SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 issue31The path of Sisyphus and the reflective nostalgia in the cinema of Juan José CampanellaDue to a fence: Territorie and narrative split by fear in the movies O som ao redor and Historia del miedo author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Related links

Share


Dixit

Print version ISSN 1688-3497On-line version ISSN 0797-3691

Dixit  no.31 Montevideo Dec. 2019  Epub Dec 01, 2019

https://doi.org/10.22235/d.v0i31.1830 

Desde la academia | Dossier

La ciudad que huye: Formação dos countries argentinos e os ruídos da cidade no cinema

La ciudad que huye: Argentine “countries” and the noise of the city in the cinema

La ciudad que huye: “Countries” argentinos y los ruidos de la ciudad en el cine

Suelen Caldas de Sousa Simião1 
http://orcid.org/0000-0001-9261-3645

1 Universidade Estadual de Campinas, Brasil. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, Brasil. Correspondencia: suelen_caldas@hotmail.com


Resumo:

O presente trabalho se propõe a analisar a presença urbana a partir dos ecos e ruídos da cidade, expressos no curta documentário La ciudad que huye (2006), de Lucrecia Martel, e nos filmes Cara de queso - mi primer ghetto (2006) de Ariel Winograd, Una semana solos (2008) de Celina Murga, Las viudas de los jueves (2009) de Marcelo Piñeyro, Historia del miedo (2014) de Benjamín Naishtat, e Los decentes (2016) de Lukas Valenta Rinner, através do avesso da cidade que se transmuta em cidadela, forjada por uma classe média e alta e sob o contexto de políticas neoliberais. Os filmes aparecem como linguagens singulares que, entrecruzados à luz da documentação técnica, da bibliografia sobre cidades e da compreensão do processo histórico de formação dos countries, nos auxiliam a pensar e problematizar as relações entre sensibilidades, sociabilidades e espaço urbano contemporâneo nessa espécie de “cidade que foge”.

Palavras-chave: cinema; sensibilidades; sociabilidades; countries; Região Metropolitana de Buenos Aires

Abstract:

The present work intends to analyze the urban presence from the echoes and noises of the city, expressed in Lucrecia Martel’s short documentary La ciudad que huye (2006), and in the films Cara de queso - mi primer ghetto (2006) by Ariel Winograd, Una semana solos (2008) by Celina Murga, Las viudas de los jueves (2009) by Marcelo Piñeyro, Historia del miedo (2014) by Benjamín Naishtat, and Los decentes (2016) by Lukas Valenta Rinner, through the reverse of the city that is transformed into citadel, forged by a middle and upper class and under the context of neoliberal policies. The films appear as singular languages that, interwoven in the light of technical documentation, the bibliography on cities and the understanding of the historical process of formation of the countries, help us to think and problematize the relations between sensibilities, sociabilities and contemporary urban space in this kind of “city that flees”.

Key words: cinema; sensibilities; sociability; countries; Buenos Aires Metropolitan Region

Resumen:

El presente trabajo pretende analizar la presencia urbana a partir de los ecos y ruidos de la ciudad expresados en el cortometraje documental La ciudad que huye (2006) de Lucrecia Martel, y en las películas Cara de queso - mi primer ghetto (2006) de Ariel Winograd, Una semana solos (2008) de Celina Murga, Las viudas de los jueves (2009), de Marcelo Piñeyro, Historia del miedo (2014), de Benjamín Naishtat y Los decentes (2016) de Lukas Valenta Rinner a través del reverso de la ciudad que se transforma en ciudadela, forjada por una clase media y alta, y en el contexto de las políticas neoliberales. Las películas aparecen como lenguajes singulares que, entrelazados a la luz de la documentación técnica, la bibliografía sobre las ciudades y la comprensión del proceso histórico de formación de los países, nos ayudan a pensar y problematizar las relaciones entre sensibilidades, sociabilidades y espacio urbano contemporáneo en esta especie de "ciudad que huye".

Palabras clave: cine; sensibilidad; sociabilidad; countries; Región Metropolitana de Buenos Aires

Introdução

La ciudad que huye (2006) é um curta-metragem documental de cerca de cinco minutos elaborado pela renomada diretora argentina Lucrecia Martel. O curta foi realizado para uma mostra de cinema itinerante e é resultado de uma investigação realizada ligada ao projeto La ciudad en ciernes, que contava com uma série de análises e intervenções para pensar o direito à cidade e a relação entre urbanismo e direitos humanos. “La ciudad que huye”, “a cidade que foge”, ressalta o fenômeno urbano de expansão de bairros e condomínios fechados, os countries, ao redor da cidade de Buenos Aires.Figura 1

Figura 1 

A primeira cena do curta, gravada com uma câmera na mão, é a de uma grade sendo fechada; logo depois, o título aparece em letras garrafais sob um fundo de vegetação. Após isso, em uma pequena tela vemos passar os muros de uma grande construção enquanto pode-se ler na legenda “Há 20 anos, buscando locais para um curta, conhecemos um bairro fechado. ‘Que ideia absurda! Não vai funcionar’, pensamos”.

Na cena seguinte, o plano maior novamente toma a tela e vemos se desenrolar, sob a mesma perspectiva da câmera na mão, meio escondida, uma nova tentativa infrutífera de entrar em um country, agora de outra região. As cenas se alternam entre a perspectiva da câmera e imagens de satélites que demonstram a extensão dos condomínios e bairros fechados. Em certo momento, Martel (2006) narra:

Estas urbanizações exclusivas da iniciativa privada são um fenômeno novo. Historicamente, o Estado argentino havia se preocupado em integrar a população através de uma cidade de quadras iguais que colocava limites aos empreendimentos privados. O investimento estatal em transporte público facilitou a comunicação por esse vasto território. Nos anos noventa, essa vontade estatal desaparece, se privatizaram as empresas públicas, se desmantelaram as redes ferroviárias e a fratura social se aprofundou.

Uma tela é partida ao meio e temos um pequeno quadrado do lado esquerdo que acompanha os muros dos condomínios por alguns segundos; o único som é o do barulho do motor do carro onde se encontra a câmera, e sons de pássaros e grilos. A imagem se apaga e um quadro do lado direito mostra a filmagem de casas simples, vizinhos, sons de criança e latidos de cachorro, trazendo como legenda “os vizinhos da frente”. Esse jogo se repete durante várias vezes, ora mostrando os muros, ora os vizinhos da frente.

Ao longo da narrativa, acompanhamos diversas tentativas feitas pela equipe de filmagem para entrar nos condomínios, mas nada vemos deles que não seja a portaria de entrada e o curto diálogo com o porteiro. Enquanto Martel narra, diversos quadros aparecem na tela indicando filmagens dos muros de diferentes lugares:

Uns tem quadras de golfe, outros, quadras de polo. Alguns com centros comerciais e centros médicos muito modernos, muitos com colégios de línguas. Todos com segurança privada. Há uma grande preocupação por florestar, plantar árvores e colocar “trepadeiras” que aos poucos vão fazendo os limites mais naturais.

Ao mesmo tempo em que a câmera acompanha por fora os muros, vemos rodar no canto da tela, à semelhança de um cronômetro, a quilometragem de extensão das urbanizações fechadas. O documentário tem sua força na antítese ao abordar condomínios sem sequer entrar em um. Na verdade, as próprias barreiras físicas, os muros, são barreiras para o filme.

Em 2000, a Região Metropolitana de Buenos Aires (RMBA) continha 351 bairros fechados para uma população de cerca de 50.000 habitantes e, de acordo com Guy Thuillier (2005, p. 6), na escala de 13 milhões de habitantes, os 300 km² ocupados por esses loteamentos constituíam uma superfície maior que a Cidade Autônoma de Buenos Aires. A formação e os impactos dos bairros e condomínios fechados na RMBA têm despertado o interesse de diversos pesquisadores como urbanistas, geógrafos, sociólogos, antropólogos e psicólogos, sobretudo a partir dos anos 1980.

Formação e expansão dos countries na Região Metropolitana de Buenos Aires

Os primeiros countries surgem na Argentina nos anos 1930, reaparecem nos anos 1970 e têm aumento significativo nos anos 1990. Para Anahí Ballent (1998), só é possível compreender o boom da formação dos countries a partir da conjugação entre plano material e plano dos significados dada pela íntima relação entre pitoresco, mercado imobiliário e o imaginário sobre a vida fora da cidade.

Apesar de configurarem tipos distintos de edificações, essas urbanizações, que vão de “estancias, quintas, viviendas de veraneo, casas de weekend y country clubs” (Ballent, 1998, p. 88), trazem como substrato comum viver fora da cidade e em contato com a natureza. Para Ballent, esse processo se dá através das relações entre espaço e cultura, e entendê-lo passa por compreender como as representações e criações de uma cultura do habitar se relacionam aos valores socioeconômicos dos habitantes -o que, neste caso, implica dizer que o imaginário do “viver fora da cidade” esteve ligado à formação de uma sensibilidade gestada dentro de uma cultura letrada e rica.

A utilização do termo pitoresco aparece na Inglaterra relacionada às pinturas de grandes paisagistas do século XII. Aos poucos, associada ao sublime, liga-se o termo à imagem de uma natureza controlada e modelada pelo homem, o jardim, e, mais precisamente, o jardim inglês. Essa relação com o jardim estende-se à arquitetura que “se situará en esta relación tensa y sutil frente al paisaje, a medio camino entre la naturaleza y la cultura, adaptándose al paisaje a la vez que promoviendo su transformación” (Ballent, 1998, p. 88) e, ao evocar um arsenal simbólico, leva o espectador para além da forma arquitetônica, conjugando plano material e dos significados. Thuillier (2005) também ressalta esse aspecto ao abordar a construção dos primeiros country clubs e suas expansões a partir dos anos 1970 sob a argumentação da “qualidade de vida”. Como Ballent, o autor ressalta o elemento ligado ao pitoresquismo:

El primer elemento de esta transformación de lo urbano en rural-urbano es una modificación de las formas. En lo que respecta al paisaje al interior de las urbanizaciones cerradas, salta a la vista del visitante que estos barrios adoptan un lenguaje arquitectural y urbanístico que pretende romper con el de la ciudad-centro. El estricto e monótono damero de Buenos Aires es reemplazado por el de las calles curvas, los cul de sac alrededor de lagos artificiales, formas típicas de la arquitectura “pintoresca” (Thuillier, 2005, p. 9).

Nesse sentido, a natureza asume papel de destaque como poderemos notar a partir dos filmes Cara de queso - mi primer ghetto (2006) de Ariel Winograd, Una semana solos (2008) de Celina Murga, Las viudas de los jueves (2009) de Marcelo Piñeyro, Historia del miedo (2014) de Benjamín Naishtat, e Los decentes (2016) de Lukas Valenta Rinner, que nos propomos analisar aqui. No caso argentino, além do plano cultural e da conjugação de um universo de sentidos em relação com a natureza, a formação das casas de verão -os primeiros countries- liga-se a uma forte epidemia de febre amarela em fins do século XIX, acarretando a migração das classes mais ricas para a região norte de Buenos Aires, e também da constante reiteração do discurso médico higienista sobre os benefícios de se distanciar das grandes aglomerações urbanas. Nesse ponto, Ballent ressalta como a relação com o corpo e, nesse caso, o corpo saudável, que praticava esportes, frequentava praias e a natureza, altera as dinâmicas de socialização entre os anos 1910 e 1930.

Tais discursos eram ainda gestados e difundidos a partir de revistas sobre os usos dos espaços domésticos, circulando entre os meios mais ricos e se estendendo dos locais públicos aos privados, como é o caso da revista Casas y Jardines, dedicada a demonstrar as tendências da arquitetura doméstica, suburbana e com ares norte-americanos.

No caso de publicações sobre os countries, a partir dos anos 1990, Horacio Torres (2001) destaca seu aumento significativo em jornais como Clarín e La Nación. De acordo com o autor, no início dos anos 1990 a oferta relativa aos condomínios e bairros fechados cobria em média duas páginas de algum dia específico da semana. A partir de meados da década, os dois jornais iniciaram um suplemento dedicado aos countries com cerca de 15 páginas. Em 2001, ano de escrita do texto do autor, esse guia especializado continha 130 páginas, incluindo informações completas dos empreendimentos, características, infraestrutura, localização etc.

Para Ballent, é interessante destacar as relações existentes com o mercado imobiliário logo nos primórdios (os anos 1930), uma vez que o apreço pela junção entre vida saudável, habitar fora da cidade e novas formas de sociabilidade dá-se concomitante à construção dos primeiros country clubs: o Tortugas (que aparece em diversas páginas de Casas y Jardines) no início dos anos 1930, e o Hindu Club, em fins da mesma década.

Mas, é somente nos anos 1970 que o estilo de vida ligado a esses empreendimentos, em conjunção com a especulação imobiliária, atinge patamares significativos no país:

Los promotores inmobiliarios tomaran la iniciativa de ampliar este mercado entre la clase media alta; a ellos no tardarían en sumarse muchos beneficiarios de la plata dulce de la política económica de la dictadura militar, que constituyó un disparador de transformaciones en los hábitos de consumo y en el horizonte de expectativas culturales de amplios sectores de la clase media, que en sus viajes iniciáticos a Miami no solo compró electrodomésticos (Ballent, 1998, p. 96).

Além das mudanças propriamente ligadas ao universo simbólico de relação com a cultura, uma série de medidas legislativas são realizadas para incorporar essas modificações urbanas. É por pressão do mercado imobiliário, por exemplo, que a “Ley de ordenamiento urbano y territorial de la Provincia de Buenos Aires 8912/1977” (decreto que regulamenta o uso do solo) sofre alterações. Inicialmente, o Decreto Ley 8912/1977 “especifica la ubicación de los clubes de campo en ‘áreas complementaria o rural’, para la construcción de viviendas de uso transitorio ‘en contacto con la naturaleza’” (Svampa, 2003, p. 30), e só posteriormente contempla a figura do bairro fechado e legisla a partir das aproximações com as zonas urbanas.

Voltando à Ballent, ainda que o boom das urbanizações fechadas pareça temporalmente distante da primeira parte de seu texto, compreender o fenômeno no qual dentro de certas condições econômicas e convenções culturais desenvolveu-se um novo tipo de imaginário sobre a habitação/natureza e as sensibilidades é fundamental para entender as mudanças que se dão a partir dos anos 1970, e que são expressas a partir dos filmes que nos propomos a tratar aqui.

De acordo com Thuilier (2005), os countries têm impacto sócio-territorial em nível local, metropolitano e nacional. Além disso, para o autor, essa nova “urbanidade” traduz uma profunda mutação da representação de cidade. Para apreender esse processo, é necessário analisá-lo por dentro, no sentido de compreender as construções desses empreendimentos e suas formas arquitetônicas e urbanas, as funções de seus espaços e as práticas sociais estabelecidas neles; e, também, por fora, buscando os impactos dessas construções nos arredores e no restante da cidade.

Por urbanidade o autor entende, e aqui nos filiamos às suas concepções, “no una cierta calidad normativa de la ciudad, sino el conjunto de propiedades de un espacio urbano y las relaciones que establecen sus residentes con ese espacio” (Thuillier, 2005, p. 6), pensados a partir da imbricação de três componentes: as formas da cidade, o par função/práticas urbanas e as relações sociais.

No caso das construções, Thuillier (2005) escreve que as urbanizações fechadas parecem saídas de séries televisivas norte-americanas, deixando evidente os contrastes socioeconômicos. Sonia Roitman (2003) analisa, por exemplo, para o caso da Região Metropolitana de Mendoza, na Argentina, que os empreendimentos criados, por demandarem grande extensão de terra, foram situando-se em áreas suburbanas gerando mudanças nas formas de uso do solo urbano, anteriormente ocupados por grupos de pouca renda econômica e conseguidos por meio de subsídio do Estado, podendo ser chamados de “enclaves urbanos” (Caldeira, 2011; Thuillier, 2005).Figura 2

Figura 2 

As mudanças ocorridas nos anos 1990, como escreve Thuillier, correspondem ao período de crescimento da desigualdade social ligado à abertura econômica, às grandes privatizações e ao desmantelamento do Estado (como também ressalta Martel no curta-metragem documental). Nesse processo é importante ressaltar que “no son únicamente los barrios cerrados los que materializan espacialmente esta fragmentación social, pero ellos significan su aceptación definitiva por parte de las élites y, peor aún, contribuyen a rigidizarla” (Thuillier, 2005, p. 16).

Para Roitman (2003), embora a desigualdade social seja característica de quase todas as sociedades ocidentais, nos últimos anos seu aumento se deve à intensificação de políticas neoliberais, precarização do trabalho e falta de investimento do Estado em questões como saúde, moradia e emprego. A privatização da segurança é um elemento largamente utilizado na contemporaneidade, como salienta Roitman, e não se resume aos bairros fechados, estando presente também na contratação de segurança privada em bancos, shoppings centers, negócios e outras áreas residenciais. Dentre as principais causas relacionadas à origem dos bairros privados está o discurso em torno do aumento da violência e da insegurança, e a construção dos countries, assim como as demais contratações de segurança privada, parecem ser uma espécie de resposta ao fracasso do Estado. No entanto, para a autora, ao serem criados, tais empreendimentos contribuem para a segregação e fragmentação da cidade.

A questão da segurança aparece também como critério de diferenciação social e, aliada à intensificação capitalista e à construção de microcidades dentro dos countries (escolas, maternidades, shoppings próximos, serviços básicos), limita as interações sociais, cujos efeitos já são perceptíveis na primeira geração de crianças nascidas e criadas em tais urbanizações -com sintomas como os sentimentos de insegurança e de medo da cidade aberta, e a hipersensibilidade e total falta de manejo quanto aos códigos necessários para se deslocar na cidade, ou seja, a perda do sentido urbano, questões também expressas na cinematografia.

Maristella Svampa descreve (trabalho realizado a partir de uma série de entrevistas e escopo de produção acadêmica da autora há vários anos) como, para os moradores dos anos 1990, o country life é uma novidade e um estilo de vida, uma opção; porém, para seus filhos, o círculo social restrito e as escolas privadas dentro dos condomínios convertem-se em modelo.

No caso da segurança, é importante ressaltar, como escrevem Roitman (2003) e Teresa Caldeira (2011), que existe uma sensação e sentimento de segurança, não significando que isso efetivamente aconteça, questão também abordada em filmes como Historia del miedo, Las viudas de los jueves e Los decentes. Além de ser uma “solução” individual para um problema que é urbano e coletivo, para as autoras, não há dados que atestem a diminuição da criminalidade a partir do surgimento dos bairros e condomínios fechados, nem sequer nos casos de delinquência infantil.

Mas o modelo “bolha”, aos poucos, eleva seu lado negativo de uma base comunitária que se fundamenta a partir do medo e reforça dicotomias do nós versus outros? Também para Ballent, os countries são uma forma de dizer, paulatinamente, “somos diferentes”. Mas resta saber, escreve a autora, se a “burbuja” dos condomínios de fato exime os riscos da cidade ou se “en cambio, seguiendo las directrices estéticas y culturales con que han modelado sus escenarios cuidadosamente diseñados, solamente conseguirán construir y habitar la agridulce evocación de uma burbuja” (Ballent, 1998, p. 100. Destacado no original).

Essa “cidade que foge” é a tentativa de construção de um novo tipo de cidade, ou a negação da cidade e da urbanidade pela homogeneização e criação de um urbanismo de afinidades? Quais seriam os impactos sensíveis (ligados à sensibilidade) dessas construções? Existem e quais seriam os ruídos de cidade nos countries? Os filmes, enquanto expressões sensíveis dos processos de relação das pessoas entre si e com o espaço urbano, nos auxiliam a responder algumas dessas indagações.

Ruídos no cinema: da cidade à cidadela

Se, no curta de Martel, o ponto de vista é exterior (do lado de fora dos muros), nos filmes Cara de queso - mi primer ghetto, Una semana solos, Las viudas de los jueves, Historia del miedo e Los decentes temos pontos de vista do interior (dos countries), com tramas baseadas no medo da cidade aberta e na formação de comunidades fechadas que, para além da superfície de segurança e tranquilidade, apresentam problemas desestruturadores que quebram a narrativa de perfeição das “bolhas” urbanas.

A utilização das fontes técnicas (no caso, os documentos de sociólogos, antropólogos, geógrafos etc., bem como jornais e revistas sobre os empreendimentos) e artísticas não tem como intuito investigar vestígios, reflexos, ou sintomas da realidade no cinema, mas trabalhar como a história pode ler na ficção um tipo de abordagem que só a narrativa ficcional pode realizar.

Maria Stella Martins Bresciani (1981; 1985), por exemplo, assinala como as relações com a cidade a partir do olhar da/na cena urbana constroem-se historicamente. A autora atesta o surgimento de uma nova sensibilidade no século XIX, que pôde ser percebida nas mudanças expressas na produção intelectual, e como essa produção se adaptou para apreender o novo fenômeno urbano com o uso da linguagem escrita e visual, quando a linguagem técnica e científica parecia não ser mais suficiente. Para Robert Pechman (2014), é com o romance de fins do século XIX e início do XX que há a experimentação do drama urbano em sua dimensão mais subjetiva e interior. Utilizaremos aqui, por analogia, o cinema.

No caso argentino, é importante pensar a expressividade do que se denominou nuevo cine argentino (NCA), assim como seu contexto de produção. O NCA se estabeleceu na década de 1990 com a reformulação do Instituto Nacional de Cine y Artes Audivisuales (INCAA), inaugurando uma nova fase da política audiovisual a partir da recuperação da produção argentina na área de cinema após um período de crise. Tais filmes, realizados sobretudo com as leis de incentivo e sob o impacto das políticas neoliberais, trazem obras particularmente atadas ao tempo presente e têm como forte característica a presença do espaço urbano, temas da desigualdade de gênero/social, discussões sobre identidade, etc. (Campero, 2009; Campo, 2010; Galt, 2012).

Uma série de filmes apresenta como protagonista ou pano de fundo a cidade e o universo de questões advindas da nova ordem econômica que aprofunda a brecha social na Argentina, como, por exemplo, Buenos Aires vice-versa (Alejandro Agresti, 1996), Vagón fumador (Verónica Chen, 2002), El asaltante (Pablo Fendrik, 2007), Construcción de una ciudad (Néstor Frenkel, 2007), e Elefante blanco (Pablo Trapero, 2012), entre outros.

Alberto Chamorro (2011), em seu livro Argentina, cine y ciudad, em exame do impacto das políticas neoliberais e da crise econômica entre 2001 e 2002, evidencia elementos em comum nas variadas obras filmadas do período, bem como seu “compromisso político”, para além da superfície de análise dos críticos que postularam a falta de engajamento de tais diretores.

Em nossa pesquisa, os filmes são considerados sob o pano de fundo da crise e não como reflexo ou resposta a ela, pois nossa entrada no debate se faz a partir de pensarmos as mudanças urbanas e suas expressões no cinema argentino. Buscando contornar os limites que a representação pode parecer enunciar, utilizamos o conceito de expressão com vistas a evitar qualquer sentido reflexivo ou passivo, e por acreditarmos, ao encontro com os textos de Esteban Dipaola, que a noção de expressão “abre las posibilidades de un pensamiento plural y activo del arte y que no restringe las amplias posibilidades y potencialidades interpretativas que en cualquier caso se desprenden de la obra” (Dipaola, 2013, p. 4). E, nesse sentido, “la Expresión, en ese marco, no es transcendente sino plenamente inmanente y ya no refiere a una idea previa de la realidad sino que se despliega como experiencia” (Dipaola, 2013, p. 4).

Isso significa afirmar que a cinematografia realiza uma expressão da experiência que não elimina completamente qualquer vínculo com representação, mas procura ir além, movendo-se a partir dos entrecruzamentos possíveis de imagens com seus múltiplos sentidos em transformação.

Os filmes anteriormente citados ressaltam o contexto dos countries. Natalia Christofoletti Barrenha (2016c) salienta que, no momento de rodagem de alguns desses filmes (Cara de queso, Una semana solos, Las viudas de los jueves), o universo das urbanizações privadas estava em evidência, seja pela literatura sobre o tema, análises de urbanistas e sociólogos; seja por ser o período (cerca de 2006, por exemplo) em que se torna adolescente a primeira geração de crianças nascidas nos condomínios. O lançamento do livro de Claudia Piñeiro, Las viudas de los jueves (2005, ganhador de um importante prêmio literário local), o assassinato de duas mulheres em suas casas em condomínios de luxo (crimes sem solução) e uma onda de vandalismo iniciada por crianças em um country contribuíram para criar a atmosfera na qual o cinema argentino encontrou terreno para suas narrativas (Christofoletti Barrenha, 2016c; Svampa, 2004; Thuillier, 2005).

Cara de queso - mi primer ghetto ambienta-se em um condomínio judeu onde cinco crianças outsiders vivenciam diversas situações de preconceito na passagem da infância à adolescência. O “gueto” faz referência à perspectiva do avô de uma das crianças, que afirma serem as comunidades fechadas similares aos guetos judeus sob o nazismo.

Una semana solos desenvolve-se a partir da observação de crianças e adolescentes fechados em um condomínio, sem a presença dos pais e que, para se livrarem do tédio, invadem casas vazias. O momento disruptivo da rotina das crianças é a chegada do irmão adolescente da empregada. O filme potencializa e materializa a apenas aparente perfeição dos condomínios ao expor, através das crianças, situações de preconceito de classe, invasão de propriedade, vandalismo etc.

Las viudas de los jueves, inspirado na obra homônima de Claudia Piñeiro, passa-se em um bairro fechado de classe alta e trata da interação de algumas famílias deste bairro -até que três homens aparecem mortos na piscina. Para além do crime quebrando a narrativa de perfeição de tais urbanizações, uma série de outras ocasiões é marcante no filme, como a compra e venda de drogas por adolescentes, estupro, violência contra a mulher etc.

Historia del miedo traz em seu enredo personagens interligados a partir de um condomínio, um edifício de classe média alta e uma periferia. O medo é o tom central do filme, que apresenta um clima de suspense não restrito ao condomínio, mas também às outras ambientações, criando um sentimento de inquietude e insegurança nos personagens.

Los decentes ambienta-se em um condomínio de luxo no subúrbio de Buenos Aires, onde uma empregada doméstica, Belén, descobre que, ao lado da sua rotina entediante de trabalho, existe uma comunidade naturista. Aos poucos, Belén transpassa o muro do country e se envolve com a comunidade.

Todos os filmes citados, em maior ou menor intensidade, trazem como substrato o suspense e jogam com elementos do gênero de horror. Nesse sentido, é interessante notarmos, por exemplo, como, colocados em ordem cronológica, os filmes intensificam a crítica às urbanizações fechadas através da cada vez maior falta de interação entre os personagens, ao mesmo tempo em que a violência, não apenas física, aparece de maneira cada vez mais latente.

Quando observamos, por exemplo, os pôsteres de divulgação dos filmes, vemos que Cara de queso tem uma imagem onde a cor predominante é o amarelo, apresentando o protagonista ao centro e alguns dos outros moradores do condomínio ao seu redor. Da série que nos propomos analisar, este filme é o único que, apesar de expor violência e bullying, possui cenas maiores de interação entre as crianças e também dos demais moradores da urbanização fechada. Além disso, sua trilha sonora é divertida, diferentemente dos demais, nos quais predomina um clima de suspense. Esse pôster pode ser considerado como oposto ao de Una semana solos que, com tons pastéis, apresenta uma criança sozinha.

Las viudas de los jueves traz em seu pôster mulheres com roupas de luto e, logo abaixo, seus respectivos maridos encaram o espectador, indicando de imediato o clima de suspense. Também com tons mais escuros, Historia del miedo tem em primeiro plano um dos protagonistas, que faz uma careta enquanto parece encarar algo. Por fim, Los decentes faz uma releitura de O nascimento da Vênus através de Belén em meio às folhagens e em cima do corpo de um homem morto com roupa de tenista.

Além dos pôsteres dos filmes, que analisamos aqui de maneira breve, as cenas iniciais trazem elementos interessantes para pensarmos a partir do que foi exposto em relação à documentação técnica, e como os filmes expressam o espaço urbano e as sociabilidades, bem como estabelecem uma crítica à ideia de perfeição dos condomínios.

Cara de queso se inicia de maneira silenciosa e, aos poucos, ouvimos o barulho de gemidos e choro. A câmera percorre lentamente um ambiente e logo vemos uma criança chorando no chão, enquanto outra urina nela. A câmera se vira e vemos que quem observa, e acabou de chegar, é o protagonista, que narra e descreve a cena: “Sou um idiota. Ao invés de ter feito alguma coisa, fiquei lá parado chorando. Esse é o meu amigo Coper. E este é Alma, o garoto mais popular.”

Após essa cena, a câmera sobe e temos uma visão ampla da planta do condomínio, e a apresentação dos atores e personagens através das carteirinhas de sócios do country. Ao mesmo tempo, temos noção da disposição das casas e áreas de lazer, enquanto ao fundo ouvimos um tango. A última carteirinha é a de Ariel, o protagonista que, andando de bicicleta, apresenta o country: “Esse é meu country, aqui passamos o verão mais de 100 famílias judias, vivendo felizes longe de tudo”. Enquanto o personagem narra, conhecemos um pouco do clube de campo e dos personagens que são descritos e acompanhados pela câmera.

Em Una semana solos, enquanto aparecem os créditos, nos ambientamos ao som de grilos e pássaros. Em seguida, vemos um lago e, na sequência seguinte, uma menina correndo entre as árvores de um bosque. Logo depois, sob a perspectiva de uma câmera um pouco escondida, notamos que um menino corre atrás da garota. A câmera para quando as crianças invadem uma casa vazia e o menino pega uma miniatura de carrinho que estava em um dos quartos. Em seguida, os dois personagens juntam-se a uma criança menor e andam de bicicleta pelo condomínio.

Historia del miedo começa com o barulho de um helicóptero em plano aberto e vemos que a câmera sobrevoa campos esportivos e habitações, em sua maioria com piscinas, cercadas por muros verdes e autopistas. Algumas palavras, meio inaudíveis pelo barulho das hélices, são pronunciadas por um megafone. Na sequência seguinte, praticamente sem nenhum som, ainda em plano bastante aberto, mas agora a partir do chão e sob um pano de fundo de vegetação, um homem joga bola com uma criança. O único som é o de grilos e pássaros ao fundo e poucas palavras trocadas por eles para mandar a bola um para o outro. A perspectiva quase silenciosa do jogo entre o pai e o garoto contrasta com a volta da perspectiva da câmera filmada de cima do helicóptero. De volta à continuação da sequência anterior, vemos uma mulher deitada em uma espreguiçadeira, de óculos escuros e lendo uma revista. A câmera (e o som) se alteram, ora mostrando as três personagens às quais fomos apresentados no início do filme, ora a vista de cima das habitações envolvidas pelo som forte da hélice.

Los decentes inicia-se com entrevistas de emprego de mulheres. A entrevista com cada uma é rápida e as perguntas se concentram em saber quais as referências da pessoa, se tem filhos e se reside na Capital. Após isso, a câmera percorre os muros de um condomínio, alternando entre mostrar seus arredores, a autopista, os trilhos do trem e os vizinhos. A câmera para quando chega na portaria de entrada do condomínio, onde os funcionários descem e são revistados pelo porteiro e o segurança.

Os filmes trazem, em seus primeiros minutos, grande parte dos elementos descritos na primeira parte deste texto. Áreas amplas e arborizadas, quadras de esportes (em consonância com o imaginário do corpo saudável e que praticava esportes de que fala Ballent), áreas comuns de lazer, casas grandes e piscinas, famílias de classe média e alta. Temos ainda a predominância dos ambientes desertos e a reprodução de cenas que, vistas de maneira separada, não são em si de suspense, mas, no conjunto de um ambiente praticamente deserto e extremamente vigiado e murado, causam inquietação.

Em Historia del miedo, por exemplo, diversos momentos poderiam ser elencados, como um alarme que dispara em uma casa do condomínio fechado, o elevador que sempre emperra ao acabar a energia no edifício de classe média alta, um homem que aparece na câmera do prédio e agride verbalmente a empregada, um estacionamento vazio durante a madrugada, o porteiro que sai da guarida do condomínio após ouvir um barulho, o lixo que aparece insistentemente ao lado do condomínio, o carro do segurança que repentinamente é atacado por barro, um dos personagens que aparece em um prédio abandonado, a partida de futebol que acaba em briga. Para Christofoletti Barrenha (2016a):

(Em Historia del miedo) O som é elemento fundamental para a introdução de uma atmosfera assustadora e desconfortável. As alterações nas rigorosas paisagens sonoras de cada ambiente colaboram para a instalação da incerteza, especialmente porque se dão em off. Assim, nunca se vê o que incomoda, que adquire dimensão fantasmal. É dessa forma, também, que se dá a presença da cidade: como uma força que age sobre tudo e todos sem que se possa defini-la de forma precisa (p. 525).

O som assume, assim como no curta de Martel, papel predominante em todas essas narrativas, como também analisa Christofoletti Barrenha (2016b) sobre Una semana solos:

Nesse espaço diegético, a composição da trilha sonora se ancora em um persistente silêncio que é acompanhado apenas por ruídos de passarinhos e grilos. Além desses ruídos típicos de uma tranquila paisagem campestre, estão presentes quaisquer pequenos sons produzidos pelos personagens dentro das casas: desde a colherzinha que bate na borda da xícara até os passos de cada um, em uma construção bastante detalhista que chama a atenção para a exclusividade daquele local tão cercado de silêncio no qual se pode ouvir qualquer pequeno movimento (p. 531).

Além da ideia de um ambiente extremamente controlado e silencioso, onde o mínimo barulho é visto de maneira amplificada, outra questão aparece de maneira latente nesses filmes: o medo do outro. As câmeras, a segurança privada, e as grades do condomínio intensificam o clima de suspense e deixam claro que a questão também passa pelo medo de contato com o outro, seja desconhecido ou não.

Ao mesmo tempo, é possível elencar nos filmes a criação de uma narrativa de perfeição defendida e buscada pelos personagens habitantes das urbanizações fechadas. Em Las viudas de los jueves, Mavi, uma corretora de imóveis, fala: “O lugar funciona como uma grande família; é parte do encanto”. Quando Ariel e seus amigos, em Cara de queso, vão fazer a denúncia da cena do início do filme que descrevemos, o responsável se recusa a abrir uma sindicância sob a prerrogativa de que “Essas coisas não acontecem aqui”.

Em todos os filmes, é possível notar a predominância de vegetação cercando as habitações e tomadas bastante abertas nas quais é possível perceber ruas desertas, área territorial grande (os funcionários se deslocam de carro), fontes de água, lagos, parques etc., em consonância com as descrições técnicas dos countries. Os filmes expressam ainda a inexistência do espaço público.

La calle misma está limitada a su función mínima, la de espacio de circulación y tránsito, pero pierde toda la riqueza de sentido y prácticas que pueden tener en la ciudad-centro. Prueba de este empobrecimiento es que las calles de las urbanizaciones cerradas, en la mayor parte de los casos, no están ni siquiera bordeadas por aceras (Thuillier, 2005, p. 11).

Para o autor, as normas de urbanismo e o regulamento dos bairros e condomínios fechados têm apenas uma finalidade: “la producción de un espacio segurizado, tranquilo, purificado, un espacio ordenado, previsible e inteligible; en definitiva, un espacio descifrable, legible” (Thuillier, 2005, p. 12). O intuito parece ser o de recuperar o “sentido” de cidade através de um “urbanismo y de una urbanidad de encierro”. O confinamento, a formação dos enclaves (Caldeira, 2011), é a essência desses lugares que querem deixar o caos da cidade, mas com isso deixam também a pluralidade, condição específica da política, como escreve Hannah Arendt (2014). A falta de reflexão e do reconhecimento de plurais inviabiliza o ponto principal da política na cidade, que passa por organizar e regular o convívio entre diferentes. Sem o convívio entre diferentes não há ação, sem ação não há política.

Em um dos ensaios do seu livro O chamado da cidade (Kuster e Pechman, 2014), o pesquisador Robert Pechman propõe um encontro hipotético entre Arendt e Rubem Fonseca, contista e romancista brasileiro, e faz com que os pensamentos da filósofa e do contista confluam ao fazerem da cidade a arena de negociações para a manutenção da vida. Fonseca discorre no âmbito das paixões e violências, da cidade como local das relações e afetos, e Arendt traça como a violência esvazia o sentido político da/na urbe. Ambos acreditam na projeção da pólis como única alternativa à violência que desestrutura o social.

Pechman, como Fonseca, crê na cidade como o local das relações humanas. Em Fonseca é a recusa de Babel, tanto a Babel bíblica de confusão das línguas, quanto o filme homônimo de Alejandro González Iñárritu produzido em 2006, que é a total incomunicabilidade. É a recusa da violência em Arendt. Ambos os caminhos só são possíveis pelo exercício do diálogo e pela pluralidade, pelo uso da cidade e não pela sua transmutação em cidadela. Figura 3

Figura 3 

Em semelhança, no caso dos countries, podemos nos indagar com Thuillier:

Si el lugar de afiliación, el espacio del colectivo, para una parte de la población no es ya el partido ni tampoco la localidad, ni incluso el barrio, con lo que esto implica de diversidad socioeconómica; si este lugar de afiliación se reduce a un pequeño enclave socialmente homogéneo, ¿qué es entonces lo que funda el contrato social a la escala de la ciudad y de la metrópolis? La ciudad y la ciudadanía dejan entonces de funcionar en la misma escala, y la primera ya no es más el espacio de la segunda, lo que podría ser una definición de la fragmentación urbana (Thuillier, 2005, p. 16).

Uma característica marcante desses empreendimentos, como já salientamos, é a privatização do espaço público, mas, cabe ressaltar, como escreve Roitman (2003), que os serviços e regulações públicas não “deixam de existir”, sendo substituídos por empresas e regulamentações privadas acionadas pelos proprietários, gerando novas formas de governabilidade.

Para Roitman, essas medidas hiper-reguladas dentro dos limites do bairro geram um paradoxo quando as regras recaem não apenas quanto à construção das habitações, mas também sobre a conduta dos residentes. O controle sobre o cumprimento das normas dá-se, assim, dentro do ambiente privado, “reforzado en algunos casos mediante la creación de tribunales de faltas, conformados por los mismos residentes, que sancionan las infracciones cometidas” (Roitman, 2003, p. 3) -questões que aparecem, por exemplo, em Cara de queso, Las viudas de los jueves e Una semana solos, com relação às infrações cometidas pelas crianças.

A tentativa de controle não impede, no entanto, a tomada de medidas disruptivas por parte de seus ocupantes, como é o caso, por exemplo, da onda de vandalismos que assolou countries de Buenos Aires, realizada por adolescentes residentes, questões expressas também nos filmes. A cidade caótica e “sem lei” parece, assim, ecoar dentro desses condomínios.

Considerações finais

La ciudad que huye, embora procure pensar os condomínios fechados, sequer chega a entrar em um, tonando-se um importante documento de análise para problematizar os muros concretos e simbólicos construídos a partir dessa nova dinâmica urbana. Os filmes aparecem como documentos para se pensar os indivíduos em sua relação (ou não-relação) com a cidade e, enquanto linguagem e expressão, pautam questões que podem estabelecer diálogos com a documentação técnica.

Enquanto linguagens sensíveis, expressam um incômodo em relação às novas formas de urbanização e formação dos laços sociais, bem como a constante reintegração de um sentimento de indiferença em relação aos “outros” -no caso, os habitantes de fora do condomínio.

As cenas nas quais a cidade aparece, seja pela tomada em vista panorâmica dos prédios, seja pelos ruídos que vez ou outra adentram o condomínio, ressaltam uma espécie de caos urbano com sons disformes, gritos, barulhos de buzina. Para Thuillier, criam-se relações de vizinhança muito mais personalizadas, como descrevem os moradores dos próprios condomínios “pero también más restrictivas, con un control comunitario reforzado, que evocan más bien las relaciones sociales de la aldea tradicional que las de metrópolis modernas” (Thuillier, 2005, p. 15). Embora a cidade fuja, ou tente-se fugir dela pela criação de um urbanismo de afinidades, seus ruídos ecoam dentro das urbanizações privadas.

Os countries buscam ser a solução individual para um problema que é urbano (e humano), a partir de uma fórmula nova de governabilidade que cria dificuldades para se pensar o coletivo. Mas, quando os problemas não podem ser resolvidos no âmbito dos condomínios, recorre-se à força do Estado.

Os filmes jogam com diversas figurações do medo a partir da construção de muros físicos e simbólicos e de sistemas de vigilância. Mas o medo não se restringe aos momentos dentro dos condomínios e parece permear todos os ambientes da cidade. Quando são exibidas, por exemplo, imagens da televisão, estas reforçam situações de violência e pânico, retratando perseguições policiais ou desastres.

Embora não deixem claro qual tipo de cidade se pretende construir, os filmes trabalham com uma imagem construída no negativo, na percepção do contrassenso. Expressam, a partir da construção dos personagens, o sentimento de insegurança e medo da cidade aberta e a perda do sentido do urbano. Figuram múltiplas dimensões de como o desastre permeia os espaços, mesmo e inclusive os aparentemente construídos para evitar qualquer tipo de conflito. O cinema ensina a duvidar do discurso da perfeição.

Referências:

Arendt, H. (2014). A condição humana. Rio de Janeiro, Brasil: Forense Universitária. [ Links ]

Ballent, A. (1998). Country life: los nuevos paraísos, su historia e sus profetas. Block 2, 88-101. [ Links ]

Bresciani, M. S. M. (1981). As sete portas da cidade. Espaço & Debates: Revista de Estudos Regionais e Urbanos. Núcleo de Estudos Regionais e Urbanos, 34, 10-15. [ Links ]

Bresciani, M. S. M. (1985). Metrópoles: as faces do monstro urbano (as cidades no século XIX). Revista Brasileira de História, 5(8-9), 35-68. [ Links ]

Caldeira, T. P. R. (2011). Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Brasil: Editora 34. [ Links ]

Campero, A. (2009). Nuevo cine argentino. De Rapado a Historias extraordinarias. Los Polvorines / Buenos Aires, Argentina: Universidad Nacional de General Sarmiento e Biblioteca Nacional. [ Links ]

Campo, M. B. (2010). História e cinema: o tempo como representação em Lucrecia Martel e Beto Brant (Tese de doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil. Disponível em http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/280451/1/Campo_MonicaBrincalepe_D.pdf Links ]

Chamorro, A. (2011). Argentina, cine y ciudad. El espacio urbano en la narrativa fílmica de los últimos años. Mar del Plata, Argentina: EUDEM. [ Links ]

Christofoletti Barrenha, N. (2014). A experiência do cinema de Lucrecia Martel: resíduos do tempo e sons à beira da piscina. São Paulo, Brasil: Alameda e Fapesp. [ Links ]

Christofoletti Barrenha, N. (2016a). A cidade e os medos - Historia del miedo (Benjamín Naishtat, 2014). Em A. F. Rodríguez e C. Elizondo (Comps.), Actas del V Congreso de la Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual (pp. 521-531). Buenos Aires, Argentina: Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual - AsAECA. Disponível em http://asaeca.org/actas-de-congresos-asaeca/?wpdmc=actas-2016Links ]

Christofoletti Barrenha, N. (2016b). ¿Cómo hacés para dormir con tanto ruido? A irrupção da cidade através dos sons em Una semana solos (Celina Murga, 2008). Em Y. Aguilera e M. C. Campos (Orgs.), Imagem, memória e resistência (pp. 528-539). São Paulo, Brasil: Discurso Editorial. [ Links ]

Christofoletti Barrenha, N. (2016c). Espaços em conflito: ensaios sobre a cidade no cinema argentino contemporâneo (Tese de Doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil. Disponível em http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/321087/1/Barrenha_NataliaChristofoletti_D.pdf Links ]

Ciccolella, P. (1999). Globalización y dualización en la Región Metropolitana de Buenos Aires. Grandes inversiones y reestructuración socio-territorial en los años noventa. EURE, Revista Latinoamericana de Estudios Urbanos y Regionales, 25(76). Disponível em https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=19607601 Links ]

Dipaola, E. (2013). Imágenes indiscernibles. Un abordaje de las relaciones entre la imagen y el espacio en el cine argentino contemporáneo. Bifurcaciones, 13. Disponível em http://www.bifurcaciones.cl/2013/07/imagenes-indiscernibles/ Links ]

Galt, R. (2012). Cinema do calote: tornando queer a crise econômica no Novo Cinema Argentino. Em A. Brandão, D. Juliano e R. Lira (Eds.), Políticas dos cinemas latino-americanos contemporâneos: múltiplos olhares sobre cinematografia latino-americana atual. Palhoça, Brasil: Unisul. [ Links ]

Gorelik, A. (2004). Miradas sobre Buenos Aires: historia cultural y crítica urbana. Buenos Aires, Argentina: Siglo XXI. [ Links ]

Gorelik, A. (2016). La grilla y el parque: espacio público y cultura urbana en Buenos Aires, 1887-1936. Buenos Aires, Argentina: Universidad Nacional de Quilmes. [ Links ]

Kuster, E., y Pechman, R. M. (2014). O chamado da cidade: ensaios sobre a urbanidade. Belo Horizonte, Brasil: Editora UFMG. [ Links ]

Pechman, R. M. (2014). Na selva das cidades: um blasé e três voyeurs - Simmel, Hopper, Hitchcock e Vettriano. Em R. M. Pechman (Org.), A pretexto de Simmel: cultura e subjetividade na metrópole contemporânea (pp. 87-142). Rio de Janeiro, Brasil: Letra Capital. [ Links ]

Roitman, S. (2003). Barrios cerrados y segregación social urbana. Scripta Nova VII, 146(118). Disponível em http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-146(118).htmLinks ]

Svampa, M. (2001). Los que ganaron. La vida en los countries y en los barrios privados. Buenos Aires, Argentina: Biblos. [ Links ]

Svampa, M. (2004). La brecha urbana. Buenos Aires, Argentina: Capital Intelectual. [ Links ]

Torres, H. (2001) Cambios socioterritoriales en Buenos Aires durante la década de 1990. EURE, Revista Latinoamericana de Estudios Urbanos y Regionales, 27(80). Disponível em https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0250-71612001008000003 Links ]

Thuillier, G. (2005). El impacto socio-espacial de las urbanizaciones cerradas: el caso de la Región Metropolitana de Buenos Aires. EURE, Revista Latinoamericana de Estudios Urbanos y Regionales, 31(93), 5-20. Disponível em: https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0250-71612005009300001 Links ]

Martel, L. (Diretora). (2006). La ciudad que huye (Película). Argentina: Estudio Fantasma [ Links ]

Murga, C. (Diretora). (2008). Una semana solos (Película). Argentina: Tresmilmundos Cine [ Links ]

Naishtat, B. (Diretor). (2014). Historia del miedo (Película). Argentina, França, Uruguai, Alemanha, Catar: Rei Cine, Ecce Films, Mutante Cine e Vitakuben [ Links ]

Piñeyro, M. (Diretor) (2009). Las viudas de los jueves (Película). Argentina, Espanha: Haddock Films, Castafiore Films e Tornasol Films [ Links ]

Valenta Rinner, L. (Diretor). Los decentes (Película). Argentina, Áustria, Coreia do Sul: Nabis Filmgroup [ Links ]

Winograd, A. (Diretor). (2006). Cara de queso - mi primer ghetto (Película). Argentina, Espanha: Haddock Films, Tresplanos Cine e Tornasol Films [ Links ]

Contribuição do autor: A concepção do trabalho científico; coleta, interpretação e análise de dados; a redação e revisão do manuscrito foi realizada por Suelen Caldas de Sousa Simião.

1 O projeto foi realizado durante os anos de 2006 e 2007 e tinha como objetivo reunir uma série de documentações como vídeos, imagens, debates, análises e reflexões para pensar uma prática urbanística renovada a partir da relação entre cidade e direitos humanos. Mais informações sobre o projeto, assim como acesso ao material, podem ser encontrados em http://www.derechoalaciudad.org/index.htm.

2A questão do investimento estatal e da iniciativa privada aparece sob diversos aspectos e de maneira cambiante ao longo da história da urbanização argentina, como salienta Adrián Gorelik em La grilla y el parque (2016; publicado originalmente em 1998), livro no qual o autor trata, de maneira detalhada, da formação das quadrículas, e pensa a metrópole enquanto artefato material, cultural e político; e trabalhos mais recentes, como Miradas sobre Buenos Aires, analisando a cidade portenha a partir dos anos 1990 (2004).

3O som assume marcante singularidade na narrativa de Martel, sendo elemento importante de seu próprio processo criativo. “Lucrecia Martel só sabe onde colocar a câmera depois de criar a ideia sonora da cena” (Christofoletti Barrenha, 2014, p. 20), processo avaliado também pela própria diretora ao enfatizar o som (ruído, diálogos e mesmo o silêncio) como maior responsável pela característica sensitiva de seus filmes.

4A Região Metropolitana de Buenos Aires é composta pela Cidade Autônoma de Buenos Aires; a Grande Buenos Aires, formada pelos partidos de Alte. Brown, Avellaneda, Berazategui, E. Echeverría, Ezeiza, Florencio Varela, Gral. San Martín, Hurlingham, Ituzaingó, José C. Paz, La Matanza, Lanús, Lomas de Zamora, Malvinas Argentinas, Merlo, Moreno, Morón, Presidente Perón, Quilmes, San Fernando, San Isidro, San Miguel, Tigre, Tres de Febrero y Vicente López; e a chamada “3ª corona” integrada pelos partidos de Berisso, Brandsen, Campana, Canuelas, Ensenada, Escobar, Exaltación de la Cruz, Gral. Las Heras, Gral. Rodríguez, La Plata, Luján, Marcos Paz, Pilar, San Vicente y Zárate (Ciccolella, 1999).

5La plata dulce foi um período de implementação de uma série de medidas —como congelamento dos salários dos trabalhadores, retenção das exportações e incentivo das importações, realização de empréstimos de organismos internacionais— realizadas pelo Ministro da Economia, José Alfredo Martínez de Hoz, durante o mandato militar de Jorge Videla (1976-1981). O termo foi utilizado devido ao alto poder de compra de dólares das classes mais altas propiciado pelas medidas.

6Os pôsteres dos filmes podem ser consultados no banco de dados do site Cinenacional.com.

7Pintura de Sandro Botticelli (1483).

Recebido: 24 de Maio de 2019; Aceito: 26 de Julho de 2019

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons