ir eliminando o nome de cada uma delas até restar apenas um. Entretanto, elas não quiseram eliminar ninguém, diziam que todos os nomes escritos eram importantes. Esse ato mostrava mais sobre seus valores do que o objetivo da atividade proposta. Vimos emergir a importância da afetividade e do apoio social, sentir que não estar só no mundo e que existem pessoas com quem você pode contar, independentemente dos êxitos e/ou fracassos.

Pedir para mulheres que sofrem com o abandono sistemático dos cônjuges, da família, das instituições e de grande parte da sociedade, mesmo que imaginariamente, que abandonem as pessoas que restaram é, no mínimo, incoerente. As pessoas que restam, muitas vezes, são aquelas por quem as mulheres dizem que vale a pena abandonar o mundo do crime.

Por fim, a utilização de uma técnica para iniciar os encontros e conectar as mulheres com o ambiente das oficinas produziu resultados interessantes: tratou-se de um momento que nomeamos como “Viagem”, em que de olhos fechados, a partir da narração de um facilitador, sob o som da chuva, com as luzes apagadas, as mulheres foram convidadas a imaginar um lugar onde gostariam de estar. Ao final da dinâmica, muitas mulheres estavam deitadas no chão, em posição fetal, aos prantos. Ressalta-se que em um lugar onde a exigência da força e da não demonstração de fraqueza são leis, um espaço onde a expressão de sentimentos reprimidos é estimulada torna-se contraventor.

Duas emoções se destacaram na avaliação que as mulheres faziam ao final das oficinas, a primeira foi a alegria, que acreditamos estar ligada ao ambiente descontraído e às trocas afetivas possibilitadas nos encontros. A outra emoção foi a de estar “confusa”, pensativa ou angustiada, como elas verbalizavam, o que podemos considerar como uma abertura crítica e reflexiva da sua condição.

Discussões e Conclusão

Este trabalho teve como principal objetivo avaliar os efeitos de um programa de intervenção para a promoção da empatia, valores e autoconceito em mulheres encarceradas oriundas de uma unidade prisional no sertão de Pernambuco. A eficácia de programas de intervenção que utilizam oficinas e outras atividades reflexivas em estudos empíricos tem sido comprovada na promoção de construtos como empatia (Dutra, 2020; Rodrigues & Silva, 2012) e autoconceito (Coelho et al., 2016) em outras populações. Do mesmo modo, os estudos sobre os valores básicos sedimentam a importância desse construto na predição do comportamento (Medeiros et al., 2015; Monteiro et al., 2017).

Os dados produzidos a partir das análises estatísticas sugerem não ter havido variações significativas na empatia, valores e autoconceito após um período de intervenção. Esses resultados podem estar associados à duração da intervenção.

Outras limitações como a utilização de amostras não-probabilísticas, a não utilização da taxa de reincidência e nem a análise prévia dos níveis de psicopatia na amostra, fazem com que as evidências relatadas aqui devam ser vistas com cautela (Amorim-Gaudêncio et al., 2023; Roche et al., 2011). Ademais é necessário se atentar a própria limitação nas escalas psicométricas quando são aplicadas em participantes com baixa escolarização ou em amostras forenses (Barnett et al., 2011; Domes et al., 2013)

Ressalta-se que uma barreira significativa para a realização e potencialização dos efeitos das oficinas foi a própria conformação do ambiente carcerário, hostil, rígido, violento e promotor de vulnerabilidades. A superlotação, as estruturas inadequadas, as condições sanitárias insalubres, a reincidência, a violência policial, a ação do tráfico, a falta de apoio social, entre outros, são alguns dos problemas crônicos do sistema prisional brasileiro, velhos conhecidos da sociedade (Conselho Nacional do Ministério Público, 2016). Inclusive, a cadeia onde esta pesquisa foi desenvolvida foi apelidada por Santos e Rios (2018) como “cortiço-prisão”, justamente pelos déficits estruturais, sanitários e humanitários presentes no estabelecimento, posicionando-a como uma “gambiarra do sistema jurídico-penal”.

É urgente a revisão de aspectos estruturais do nosso sistema de justiça e segurança pública, sobretudo aqueles que subsidiam o processo de reinserção social. Estar preso não se limita apenas à perda da liberdade, pois a prisão produz muitas vulnerabilidades. As repercussões colaterais, provenientes da privação de liberdade são, por vezes, mais graves que a própria pena (Giacóia et al., 2011).

Em uma análise qualitativa, a partir das atividades desenvolvidas nas oficinas alinhadas com a literatura vigente sobre a temática, consideramos que o espaço conjecturado é capaz de promover atividades culturais, recreativas e artísticas tão importantes para o processo de ressocialização. Além disso, espaços dialógicos como aqueles suscitados durante as intervenções podem encorajá-las a identificar e reconhecer problemas com sua autoestima e a repensar suas atitudes (Barnett et al., 2011; Echeburúa & Fernández-Montalvo, 2007), contribuindo para conscientização sobre seus direitos (Maciel, 2018; Silva, 2018) e trazendo novos significados à vivência do cumprimento da pena numa perspectiva não punitivista.

Ter a possibilidade de reler a sua história de vida através dos atravessamentos proporcionados pela condução dos encontros e afetar-se com isso, abre um grande paralelo para repensarmos pontos sensíveis em prol da reinserção social dessas mulheres. Tem-se aí um importante eixo de discussão comum e que trata sobre como dar contornos mais humanísticos à pena de privação de liberdade, transformando-a em emancipadora e não apenas punitiva (Andrade & Vilas Boas, 2019; Maciel, 2018; Silva, 2018).

A sobressalência do relato do sentimento de angústia pelas participantes ao final das oficinas, quando solicitadas a expressar suas emoções, pode sugerir que os encontros foram capazes de gerar potencial de mudanças cognitivo-afetivas e, por conseguinte, comportamentais. Esse achado vai ao encontro das considerações de Andrade e Vilas Boas (2019), que pontuam que as ações desenvolvidas nesses espaços extrapolam os contornos físicos das oficinas e se expandem nas vidas de todos os atores envolvidos, promovendo mudanças comportamentais e possibilitando que os indivíduos tenham autonomia e criticidade sobre o próprio ser. Além do mais, espaços dialógicos são capazes de fomentar a promoção de saúde mental e o cuidado (Ireland & Lucena, 2013).

Trabalhar construtos psicológicos em oficinas, no ambiente prisional, implicou em abordar aspectos da vida cotidiana, de modo que não se trata, apenas, de ensinar conceitos ou descrevê-los academicamente. Significa que a própria experiência das mulheres foi pedagógica. Inclusive, demonstrando o quanto essas temáticas são importantes para seu desenvolvimento funcional (Ireland & Lucena, 2013).

As metodologias utilizadas durante as oficinas alinham as mulheres ao seu contexto, preparando-as para a vida e suas intempéries, resgatando o sentimento de valorização de si próprias e de pertença. Dá a possiblidade a essas mulheres de se libertar de estereótipos e estigmas arraigados à sua condição histórica, bem como de construir novos conceitos mais funcionais sobre si e vivências menos dolorosas no mundo (Bagio et al., 2018; Gohn, 2006; Spink et al., 2014).

Dessa forma, acredita-se que as oficinas se configuraram como um espaço não formal de aprendizado, possível no cárcere, alicerçado na historicidade desses indivíduos. Ainda, que esses espaços foram capazes de instrumentalizar as mulheres encarceradas para se transformarem em cidadãs do mundo, no mundo, vislumbrando outras formas de ser e perceber o mundo em seu entorno e nas suas relações sociais (Gohn, 2006).

Entre as principais contribuições das oficinas, destacam-se: oferecer às mulheres encarceradas um espaço pedagógico e acolhedor, com contingências muito distintas do ambiente carcerário, por meio do qual elas foram instigadas a experimentar suas emoções e sentimentos, falar abertamente sobre suas vivências, expor suas dúvidas, medos, aspirações e angústias.

Os resultados não estatisticamente significativos podem justamente refletir que as escalas não apreenderam os componentes subjetivos da empatia, autoconceito e valores na população estudada, ressaltando a importância de integrar os dados quantitativos e os qualitativos para se apreender o fenômeno de forma mais ampla. Além do mais, é preciso utilizar estratégias metodológicas concernentes com o perfil de escolarização das participantes.

Dessa forma, considera-se que a avaliação e promoção do autoconceito, empatia e valores básicos podem orientar os processos intervenção psicológica no cárcere e subsidiar desfechos penais. Este processo dinâmico deve considerar a multidimensionalidade das variáveis, a complexidade da população carceraria, e os instrumentos devem ser capazes de mensurar essas características, refletindo adequadamente o objetivo da avaliação e das intervenções propostas (Barnett et al., 2011; Echeburúa & Fernández-Montalvo, 2007; Loinaz et al., 2018). Além disso, indica-se a necessidade de que outros pesquisadores se debrucem sobre o desenvolvimento e testagem de metodologias de avaliação e intervenção adequados à realidade dessas pessoas, trazendo contribuições empírico-teóricas e instrumentalizando outras intervenções nesse tipo de cenário.

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Disponibilidade de dados: O conjunto de dados que suporta os resultados deste estudo está disponível no Open Science Framework (https://osf.io/snw4t/files/osfstorage)

Financiamento: Este projeto recebeu apoio da Fundação de Amparo a Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (FACEPE) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)

Como citar:Pereira, E. F. M., Sampaio, L. R., & Anacleto, F. N. A. (2023). Promoção da empatia, autoconceito e valores básicos: uma intervenção no cárcere feminino Ciencias Psicológicas, 17(2), e-2823. https://doi.org/10.22235/cp.v17i2.2823

Participação dos autores: a) Planejamento e concepção do trabalho; b) Coleta de dados; c) Análise e interpretação de dados; d) Redação do manuscrito; e) Revisão crítica do manuscrito. E. F. M. P. contribuiu em a, b, c, d, e; L. R. S. em c, d, e; F. N. A. A. em c, d, e.

Editora científica responsável: Dra. Cecilia Cracco

Recebido: 12 de Fevereiro de 2022; Aceito: 23 de Agosto de 2023

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