A capacidade de regular emoções é fundamental para o desenvolvimento humano, em especial quando se considera crianças e adolescentes, dado que nestas fases diferentes influências podem afetar seus comportamentos. Autorregular as emoções está diretamente relacionado com o processo adaptativo do ser humano, de modo que ela ocorre a partir de influências contextuais e depende de diferentes estratégias. Mensurar tais capacidades, principalmente no público infantojuvenil, possibilitaria à ciência psicológica, e às psicólogas e psicólogos, a propor intervenções mais coesas e eficazes. Assim como realizado com o público adulto por Cremasco et al. (2020), este estudo tem como objetivo revisar a Escala de Autorregulação Emocional, agora em sua versão infantojuvenil (Noronha et al., 2019), analisar as propriedades psicométricas de uma versão reduzida e apresentar um instrumento em sua versão final, aprimorado também do ponto de vista de equidade do número de itens por fator.
As estratégias de regulação emocional, ou a habilidade de se autorregular, podem ser compreendidas como o processo no qual indivíduos experienciam, regulam e expressam suas emoções (Gross, 1998). Tais estratégias de regulação podem ocorrer de maneira automática ou controlada pelos sujeitos, culminando, assim, em um processo adequado de expressão do indivíduo (Barros et al., 2015; Gratz & Roemer, 2004). Além disso, as habilidades de autorregulação são descritas com base em modelos multidimensionais, envolvendo a avaliação, compreensão e aceitação das emoções (Weiss et al., 2015).
Por conseguinte, evidências sugerem que a habilidade de se autorregular pode atenuar emoções negativas, servindo como fator protetivo à depressão e outras psicopatologias (Berking et al., 2014; Drake et al., 2017; Weiss et al., 2015). Déficits em regulação emocional (ou autorregulação emocional, usados aqui como sinônimos) são preditores de desfechos adversos, culminando na incapacidade de aceitar emoções negativas, bem como maior intensidade na vivência de eventos estressores (Drake et al., 2017; Weiss et al., 2015). Em crianças e adolescentes as características de autorregulação podem ocorrer de maneira ainda mais complexa.
Na infância e adolescência a autorregulação emocional de eventos tristes, foco do instrumento discutido neste artigo, atua principalmente no processo de reestruturação cognitiva, quando empregadas de maneira eficaz, porém, quando utilizadas de maneira ineficaz tais estratégias de reestruturação podem indicar pouco controle e compreensão das emoções e do ambiente (Burwell & Shrik, 2007). Estudos empíricos confirmaram esta hipótese e evidenciaram que quanto mais sintomas depressivos em crianças e/ou adolescentes ou maior o consumo de substâncias, menos eficazes são as estratégias de regulação emocional (Borges & Pacheco, 2018; García del Castillo et al., 2012). Em acréscimo, em uma metanálise, foi encontrado que a autorregulação emocional esteve associada a engajamento escolar e sucesso acadêmico em crianças e adolescentes (Robson et al., 2020). Nesta conformidade, é sinalizado que indivíduos no período infantojuvenil que tendem a vivenciar sentimentos de raiva e tristeza com maior frequência possuem maior dificuldade para compreender suas emoções (Borges & Pacheco, 2018; Cruvinel & Boruchovitch, 2011), o que configura a complexidade do processo autorregulatório nesta faixa desenvolvimental.
Sabe-se da escassez de instrumentos desenvolvidos especificamente para avaliação da autorregulação emocional para crianças e adolescentes (Philpott-Robinson et al., 2023), além de que, dentre os instrumentos brasileiros utilizados para mensurar a autorregulação emocional, têm-se uma pequena quantidade destes com enfoque para crianças e adolescentes (Batista & Noronha, 2018). Com foco unicamente na emoção tristeza, foi encontrado na literatura somente uma escala em âmbito brasileiro. Assim, pode-se dar destaque para a Escala de Autorregulação Emocional-Infantojuvenil (EARE-IJ; Noronha et al., 2019). Em seu desenvolvimento o instrumento foi proposto com quatro fatores, a saber, paralisação (i.e., indicando o processo de atitudes tomadas ou não frente a eventos tristes); pessimismo (i.e., capacidade para resolver ou não os problemas, bem como a autovalorização); estratégias adequadas de enfrentamento (i.e., solucionar os problemas, lidando de maneira eficaz com eventos tristes); e avaliação da experiência (i.e., extração de algo positivo ou negativo do evento vivenciado). O instrumento teve como base teórica a proposta de Gratz e Roemer (2004), considerando a modulação emocional, a atenção, a compreensão e a aceitação das emoções. Nesta conformidade, a conceitualização do processo de autorregulação perpassa pelo entendimento, aceitação, controle e habilidade de expressão das emoções em cada evento vivenciado.
Em seu processo de construção e busca de evidências de validade, o instrumento apresentou índices de ajuste aceitáveis para uma solução de quatro fatores em uma amostra de 600 crianças e adolescentes (CFI = 0,99 e RMSEA = 0,03; Noronha et al., 2019). Contudo, a escala apresenta uma quantidade desbalanceada de itens entre os fatores e uma quantidade grande de itens para avaliação do público infantil. Além disso, a dimensão “avaliação da experiência” apresenta fragilidades no que tange à representação teórica do construto, uma vez que alguns itens de vivência positivos e negativos se sobrepõem, em especial aqueles avaliados pela dimensão pessimismo.
Assim, torna-se necessário novos estudos no que se refere à EARE-IJ, especialmente, a possível redução e aprimoramento da escala em termos de balanceamento de itens nos diferentes fatores. Portanto, considerando a necessidade de propor instrumentos breves para serem respondidos por crianças e adolescentes, dado que a avaliação em triagem pode ser feita em larga escala; bem como a apresentação da EDEA por Cremasco et al. (2020), este estudo tem como objetivo atualizar a EARE-IJ para uma versão curta, além de testar as evidências de validade baseadas na estrutura interna e índices de fidedignidade, que passará a ser conhecida como Escala de Desregulação Emocional Infantojuvenil (EDEIJ). A modificação do nome do instrumento se dá uma vez que nosso enfoque com o presente teste é a avaliação de características de desregulação e inadequação emocional frente a eventos, bem como por apresentar uma maior quantidade de fatores que avaliam aspectos negativos, facilitando assim, a interpretação dos usuários do instrumento. Tem-se como hipótese que a nova versão irá manter as qualidades psicométricas de sua predecessora, além de ser um instrumento útil na avaliação da autorregulação emocional frente a eventos tristes em crianças e adolescentes.
Método
Participantes
Compuseram a amostra 299 crianças e adolescentes com idades de 10 a 16 anos (M= 12,20; DP= 1,36), sendo 55,5% do sexo feminino. Os participantes eram distribuídos entre o 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental II, de modo que 44,5% eram do sexto ano, 19,7% do sétimo ano, 18,4% do oitavo ano e 17,4% do nono ano. Trata-se de um banco de dados dos primeiros dois autores.
Instrumentos
Questionário sociodemográfico. Desenvolvido para esta pesquisa, tendo como objetivo caracterizar a amostra no que tange ao sexo, idade e ano escolar.
Escala de Autorregulação Emocional Infantojuvenil (EARE-IJ; Noronha et al., 2019). A EARE-IJ foi desenvolvida com o propósito de mensurar a autorregulação emocional frente a eventos de vida que geram tristeza. Ela é composta por 28 itens respondidos em escala Likert (1: nenhuma das vezes/nada até 5: sempre), e possui quatro fatores, a saber, Paralisação (8 itens); Pessimismo (8 itens); Estratégias de enfrentamento adequadas (8 itens) e Avaliação da experiência (4 itens). Alguns exemplos de itens são “Quando estou triste eu”: 1: Choro; 10: Penso que ninguém vai poder me ajudar e 28: Acho que sou capaz de resolver o problema.
Procedimentos
Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE: 53659716.8.0000.5514), os estudos relacionados às escalas de autorregulação tiveram início. Para comporem a amostra, era condição indispensável que as crianças e adolescentes tivessem a assinatura de um dos seus responsáveis no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, entregue em uma data prévia a coleta de dados. Os participantes que aceitassem participar deveriam declarar concordância com a pesquisa a partir do Termo de Assentimento Livre e Esclarecido. Os instrumentos foram coletados de maneira presencial nas respectivas escolas, contando com um aplicador treinado para fornecer maiores informações caso estas fossem solicitadas pelas crianças ou adolescentes.
Análise de dados
Inicialmente, foi testada uma análise fatorial confirmatória (AFC-modelo I) para o modelo quatro fatores desenvolvido por Noronha et al. (2019). Em seguida, foram testados novos modelos confirmatórios que visaram a buscar versões mais aprimoradas do instrumento (modelo II e modelo III). Em todos os modelos foram utilizados o estimador Weighted Least Square Mean and Variance Adjusted (WLSMV), considerando os índices de ajuste qui-quadrado (( 2) dividido pelos graus de liberdade (gl), Comparative Fit Index (CFI ≥ 0,95), Tucker-Lewis Index (TLI ≥ 0,95) e Root Mean Square Error of Approximation (RMSEA ≤ 0,08; Hu & Bentler, 1999).
Em seguida, foram testadas as curvas de informações para estimar a capacidade informativa de cada fator, possibilitando assim ser analisada a região do traço latente na qual o instrumento apresenta maior nível de precisão e de maneira complementar testou-se os índices de confiabilidade alfa de Cronbach e ômega de McDonald (Dann et al., 2014). Finalmente, foi analisado uma modelo de invariância para o sexo das crianças e adolescentes. Este teve como propósito testar a igualdade dos itens para ambos os sexos no nível configural, métrico e escalar (Horn & McArdle, 1992). O nível configural testa a plausibilidade de utilização do instrumento para os grupos, ou seja, analisa se os itens funcionam como indicadores similares para grupos diferentes; o nível métrico testa o peso que as cargas fatoriais possuem para ambos os grupos; finalmente o nível escalar testa a equivalência dos interceptos para ambos os grupos (Damásio, 2013). A invariância foi considerada a partir de uma diminuição do índice CFI, de maneira que mudanças ΔCFI menores do que 0,010 indicavam modelos invariantes (Chen, 2007). Todas as análises foram realizadas nos softwares MPlus 8 (Muthén & Muthén, 1998-2012) e RStudio a partir do pacote psych (Revelle, 2014).
Resultados
Testou-se a análise fatorial confirmatória para o instrumento composto por 28 itens e quatro fatores (modelo I), os índices de ajuste apresentaram resultados insatisfatórios ( 2 /gl = 4,20; CFI = 0,886; TLI = 0,875; RMSEA = 0,104. A Tabela 1 apresenta as cargas fatoriais.
Nota: * O item EARE-IJ19 apresentou um valor de p = 0,432, enquanto todos os outros itens apresentaram valores de p < 0,001.
Apesar de apresentar a maior parte das cargas fatoriais aceitáveis (i.e., > 0,30), foi considerado que o quarto fator pouco contribuía para a mensuração teórica do construto, pois o conteúdo exigia abstrações complexas para crianças e adolescentes (e.g., “Acho que o que sinto é importante para o meu crescimento”); ele se sobrepunha a dimensão pessimismo no que diz respeito à construção semântica de itens. Nesse sentido, testou-se um novo modelo de análise fatorial confirmatória desconsiderando a dimensão Avaliação da Experiência e itens redundantes ou com menor carga fatorial das outras dimensões (modelo II), os resultados são apresentados na Tabela 2.
Os resultados índices de ajuste obtidos foram satisfatórios ( 2 /gl= 2,91; CFI = 0,957; TLI = 0,952; RMSEA = 0,080, assim como as cargas fatoriais apresentaram valores a partir de 0,40. Contudo, a grande quantidade de itens, o desbalanceamento destes e o uso de itens com conteúdo frasal similar, optou-se por um novo modelo que culminasse em um instrumento mais balanceado, de fácil administração, diminuindo o tempo de resposta e com itens com conteúdo semântico único. A seleção dos itens teve como base um critério teórico (i.e., itens que melhor descrevessem conteúdos de regulação emocional, avaliados por dois juízes experts na área de avaliação psicológica e autorregulação emocional) e um critério estatístico (i.e., seleção dos itens com cargas fatoriais mais altas, apresentados na Tabela 2). Assim, testou-se a última análise fatorial confirmatória (modelo III), apresentada na Tabela 3.
Para este último modelo, os índices de ajuste foram excelentes ( 2 /gl = 2,55; CFI = 0,980; TLI = 0,976; RMSEA = 0,072, além de manterem as dimensões teoricamente relevantes e ser breve para a aplicação em crianças e adolescentes. Em seguida, testou-se a curva de informação para cada um dos fatores da EDEIJ, de modo que a Figura 1 apresenta os resultados encontrados.
Com base dos resultados encontrados nas curvas de informação, foi possível identificar, pela inspeção visual, que os fatores Paralisação e Pessimismo melhor avaliam indivíduos que apresentam níveis entre -1 e 2 da escala theta, enquanto o fator Estratégias adequadas de enfrentamento melhor avalia entre -2 e 0 da escala theta. No que tange aos índices de confiabilidade, estes foram: Paralisação alfa = 0,84 e ômega = 0,87; Pessimismo alfa = 0,92 e ômega = 0,94; e Estratégias adequadas de enfrentamento alfa = 0,80 e ômega = 0,85. Uma vez finalizado o instrumento, optou-se por testar sua invariância no que tange ao sexo dos participantes, estes resultados são apresentados na Tabela 4.
A partir dos resultados obtidos, é possível assumir que não foi encontrada variância configural e métrica, sendo a variância escalar marginalmente significativa (ΔCFI = 0,014). Este resultado indica que ao serem considerado o sexo das crianças e adolescentes, podem existir diferenças nos interceptos entre os grupos.
Discussão
Este estudo teve como objetivo apresentar a versão atualizada da Escala de Desregulação Emocional Infantojuvenil (EDEIJ), testar sua evidência de validade baseada na estrutura interna e índices de fidedignidade após redução de itens e de fatores, bem como analisar a invariância dos itens selecionados de acordo com a variável sexo de crianças e adolescentes. Os resultados obtidos confirmaram as hipóteses e previsões estabelecidas, indicando que a EDEIJ é um instrumento eficaz para mensurar autorregulação emocional frente a eventos tristes e apresenta boas propriedades psicométricas.
A partir dos modelos de análise fatorial testados, pôde-se notar que a versão completa da Escala de Autorregulação Emocional-Infantojuvenil (EARE-IJ; Noronha et al., 2019) apresentou índices de ajuste insatisfatórios, assim como um item sem significância estatística. Isto atesta para o objetivo proposto neste estudo, dado que quando testado em uma nova amostra o instrumento não manteve os índices satisfatórios encontrados em sua versão de elaboração. Neste sentido, visando a manter a proposta de Gratz e Roemer (2004), optou-se por excluir a dimensão Avaliação da Experiência, uma vez que tais itens apresentavam conteúdo redundantes quando comparados com outras dimensões, bem como poderiam ser considerados de difícil compreensão ao público infantojuvenil. Após exclusão desta dimensão os resultados encontrados foram satisfatórios e o instrumento manteve as características teóricas necessárias (Gratz & Roemer, 2004; Weiss et al., 2015), todavia a quantidade de itens estaria desbalanceada sendo demasiada para uso no público infantil, bem como itens com conteúdo semântico similar seriam mantidos, podendo tornar o instrumento redundante, como indicado por juízes expert parte de nosso processo de avaliação.
Com a finalidade de obter um instrumento conciso, claro e que fosse uma ferramenta eficiente na triagem, principalmente na avaliação de crianças e adolescentes, optou-se por selecionar os itens de maior carga fatorial e que melhor descrevessem o conteúdo relacionado a autorregulação emocional em eventos tristes (American Educational Research Association et al., 2014; Philpott-Robinson et al., 2023; Streiner, 2003). Os resultados evidenciaram índices de ajuste excelentes (Hu & Bentler, 1999) e equiparáveis ao instrumento em sua versão para adultos, ou seja, Escala de Desregulação Emocional Adultos (EDEA; Cremasco et al., 2020). No que diz respeito a capacidade de avaliação do instrumento, avaliada pelas curvas de informação, este apresenta melhor funcionalidade para avaliar crianças e adolescentes com estratégias disfuncionais de autorregulação, ou seja, paralisação e pessimismo. E assim como na versão do instrumento destinada a adultos, os índices de confiabilidade apresentaram resultados considerados excelentes (Cremasco et al., 2020; George & Mallery, 2002).
Por fim, para analisar se a medida proposta pode ser considerada equivalente entre os sexos de crianças e adolescentes foram analisados os modelos de invariância configural, métrico e escalar, sendo que apenas para este último os resultados foram variantes. Tais achados indicam que ao serem comparados os interceptos destes grupos, os resultados não podem ser considerados como equivalentes (Chen, 2007; Damásio, 2013). Ou seja, caso estudos futuros encontrem diferenças para a variável sexo nos itens da EDEIJ este resultado não pode ser atribuído a diferenças no nível do traço de crianças e adolescentes, sendo, por conseguinte uma não-equivalência nos parâmetros da escala (Chen, 2007). Sendo assim, uma das possibilidades, caso essa tendência se mantenha em outros estudos, poderia ser a especificação das tabelas de normas para os dois sexos.
Este estudo não está isento de limitações, devendo tais resultados serem testados com outras diferentes amostras de crianças e adolescentes, bem como de diferentes regiões geopolíticas brasileiras. Instrume ntos de triagem, como a EDEIJ aqui proposta, mostram-se eficientes para avaliações em larga escala, contudo são menos sensíveis (Streiner, 2003). Além disso, ao considerarmos o processo avaliativo de crianças e adolescentes, maior cautela deve ser sugerida uma vez que fatores do desenvolvimento ou contextuais podem afetar os resultados, da mesma maneira que a autorregulação dos pais podem ter implicações nos casos, funcionando como um modelo temporário (Barros et al., 2015). Sugere-se que estudos futuros testem a EDEIJ com variáveis relacionadas a estratégias de enfrentamento e frente a eventos positivos, uma vez que o controle emoções positivas também é necessário (Noronha et al., 2019); similarmente, ao considerar a variância escolar estudos futuros devem criar tabelas de interpretação diferentes no que tange a variável sexo.