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Ciencias Psicológicas

versión impresa ISSN 1688-4094versión On-line ISSN 1688-4221

Cienc. Psicol. vol.13 no.2 Montevideo dic. 2019  Epub 01-Dic-2019

https://doi.org/10.22235/cp.v13i2.1877 

Artigos Originais

Rotas e colisões no trabalho de atendimento às mulheres vítimas de violência na Espanha

Rutas y colisiones en el trabajo de atención a las mujeres víctimas de violencia en España

Karine David Andrade Santos1 
http://orcid.org/0000-0001-9951-9539

Joilson Pereira Silva1 
http://orcid.org/0000-0001-9149-3020

Alícia Perez Tarrés2 
http://orcid.org/0000-0002-3686-1430

Leonor María Cantera Espinosa2 
http://orcid.org/0000-0002-4541-5993

1Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão. Brasil psimulti@gmail.com, joilsonp@hotmail.com

2Universidad Autónoma de Barcelona. España ptt.alicia@gmail.com, leonor.cantera@uab.cat


Resumo:

Este estudo teve por finalidade descrever as condições de trabalho, investigar a experiência de atendimento a mulheres vítimas de violência e observar as práticas de autocuidado exercidas pelo grupo profissional desta área de assistência em níveis pessoal, profissional, coletivo e institucional. A pesquisa foi promovida através da aplicação de um roteiro de entrevista com 10 profissionais de assistência a vítimas de violência contra a mulher em associações públicas e privadas na Espanha. A exposição a condições de trabalho precarizadas, os indícios de adoecimento pela aproximação com a realidade atendida, os esforços de autocuidado pessoal através da psicoterapia individual e os sinais da presença de relações violentas no trabalho são resultados desta investigação.Com isso, salienta-se a importância da efetivação dos programas de autocuidado vigentes e de elaboração de propostas de cuidar da equipe profissional com enfoque nas particularidades sociais, econômicas e culturais dos locais de intervenção

Palavras chave: profissionais da saúde; autocuidado; mulheres agredidas; condições de trabalho; violência no local de trabalho

Resumen:

Este estudio tuvo por finalidad describir las condiciones de trabajo, investigar la experiencia de atención a mujeres víctimas de violencia y observar las prácticas de autocuidado ejercidas por el grupo profesional de esta área de asistencia a nivel personal, profesional, colectivo e institucional. La investigación fue promovida a través de la aplicación de un guión de entrevista con 10 profesionales de asistencia a víctimas de violencia contra la mujer en asociaciones públicas y privadas en España. La exposición a condiciones de trabajo precarizadas, los indicios de enfermedad por la aproximación a la realidad atendida, los esfuerzos de autocuidado personal a través de la psicoterapia individual y los signos de la presencia de relaciones violentas en el trabajo, son resultados de esta investigación. La importancia de la efectividad de los programas de autocuidado vigentes y de elaboración de propuestas de cuidar del equipo profesional con enfoque en las particularidades sociales, económicas y culturales de los locales de intervención

Palabras clave: profesionales de la salud; mujeres maltratadas; autocuidado; condiciones de trabajo; violencia en el trabajo

Abstract:

This study had by finality describe the conditions of work, investigate the experience of attending to women victims of violence and observe the practices self-care exercised by the professional group of this area of assistance in the personal, professional, collective and institutional level. The research was provided across of application of a script of the interview with 10 professionals of assistance to victims of violence against the woman in public and private associations at Spain. The exhibition to conditions of precarious work, the indices of illness by approximation with the reality attended, the efforts of personal self-care through of individual psychotherapy and the signals of the presence of violent relations in the job are results of this investigation. Thus, stands out the importance of elevation of programs of self-care actual and of elaboration of proposals to care of professional team with a goal in the social particularities, economics, and culture of locals of intervention

Key words: health personnel; self-care; battered women; working conditions; workplace violence

Introdução

A organização de leis de enfrentamento da violência contra a mulher na Espanha é um fato estabelecido em atendimento a recomendações de combate a esta realidade por parte de organismos internacionais, como a ONU (Organizações das Nações Unidas). Desta forma, este esforço foi promovido no contexto espanhol pela aprovação da Lei Orgânica de Medidas Protetivas de Proteção Integral contra a Violência de Gênero em 2004 (Jefatura de Estado. Governo de España, 2004). Este aparato legal estabelece medidas de sensibilização, prevenção, detecção e assistência a violência contra a mulher.

Há uma diversidade nas características do grupo profissional alocado neste tipo de atendimento e seus serviços são oferecidos em diferentes contextos: linhas telefônicas, centros de urgência, casas de acolhimento, associações, nos âmbitos administrativos, judiciais, policiais, dentre outros (Gomà-Rodríguez, Cantera, & Silva, 2018). Durante com o contato com esta demanda, a oferta da escuta dos casos de violência contra mulher pelos profissionais remete à construção de um espaço tanto de coleta de informações e mensuração dos riscos envolvidos na situação, como de reflexão das emoções e sentimentos de confusão existentes em relacionamentos violentos e de compreensão e aceitação da realidade narrada pela mulher agredida (Gimena, Alonso, & Monzó, 2012).

Esta experiência profissional de acolhimento dos casos de violência pode causar sentimento de impotência, raiva, frustração e confusão nos prestadores deste tipo de serviço (Howlett & Collins, 2014; Penso et al, 2010; Vieira & Hasse, 2017). Sabe-se que há uma base biológica para compreensão deste fenômeno através dos neurônios espelho em que o cérebro ativa e reflete a emoção do interlocutor modificando-a em uma vivência própria e interna (Oliver, Albornoz, & López, 2011).

Assim, como custo para a saúde destes profissionais, a atividade de cuidar dos casos atendidos pode levar ao burnout e o transtorno de estresse traumático secundário. O burnout é uma síndrome estudada por Freudenberger nos anos 1970 e desenvolvida pelas pesquisadoras Malasch e Jackson que é caracterizada pela presença dos seguintes componentes: exaustão emocional, despersonalização e redução da realização pessoal (Oliveira, 2015).

O transtorno estresse traumático secundário tem os seguintes sintomas principais: hiperativação fisiológica, evitação das situações similares as atendidas no ambiente de trabalho e recordação dos casos atendidos (Moreno-Jiménez, Morante, Garrosa, & Rodríguez, 2004).

Além da necessidade de atenção a estes riscos psicossociais em nível individual, a equipe também é um componente que reflete o nível de adoecimento ou desgaste presente naquele contexto laboral. Isto se evidencia pela traumatização das equipes que estará presente, de alguma forma, nos seguintes aspectos: falta de confiança entre os membros da equipe, temor em abordar os conflitos, falta de compromisso do corpo profissional, evitação de responsabilidades, ruídos e distorções na comunicação, tendência à desintegração grupal e desarticulação do trabalho em conjunto (Chile, 2009).

Estas constatações são reforçadas pelas práticas de assédio encontradas nas equipes de atendimento a mulheres vítimas de violência, conforme atestado por estudo realizado por Quiñones, Cantera e Ocampo (2013). Com isso, para um andamento e desenvolvimento saudável das atividades por parte das equipes e seus membros, é imprescindível que estes alterem a maneira como percebem o trabalho e a vida e direcionem sua atenção para a saúde mental, emocional, social e espiritual. O eixo norteador para esta mudança é o autocuidado (Medrano, 2014).

Este é um elemento caracterizado pelo conjunto de cuidados que a pessoa pode proporcionar a si para alcançar uma melhor qualidade de vida e ele pode ser exercido de forma individual ou coletiva através de grupos, família ou comunidade (Correa, 2015).

O exercício do cuidado de si, no âmbito individual, é implementado por ações tais como: ter espaço para distração, saber pedir ajuda, aprender a delegar responsabilidades, desenvolver rituais de esvaziamento e descompressão, ter cuidados com a alimentação e o sono, incorporar atividades físicas e de cuidado com o equilíbrio corpo-mente, ter responsabilidade pela própria saúde e bem-estar, desenvolver e manter limites claros entre trabalho e a vida privada e criar oportunidades para manutenção das redes apoio como amigos e família evitando o isolamento (Coles, Dartnall, & Astbury, 2013; Gimena, Alonso, & Monzó, 2012).

Este cuidar do profissional também se revela como uma responsabilidade em nível institucional, uma vez que o adoecimento individual ou do grupo resulta em prejuízos para a qualidade dos serviços ofertados aos usuários seja por estes conflitos internos ou pelos resultados ocasionados pelos mesmos (Ginés & Barbosa, 2010). Assim, a maximização do bem-estar das equipes e de seus membros se desenvolve através da implementação de estratégias tais como: proporcionar um equilíbrio entre trabalho e vida privada, organizar espaços de supervisão, desenvolver uma cultura de aprendizado, compartilhamento e suporte dentro do trabalho, apoiar na identificação de sintomas de estresse traumático secundário e prever capacitação e desenvolvimento professional (Veslázquez, Rivera, & Custodio, 2015).

Além destas questões, o resguardo e a atenção para condições básicas de infraestrutura pelas instituições também se desenham como uma forma de autocuidado. Dentre elas, os seguintes aspectos compõem o atendimento a exigências infraestruturais tais como: espaços disponíveis e adequados para o desempenho das atividades individuais e em grupo, oferta suficiente de recursos materiais para registro, documentação e uso profissional junto aos casos atendidos, boas condições de comodidade, privacidade, regulação acústica e restrição da livre circulação de pessoas dentro dos espaços de trabalho e disponibilidade adequada de transporte (Chile, 2009).

O impacto positivo destas práticas de autocuidado é demonstrado por estudos como o realizado por Choi (2011) com trabalhadores sociais nos Estados Unidos. Este estudo indicou que os trabalhadores com maior suporte por parte dos seus superiores, colegas e equipe de trabalho bem como com acesso a informações estratégicas organizacionais apresentavam menores níveis de estresse traumático secundário.

Diante das considerações e apontamentos sobre os riscos para saúde dos profissionais que lidam com o sofrimento humano, este estudo se apresenta com os seguintes objetivos: descrever as condições de trabalho, investigar a experiência de atendimento a mulheres vítimas de violência e observar as práticas de autocuidado exercidas pelo grupo profissional em níveis pessoal, profissional, coletivo e institucional em centros de atendimento da Espanha.

Método

A amostra no contexto espanhol foi constituída por 10 profissionais da assistência direta a vítimas de violência contra a mulher. Estas participantes apresentam uma faixa etária média de 47 anos e prestam serviços desta natureza em diferentes centros de atendimento de associações públicas e privadas na Espanha.

Trata-se de uma amostragem por conveniência cujo critério de seleção obedeceu a parâmetros de disponibilidade pessoal para a participação na pesquisa.

O instrumento utilizado foi o roteiro de entrevista cujos eixos temáticos norteadores dos questionamentos foram: trajetória laboral, afirmações sobre violência, violência e trabalho, saúde e vida cotidiana no trabalho com violência. A aproximação com as participantes deste projeto neste país foi intercedida por representantes de quatro centros de atendimento às demandas de violência contra mulher com o intuito de mapear a quantidade de profissionais especializados na prestação de serviços desta natureza e disponíveis para participar deste estudo. Após esta etapa, foram agendados data e local com as profissionais da assistência a vítimas de violência contra a mulher para realização das entrevistas.

Este estudo seguiu as recomendações éticas fomentadas pela Universidad Autónoma de Barcelona (UAB) através do Comitê de Ética em Experimentação Animal e Humana (CEEAH).

Os dados coletados foram traduzidos e adaptados para a língua portuguesa e a obtenção dos resultados foi realizada através do uso do programa informatizado Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRAMUTEQ). Trata-se de um método informático que proporciona diferentes formas de análises textuais resultando em uma organização compreensível e clara do material escrito coletado. Para esta pesquisa, foi eleita a Classificação Hierárquica Descendente (CHD) que dispõe o vocabulário em classes em um dendograma que esclarece as relações entre elas (Camargo & Justo, 2013).

Resultados e Discussão

O corpus investigado foi composto por 10 UCI (entrevistas) e foi organizado em 1.304 segmentos de texto e 5.188 palavras com uma frequência de 15,29 palavras por resposta. O dendograma elaborado, tendo como base a homogeneidade dos segmentos de texto (Figura 1), reconheceu cinco classes de segmentos de texto. Através da análise da aba perfis gerados pela classificação hierárquica descendente, são apontados os conteúdos lexicais de cada uma destas classes (Camargo & Justo, 2013).

As palavras mais recorrentes em cada classe estão descritas no dendograma apresentado na Figura 1. Foram escolhidas as 10 primeiras palavras exibidas em cada classe. Os discursos dos participantes ou segmentos de texto explicitados nesta análise foram extraídos da aba Perfis de maneira que o contexto de cada classe fosse explicitado por segmentos textuais característicos da realidade pesquisada.

Em um primeiro momento, o corpus foi dividido (1ª partição) em dois subcorpora. De um lado, a classe 5, e do outro, as classes 4,3,2 e 1. Na etapa seguinte, o segundo subcorpus foi dividido em dois (2ª partição), trazendo a classe 4 e 3 de um lado e, de outro, as classes 2 e 1.

Os resultados e discussão deste estudo serão estreados pela Classe 5 intitulada “Trajetória, atuação profissional e condições de trabalho” que direciona a discussão para a prática, o caminho profissional traçado por estas trabalhadoras e as circunstâncias laborais em que estão inseridas. Em uma segunda fase, será debatida a Classe 4 denominada “Atendimento a mulheres vítimas de violência e formas de autocuidado” e depois, a Classe 3 designada como “Afirmações sobre Conflito e Violência”. No desenvolvimento desta construção, a atenção deste tópico estará direcionada para a Classe 2 que recebeu a denominação de “Autocuidado Pessoal “e por fim, a Classe 1, designada “Formas de Assédio e Conflitos”, que finalizará a discussão sobre a realidade destes profissionais no contexto espanhol.

Figura 1: Dendograma da classificação hierárquica descendente do corpus “Trabalho dos Profissionais de Assistência a Vítimas de Violência contra a Mulher na Espanha” 

Atuação Profissional no Atendimento a Mulheres Vítimas de Violência

A classe 5 denominada “Trajetória, atuação profissional e condições de trabalho” compõe 27,8% dos segmentos de textos trabalhados pelo corpus. Esta categoria se ocupa em apresentar características do percurso laboral desenhado por estas trabalhadoras, as modalidades de atuação destas profissionais junto aos alvos desta violência e a conjuntura laboral em que estão alocadas.

O percurso profissional destas entrevistadas é caracterizado por mudanças no papel profissional de maneira que, em um dado momento, estas adentram nos serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência. Esta afirmação pode ser elucidada pelo seguinte recorte: “Antes de terminar minha graduação, trabalhei na prefeitura como animadora sócio-cultural, mas meu trabalho como profissional, além de ser voluntária em toda a questão da terapia, foi como educadora em prisões. Eu era jovem e depois na prisão feminina em Barcelona por dez anos. Então eu vim para aqui (...).”(Participante 9).

Dentro deste trajeto profissional percorrido por estas profissionais, identifica-se que a porta de entrada destas trabalhadoras no contexto de atendimento às mulheres alvos de violência é empreendida pela construção e/ou implementação de projetos em instituições de acolhimento deste público. Além de constituir uma via de acesso para este campo laboral, os projetos compõem o principal eixo de atuação destas profissionais no combate à violência contra a mulher.

Nos discursos das entrevistadas, são encontradas referências a esta modalidade de intervenção que se desdobra de diferentes maneiras, denominações e objetivos: “Temos uma área de atendimento psicológico especializado individual, aconselhamento jurídico especializado em nível criminal, civil e familiar, temos um grupo de voluntários treinados em um projeto pioneiro chamado "Veines per veines" (vizinhas por vizinhas). " (Participante 9)

Conforme descrito até aqui, percebe-se que a entrada destas mulheres nesta área de atuação e a concomintante mudança na trajetória de trabalho são realizadas pela implementação de projetos de atenção às mulheres agredidas. No entanto, cabe assinalar que a diversidade de espaços profissionais ocupados por estas profissionais, ao longo das suas trajetórias profissionais, apontam para a flexibilização funcional destas profissionais.

Esta versatilidade de ocupações é equiparada a idéia de flexibilidade qualitativa, conforme pontuado por Hirata (2007), que se caracteriza pela polivalência e sua capacidade de inserção em uma organização produtiva calcada em uma variedade. Esta constatação se inscreve em uma realidade de uma sociedade capitalista que necessita, em seu processo de acumulação, de uma disponibilidade flexível e barata da mão-de-obra de trabalho feminina (Nascimento, 2014).

Além de estarem expostas a este delineamento no mercado de trabalho, as falas das entrevistadas remetem a condições de trabalho nos centros de atendimento a mulheres vítimas de violência caracterizadas pela fragilização dos vínculos contratuais, sobrecarga de trabalho, baixas remunerações, ausência de estrutura e longas jornadas laborais. Este apontamento é revelado pelo discurso a seguir:

Bem, eu acho que sofri mais como a instituição ou o lugar ou o trabalho ou a estrutura. Eles não te reconhecem, não pagam o suficiente, ou não lhe dão o apoio emocional de que precisaríamos, eu sofri demais com isso.(Participante 10)

Conforme apontado a seguir pela participante 6, a carga excessiva de trabalho traz impactos na qualidade da atenção dispensada aos casos de violência atendidos:

Eu estou trabalhando lá e talvez eu veja uma mulher que é indecisa, ou que está em uma situação mais arriscada (...), mas por causa da disponibilidade da agenda, eu não posso lhe dar uma visita até daqui há um mês e meio.

O recurso à flexibilidade funcional e a sujeição a formas de trabalho com garantias trabalhistas precarizadas encontradas na realidade profissional feminina também são apoiadas por uma legitimação sócio-cultural. Isto se traduz pela subalternidade a atividades laborais em circunstâncias mais precárias espelhando a divisão sexual do trabalho que atribui o espaço público aos homens e as mulheres, os ambientes privados domésticos (Nascimento, 2014).

Além de serem sujeitos de uma lógica de precarização do trabalho, estas profissionais estão em contato com uma realidade caracterizada pela negação ou ocultamento social da violência cuja revelação causa impactos na saúde física e mental das testemunhas das histórias de agressão. Este quadro será retratado pela classe 4 intitulada “Atendimento às mulheres vítimas de violência e formas de autocuidado. ”

A seguinte fala expõe o retrato da situação dos profissionais frente aos casos de violência atendidos: “Mas, além disso, somos muito deixados nas “mãos de Deus”, no nível social, tem havido uma mudança muito importante, as pessoas que trabalham com violência estão muito expostas continuamente, mais e mais famílias, mais e mais situações. ” (Participante 5).

Além do desgaste suscitado por ser testemunha do aprisionamento do alvo no ciclo da violência, estas profissionais necessitam enfrentar o risco de ser alvo de algum tipo de violência. Conforme apontado por Ojeda (2006), estes dois aspectos compõem fontes de adoecimento de origem externa. Esta realidade é reforçada pelos relatos de indícios de adoecimento físico e emocional que, mais uma vez, sinalizam para a mobilização emocional envolvida nesta atividade: “São muitas emoções e eu comecei a ir a um quiroprático que trabalha tudo de uma forma holística, não só física. Entendendo que o físico são emoções que são bloqueadas, depois eu fiz terapia, academia ou qualquer outra coisa.” (Participante 8).

Como consequência do desgaste emocional provocado pelas recorrentes aproximações com estas histórias, algumas pesquisadas também relataram o aparecimento da síndrome de burnout dentro deste contexto profissional. Tal constatação nos remete aos custos vinculados a atividade de cuidar dos casos atendidos que pode levar ao burnout, a fadiga por empatia ou traumatização vicária e o transtorno de estresse secundário (Oliveira, 2015).

Assim, para preservar a saúde e evitar os riscos de adoecimento frente a esta realidade, o autocuidado se apresenta como elemento de promoção de saúde e qualidade de vida para os trabalhadores e ele pode ser exercido de forma individual ou coletiva através de grupos, família ou comunidade (Correa, 2015). Os discursos abaixo mencionam as formas de autocuidado mobilizadas pelas profissionais pesquisadas: “(...)entender que, quando você está trabalhando com violência, autocuidado é uma parte muito importante e fazer o que você pode o que te faz bem. ” (Participante 1), “(...)que existe essa parte de tentar cuidar de si mesmo, de tentar fazer o máximo possível e, portanto, de estabelecer alguns espaços. mais ou menos básico, para mim a terapia é sagrada.” (Participante 6).

De acordo com os assinalamentos acima, as entrevistadas conhecem os riscos envolvidos nesta prestação de serviço e com isso, buscam ações individuais de preservação da saúde e distanciamento das doenças. Uma das ações sinalizadas é a participação em processo psicoterapêutico individual que, como descrito pela participante 6, se tornou um recurso de enfrentamento desta realidade e de diminuição de sintomas físicos.

Por outro lado, apesar dos intentos de cuidado de si no âmbito individual, estas pesquisadas estão expostas a poucas ações desta natureza em nível institucional ou mesmo sua ausência: “(...)no nível institucional, acho que é por falta de motivação e interesse porque não temos os meios para cuidar da equipe. Olha, nós, no nosso caso, o bom que eles têm é que eles nos permitem fazer muito treinamento.” (Participante 5).“Eu não tenho como estar bem porque eu gasto meu salário em terapias. Aqui a instituição teria que fazer coisas para prevenir riscos psicossociais.”(Participante 8).

O papel da instituição na promoção do autocuidado dos seus trabalhadores é um ponto de significativo impacto na saúde das equipes (Kulkarni, Bell, Hartman, & Herman- Smith, 2013). No entanto, o que se observa pelos relatos transcritos, é que a instituição não adota este tipo papel ou o realiza de forma insuficiente. Algumas entidades oferecem formação profissional ou supervisão dos casos atendidos e outras não atentam para estas ações o que mobiliza o recurso financeiro de trabalhadores na busca pela prevenção dos riscos psicossociais.

Além das consequências sofridas em detrimento da aproximação com a história de violência dos casos atendidos, estas profissionais também estão situadas em um cenário social e institucional permeado pelos conflitos e interações violentas. A compreensão desta conjuntura será explicitada pela classe 3 denominada “ Afirmações sobre Conflitos e Violência”.

Conflitos, Autocuidado e Assédio no Atendimento a Mulheres Vítimas de Violência

Esta classe, composta por 22,04% dos segmentos dos textos, revela as afirmações construídas pelas participantes a respeito de conflitos e violência. Dentro desta construção, estas pesquisadas apontam para questões de ordem sócio-cultural que catalisam a violência de gênero atendida, narram as formas de emergência dos atos violentos e suas circunstâncias, e, por fim, traçam indícios dos conflitos dentro do ambiente de trabalho e a figura da instituição como elemento ausente na resolução de conflitos.

Em relação a violência de gênero, as pesquisadas indicam como a educação efetua marcações estereotipadas de gênero que deflagram o confinamento de homens e mulheres em papéis fixos e definidos cujos desdobramentos estão presentes na naturalização da agressividade masculina e concomitante violência machista bem como na vulnerabilidade da mulher diante dos apelos econômicos e socioculturais: “A violência machista exercida pelos homens é contra as mulheres porque são mulheres, mas vemos que essa educação fez com que os homens praticassem a violência contra as mulheres, mas também contra outros homens.”(Participante 10); “(...)o mercado tenta nos tornar todos inadequados. Por isso compramos, gastamos, procuramos desejos impossíveis mas, no caso das mulheres, é ainda mais flagrante, então você tem toda a base para poder exercer toda essa violência de forma legitimada.”(Participante 6)

Estas considerações encontram ressonância nos escritos de Bourdieu (2016) que apontam para as divisões constitutivas da ordem social, promovidas pelos ambientes familiares, sociais, institucionais e culturais, como a base para classificar e distinguir as coisas do mundo e todas práticas em espaços separados, redutíveis e opostos entre masculino e feminino. Nesta ordem, as mulheres estão relegadas à resignação e submissão através deste trabalho de socialização em um contexto androcêntrico.

Dentro destas afirmações, questiona-se como profissionais do sexo feminino imersas em um cenário agressivo e machista visualizam os atos de violência testemunhados nos atendimentos de mulheres agredidas. Para problematizar este ponto, é discorrida abaixo fala extraída desta pesquisa que apontam para a descrição do fenômeno da violência como algo caracterizado pela invisibilidade, sutileza, variedade de formas e inconsciência dos atos: “Em todas os contextos relacionais, não precisa, às vezes a violência não tem uma razão, na maioria das vezes nem sempre é exercida de forma física ou tangível, pode haver violência simbólica, violência de vários tipos, em qualquer campo. ” (Participante 4)

O reconhecimento das formas de violência atendidas na prestação de serviços se coaduna com os apontamentos de Hirigoyen (2006) a respeito das diferentes formas de violência nos relacionamentos amorosos e, com destaque, para a violência psicológica que se caracteriza pela adoção de comportamentos, expressões e atitudes que visa negar a maneira de ser do outro. Dentro desta caracterização, também são encontradas a sutileza e a invisibilidade no exercício dos atos violentos por parte do autor.

Por outro lado, ao elaborar o reconhecimento das características das agressões atendidas, é identificada uma confluência nas experiências de conflito e violência vivenciadas pelas profissionais em seus ambientes de trabalho com o público atendido. Conforme relatado nos discursos a seguir, as fronteiras entre situações conflituosas e episódios de violência nestes espaços adotam ora características tênues, imprecisas ou não-nomeadas, ora as pesquisadas ocupam uma posição de espectadoras ou apaziguadoras dos conflitos: “Bem, eu encontrei algumas pessoas que não escutam e querem que concorda a decisão delas.É uma forma de conflito, não deixar você falar, falar com você de maniera brusca, criar uma situação abruptamente. ” (Participante 8).

(...)situações com alguém que tem um caráter muito forte e assim, Ah, bem, eu estou com frio, estou com calor. E você ajusta o ar condiciondo porque você está com frio e alguém vem e de repente, alguém muda a temperatura do aparelho para impor sua vontade. (Participante 9)

Esta invisibilidade e naturalização dos conflitos e dos eventos violentos são aspectos encontrados, em sua parte, pela pesquisa promovida por Quiñones, Cantera e Ocampo (2013) com profissionais que trabalham em locais de assistência a violência que, dentre outros apontamentos, apontam para as consequências na saúde física e mental ocasionadas pela exposição a estas experiências de violência.

No seguimento desta discussão, a figura institucional se apresenta como um eixo que dinamiza o adoecimento mental e o afastamento dos trabalhadores devido a suas estruturas hierárquicas rígidas e a falta de atenção e preparo para lidar os riscos psicossociais envolvidos na atividade de atendimento às mulheres vítimas de violência: “(...), mas onde vivi a maior parte da violência foi no nível institucional. Por que a instituição não está preparada para te dar respostas.” (Participante 4).

(...)De novo saí porque a pessoa que tinha sido minha tutora não estava bem mentalmente. Para minha saúde, eu tive que ir. A instituição não fez nada para impedir que essa pessoa estivesse lá, e para minha saúde e por mim, eu tive que sair. (Participante 1)

Estes dados reforçam os achados encontrados na classe 4 a respeito da ausência e insuficiência de autocuidado promovido pela instituição e indica, mais uma vez, como este agente apresenta um papel importante na saúde das equipes (Kulkarni et al, 2013). Além disso, conforme relatos acima, este agente não maneja os conflitos emergentes na equipe, mantém distância na educação de seus funcionários em detectar os sinais de estresse traumático ou burnout, assim como cria condições para um espaço laboral de adoecimento e emergência/fortalecimento dos conflitos e da violência nas relações laborais.

Em contrapartida, diante deste contexto permeado por conflitos e violência na prestação de serviços ou nos espaços de convívio no trabalho, estas pesquisadas criam recursos pessoais como base de empoderamento para manejar este contexto. O detalhamento deste cenário será na Classe 2.

Esta classe denominada “Autocuidado Pessoal”, composta por 22,04% dos segmentos dos textos, discorre sobre os recursos pessoais e sociais acionados pelas participantes para preservar a saúde ao lidar com os eventos de conflitos e de violência seja no atendimento dos alvos de violência, seja nas relações empreendidas em seus espaços laborais.

O primeiro aspecto revelado é a respeito da realização de atividades físicas pelas pesquisadas como uma via de compreensão mais nítida dos problemas vivenciados, de fortalecimento e manutenção do ânimo ou mesmo de apreciação do próprio exercício. O extrato seguinte caracteriza esta questão:

(...)Eu saio para correr, eu ando e percebi que pensar em movimento me muda, funciona e me dá lucidez Porque antes talvez pudesse ficar em casa ou no sofá, na cama e tal e eu percebi que, quando tenho um problema e ando, facilita no esclarecimento das ideias. (Participante 4)

A incorporação das atividades físicas e o cuidado com o equilíbrio corpo-mente se configuram como caminhos de autocuidado pessoal (Veslázquez, Rivera, & Custodio, 2015). A entrada desta maneira de cuidar de si, conforme falas acima, parte do princípio de que a prática de exercício físico agrega benefícios para o corpo e mente destas participantes.

Esta aproximação e reconhecimento da realidade interna diante do contato com o mundo externo e vice-versa também se tornam ferramentas de manejo dos eventos oriundos da prestação de serviços com o público atendido e nas relações com outros atores nos contextos laborais: “(...)eu estava fazendo algo para o qual não fui treinada e isso me assustou. Com a terapia, eu fui me fortalecendo, conhecendo quais eram meus limites, o que eu poderia fazer e o que eu não podia fazer.” (Participante 4).

Este princípio de identificar e discernir suas experiências subjetivas se torna um eixo fundamental de empoderamento e cuidado consigo, bem como uma maneira de elaborar suas ações e entendimentos diante desta realidade. No interior deste reconhecimento de suas particularidades psicológicas, este grupo profissional efetiva suas intervenções, respostas e concepções sobre os episódios vivenciados na prestação de serviços e na interação com os colegas de maneira mais ativa, assertiva e segura: “(...)bom, em alguma reunião, eu tive que me levantar e ir chorar, porque eu pensei porque diabos eu tenho que aturar. E agora que eu vejo com mais, com mais distância e tal” (Participante 4). “Eu enfrento, eu enfrento, eu tenho um caráter forte, embora eu seja muito sensível, eu sou uma garota muito assertiva (...)” (Participante 8).

Esta maneira de estabelecer limites e enfrentar estes eventos transcritos acima se desenham tanto como resultado deste investimento em sua realidade interna como um exercício de autocuidado (Ginés & Barbosa, 2010) ao delimitar, externalizar, enfrentar e ressignificar as exigências e desdobramentos no contato com o público e com a rede professional.

Apesar do predomínio do exercício do autocuidado em uma seara de maior independência e centramento de si, também foram encontrados discursos direcionados para a importância das relações familiares e da rede de amigos. Estas constatações são apresentadas nas falas abaixo: “(...)Bom, eu gosto de ler, gosto de escrever, gosto de ir ao cinema e comentar filmes, gosto de jantar, sair para jantar, conversar, encontrar amigos, amigos. “ (Participante 8).

Meu marido e eu temos um relacionamento. Meu marido e eu fomos muito amigos por dois anos e nos apaixonamos e acho que é uma base que tem permanecido no relacionamento e então, na verdade, isto está muito bom para mim. (Participante 3).

Conforme exposto acima, o ambiente familiar e rede de amigos constituem fontes de segurança e apoio para estas profissionais emergindo como apoio social de grande relevância. De acordo com Campos (2016), o suporte social é compreendido como a fonte de relacionamento interpessoal que oportuniza sentimentos de proteção e apoio gerando a sensação de ser reconhecido, cuidado e aceito bem como uma base que gera condições para enfrentamento do estresse cotidiano ao receptor.

Assim, depreende-se desta classe que as práticas de autocuidado em nível individual estão localizadas em ações de identificação e reconhecimento de suas subjetividades, autonomia e empoderamento de si de maneira que estas são utilizadas com assertividade e segurança mediante as demandas de seu contexto laboral seja no contato com o público atendido, seja nas relações laborais. Neste nível da discussão, cabe pontuar como a cultura exerce influência na determinação das habilidades pessoais e atitudes para preservação da saúde, prevenção de doenças e alcance de uma melhor qualidade de vida (Correa, 2015).

Retomando as questões tecidas sobre as afirmações de conflito e violência, identifica-se na Classe 1 denominada “Formas de Assédio e Conflitos”, englobando 13,6% dos segmentos dos textos, que a invisibilidade, imprecisão e sutileza das situações conflituosas e violentas constatadas na Classe 3 adquirem uma definição mais objetiva e clara.

Em relação as práticas de assédio, são identificados discursos que remetem a vivência de isolamento e a recusa da comunicação que são percebidas pelos alvos como uma prática sutil: “(...)porque um ano atrás, eu tive uma afetação, da qual eu não estava ciente, mas descobri que estava trabalhando sozinho, e não como um time. ” (Participante 9).

(...)Aqui eu acho que houve um exercício de violência pelo outro. No jeito de falar. Na forma de transferir informações, de uma forma muito sutil, com coisas como seu aniversário. Eu sei que é e todo mundo parabeniza você e a pessoa não me parabeniza. (Participante 4)

Nos discursos assinalados acima, observa-se que esta prática se materializa por meio de gestos, palavras e comportamentos de maneira sistemática e repetida dentro do campo das relações nos espaços de trabalho. Tanto o isolamento como a recusa da comunicação transmitem a mensagem, sem palavras, que o outro não interessa ou mesmo não existe para o autor da violência (Hirigoyen, 2006). Estas ações violentas provocam afetações no alvo tais como renúncia, confusão e medo.

Estas situações assediadoras e de conflito emergiam na gestão de múltiplas atividades trazendo o aspecto da precarização do trabalho assinalado na Classe 5 e no compartilhamento de decisões para o andamento das atividades. O seguinte extrato elucida esta afirmação: “(...) nós gerenciávamos tudo, gerenciávamos, desde a entrada da porta, impressora, os horários. Tudo. As chamadas, quero dizer toda a sobrecarga, toda a sobrecarga que foram as gestões, tudo isso gera desconforto e pode gerar conflitos em uma equipe sim.” (Participante 7).

Ao adentrar nestas situações de assédio e conflitos, identifica-se a aparição de características presentes nas relações laborais que são marcadas por nuances individualistas, precarizadas, sobrecarregadas e de falta de reconhecimento do outro. É caminhar em um espaço que relembra como os trabalhadores se submetem a qualquer condição de emprego e estão sujeitos aos novos de administração calcados pela alta performance para se desvencilhar da ameaça do desemprego (Barreto & Heloani, 2015; Figueredo, 2012).

As ocorrências de assédio e de conflitos são praticadas em uma direção ascendente e descendente como pontuados pela fala a seguir: “(...)haviam ações ou formas como os chefes me tratavam que eu não gostava.É verdade. Podemos falar de pessoas autoritárias que se você não concorda com elas, elas te isolam.”(Participante 1).

As condutas abusivas com direção descendente são características de estruturas muito hierarquizadas (Freitas, Heloani, & Barreto, 2008) e constitui a forma mais frequente em locais de assistência aos alvos de violência (Quiñones, Cantera, & Ocampo, 2013). Por outro lado, nos extratos acima, constata-se que as participantes vivenciaram esta violência quando ocupavam cargos de gestão ou praticaram atos violentos direcionados a estes espaços.

Neste contexto de convívio com conflitos e assédio, percebe-se que a falta de implicação dos agentes institucionais no manejo e resolução dos conflitos e das práticas violentas trazem consequências psicológicas para os alvos tais como insegurança e raiva:

(...) E é claro que isso afeta, se você com o seu colega ou sua colega, você tem que fazer entrevistas comuns, você tem que fazer visitas domiciliares, você tem que acompanhar as famílias para algum lugar, e acontece que ele está irritado com você. (Participante 9)

A situação retratada se constrata com os apontamentos de Sansbury, Graves e Scott (2015) que aponta para a necessidade de as instituições manejarem os conflitos dentro da própria equipe sem atingir a qualidade dos serviços prestados. Além disso, reforçam como estas profissionais estão imersas em vínculos empregatícios frágeis que causam impactos não só para os funcionários, como também para os demais que estabelecem laços profissionais e de reconhecimento da qualidade dos serviços prestados.

A exposição dos achados desta classe aponta que conflitos e práticas de violência nos locais de trabalho estão entremeados nos discursos das pesquisadas por outros aspectos relacionados a condições de trabalho que, como discorrido na Classe 5, são caracterizados pela precarização cuja presença em ambientes de trabalho propicia o surgimento de violência nestes cenários (Pioner, 2012).

Diante das constatações elencadas neste debate, direciona-se, neste momento, para uma compreensão de que estas profissionais espanholas estão sujeitas a uma série de fatores que potencializam os riscos de adoecimento em complemento ao já propiciado pela própria natureza do trabalho.

Em contrapartida, estas trabalhadoras têm conhecimento dos riscos envolvidos nas práticas de suas atividades e assim, assumem a posição de investir em seu autocuidado em nível pessoal seja através do investimento em sua autonomia e reconhecimento do seu mundo psíquico que, em alguns casos, foram promovidos pela psicoterapia, seja pela aproximação com as redes familiares e de amigos.

Conclusão

Esta pesquisa indicou, através da exploração das entrevistas realizadas, comprovações das condições de trabalho precarizadas, de histórias de adoecimento neste contexto laboral, de trajetórias profissionais marcadas pela flexibilização funcional, por afirmações sobre violência e conflitos elaboradas pelas participantes sobre os casos testemunhados que remetem as suas próprias experiências desta natureza em seus espaços de trabalho e do esforço individual destas trabalhadoras em cuidar da própria da saúde dada a compreensão das mesmas sobre os riscos envolvidos na atividade.

Neste ambiente pesquisado, as trabalhadoras teceram considerações sobre conflito e violência que apontam para a invisibilidade, a variedade de formas, sutileza e naturalização destes fenômenos nos casos atendidos. No entanto, estas afirmações estão entrelaçadas pelas próprias vivências conflituosas e agressivas experimentadas nas relações dentro dos ambientes de trabalho. Em conjunto com esta situação, também são localizados relatos acerca não só do precário autocuidado institucional, como também pela aparição destes agentes como fatores de potencialização de prejuízos para a saúde destas funcionárias. Esta realidade nos remete para os apontamentos de Kulkarni et al (2013) sobre a considerável influência que as instituições têm na saúde dos profissionais.

Em contrapartida, as pesquisadas promovem um trabalho individual de aproximação, reconhecimento e empoderamento de seu mundo interno, seja através da prática de atividades físicas ou da psicoterapia, como vias de manejo mais assertivo e seguro das demandas oriundas dos casos atendidos e no contato com a rede profissional. Esta busca pelo investimento em si se desenha como um autocuidado pessoal (Coles, Dartnall, & Astbury, 2013; Gimena, Alonso, & Monzó, 2012) dado que o discernimento e a identificação das próprias experiências subjetivas impulsionam a construção de limites, o empoderamento pessoal, a autonomia e segurança nas intervenções com o mundo externo. Cabe assinalar que a construção destas habilidades no cuidado consigo está entremeada por questões culturais (Correa, 2015).

Esta exploração também apontou para a necessidade de assunção de práticas por parte dos agentes institucionais voltadas para abordagem dos conflitos e para o reforço das práticas de autocuidado pessoal, de atenção à saúde dos profissionais através da educação e monitoramento de sinais de traumatização vicária, estresse traumático secundário, burnout e nos indícios de assédio na equipe (Sansbury, Graves, & Scott, 2015).Diante das condições de trabalho precarizadas, das formas de adoecimento constatadas e pelos escassos ou inexistentes esforços institucionais para cuidar da saúde dos trabalhadores, salienta-se a importância da plena e homogênea efetivação dos programas de autocuidado vigentes, da discussão do papel da condição da mulher dentro do mercado de trabalho e da elaboração de propostas de cuidar da equipe profissional que levem em consideração as particularidades sociais, econômicas e culturais dos locais de intervenção.

Ao pensar sobre o papel assumido pelas instituições, torna-se fundamental relembrar que elas estão mergulhadas em uma lógica capitalista neoliberal que prima, cada vez mais, pela fragilização das condições de trabalho, pelo uso barato da força de trabalho feminina e pela cobrança de desempenho de alta performance no desempenho das funções (Nascimento, 2014). Com isso, a implantação efetiva de práticas de autocuidado é algo que extrapola as esferas institucionais.

Por fim, a presente pesquisa apresenta limitações que podem ser ultrapassados por estudos futuros. A primeira se refere à falta de aplicação de um instrumento que mensure e comprove os relatos de burnout de modo que estes achados fossem relacionados com os outros aspectos desta pesquisa. A segunda questão é caracterizada pela ausência de questões investigativas sobre aspectos envolvidos a elementos inerentes a dinâmica organizacional. A terceira limitação está situada na falta de questões que compreendam quais as circunstâncias que levam um conflito não- manejado ser uma potencial fonte de assédio moral no trabalho.

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Nota:Participação dos autores: a) Planejamento e concepção do trabalho; b) Coleta de dados; c) Análise e interpretação de dados; d) Redação do manuscrito; e) Revisão crítica do manuscrito. K.D.A.S contribuiu em c, d; J. P. S em a, e; A.P. T em a, b; L.M.C.E em a, e.

Correspondência: Karine David Andrade Santos, Joilson Pereira Silva, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, SE, Brasil, Av. Marechal Rondon, s/n. Rosa Elze São Cristóvão/SE CEP: 49100-000, Brasil. Alícia Perez Tarrés, Leonor María Cantera Espinosa, Universidad Autónoma de Barcelona: Bellaterra-Barcelona, Barcelona, Espanha, Edifici B Despatx B5/040, Campus de la UAB · 08193 Bellaterra (Cerdanyola del Vallès).

Como citar este artigo: Andrade Santos, K. D., Pereira Silva, J., Perez, A. T., & Cantera, L. M. (2019). Rotas e colisões no trabalho de atendimento às mulheres vítimas de violência na Espanha. Ciencias Psicológicas,13(2), 209-223. doi: 10.22235/cp.v13i2.1877

Recebido: 14 de Junho de 2018; Aceito: 16 de Maio de 2019

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