Introdução
Com origem no novo espaço urbano do final do século XIX, o cinema marcou de modo expressivo a recém inaugurada vida metropolitana, se afirmando como a expressão mais completa dos atributos da modernidade (Charney e Schwartz, 2004). Com uma influência mútua, cinema e cidade têm se revisitado em uma conexão que pode ser vista em importantes escolas e movimentos cinematográficos. As sinfonias urbanas, o expressionismo alemão, o neorrealismo italiano e os filmes noir dos anos 1940 reúnem produções que refletiram sobre as metrópoles de seus tempos e também influenciaram as cidades que estavam por vir.
Nessa secular história, os centros urbanos, as dinâmicas e as tensões que as cidades abrigam foram abordados por emblemáticas produções latino-americanas. Do cinema moderno à filmografia contemporânea, produções latinas têm se voltado às problemáticas que marcam o território do assim chamado “Terceiro Mundo”. Encontramos nesse conjunto que se volta às cidades latinas produções sensíveis que fazem do espaço urbano algo mais do que cenário ou local onde transcorre a ação. Como elemento dramático central, os espaços da cidade ativam o debate sobre as relações de poder e contradições sociais, desnudando situações e conflitos em obras como Los olvidados (Luis Buñuel, 1950, México), Rio 40 graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955, Brasil), Memorias del subdesarrollo (Tomás Gutiérrez Alea, 1968, Cuba), La vendedora de rosas (Víctor Gaviria, 1998, Colômbia), Amores perros (Alejandro González Iñárritu, 2000, México) e O invasor (Beto Brant, 2002, Brasil).
A conexão entre cinema e metrópole se expressa também em filmes que se voltam à própria elaboração dos espaços urbanos. As dinâmicas e tensões implicadas nos processos da arquitetura e do urbanismo marcam obras como Viramundo (Geraldo Sarno, 1965, Brasil), En el hoyo (Juan Carlos Rulfo, 2006, México), Medianeras (Gustavo Taretto, 2011, Argentina), A cidade é uma só? (Adirley Queirós, 2011, Brasil) e Obra (Gregório Graziosi, 2015, Brasil). O olhar dedicado à fabricação dos espaços coloca em cena as dinâmicas políticas envolvidas na construção da cidade, como as que fundamentam a produção de territórios cindidos, um urbanismo que privilegia o interesse das empresas e dos detentores de capital e também a conflituosa relação canteiro-desenho.1
Entendendo a cidade como o lugar de construção subjetiva e de relações sociais, devemos lembrar que “la ciudad está hecha de espacio y tempo, es decir de memoria, material e inmaterial, visible y latente” (Sztulwark, 2009, p. 11). Assim, os espaços fílmicos são potentes para descortinar o passado, trazendo à tona memórias e dinâmicas menos explícitas, fazendo ver e ouvir memórias difíceis e processos que a narrativa oficial busca ocultar. Esse trabalho é realizado com sensibilidade no documentário argentino AU3 - Autopista Central (Alejandro Hartmann, 2010). Acompanhando o processo de retirada dos moradores ocupantes de imóveis da Villa Urquiza, AU3 coloca em cena a tensão social e urbana que atravessa diferentes períodos históricos e, contra a tentativa de apagar um passado indesejado, o espaço fílmico é potente para dar visibilidade à inominável violência da ditadura.
Após breve reflexão sobre a importante conexão entre cinema, cidade e memória, este artigo se voltará ao contexto argentino para, então, analisar as formas como o documentário AU3 coloca em cena as tensões que marcaram Buenos Aires, discutindo os conflitos que se arrastam da ditadura dos anos 1970 e 1980 ao presente da cidade.
Grafias urbanas: cinema e cidade
Inserido no campo das artes visuais, o cinema pode ser definido como uma prática arquitetônica, como um agente na construção das visões das cidades. Para além de oferecer apenas vistas da cidade, o cinema cria seus próprios lugares e cartografias: “o cinema se junta à prática da arquitetura como uma forma artística da rua, um agente na construção das imagens da cidade. A paisagem da rua se torna uma ‘construção’ fílmica assim como o é na arquitetura” (Bruno, 2006, p. 23).
O olhar detido sobre os espaços da cidade nos recorda que as construções arquitetadas são instrumentos da expressão da vida social; materializam, dão forma aos ideais e sentidos que marcam seus tempos (Xavier, 2007). Diferente de uma superfície estéril, os espaços, do filme e da cidade, carregam sentidos de muitas vozes e tempos. Como definiu o geógrafo Milton Santos, as formas -isto é, paisagens, objetos, etc.- se tornam espaços pelo conteúdo social, pelos significados e pelo sistema de valores atribuídos pelas mulheres e homens. Com sentidos em constante disputa, o espaço está em transformação permanente: “o espaço humano é a síntese, sempre provisória e sempre renovada, das contradições e dialéticas sociais” (Santos, 2004, pp. 107-108). Essa disputa e transformação contínua dos espaços urbanos teve contornos específicos nas metrópoles que viveram as ditaduras militares do século passado.
As ditaduras instaladas na América Latina se inserem no alerta de Todorov de que “los regímenes totalitarios del siglo XX han revelado la existencia de un peligro antes insospechado: la supresión de la memoria” (Todorov, 2000, p. 11). Essa supressão é realizada através de diferentes recursos: “las huellas de lo que ha existido son o bien suprimidas, o bien maquilladas y transformadas; las mentiras y las invenciones ocupan el lugar de la realidad; se prohíbe la búsqueda y difusión de la verdad” (Todorov, 2000, p. 12). Em países como Brasil, Argentina e Chile, as ditaduras realizaram operações similares para se apropriar da memória e não deixar traços das “recordações incômodas”, isto é, de sua tirania, do agravamento da pobreza e dos conflitos sociais. A manipulação da imprensa, destruição de documentos, eliminação de espaços públicos de convívio e de sítios onde a tortura foi praticada são alguns dos exemplos de como as ditaduras suprimiram, maquiaram ou distorceram os fatos. A operação mais nefasta usada pelas ditaduras para apagar os vestígios da sua violência foi, sem dúvida, o desaparecimento. Passado mais de meio século da redemocratização no continente, familiares seguem buscando os corpos daqueles que foram assassinados pelos militares.
A tentativa de borrar as violências cometidas e imprimir um sentido de progresso foi posta à cabo pelos militares na própria malha física da cidade: reelaborando vias, erguendo monumentos e nomeando espaços em homenagem à ação militar. Mas a cidade é o local das experiências vivas e, em suas fissuras, revela uma memória que inadvertidamente resiste ao esforço do apagamento e da ocultação.2
Diferente do rigor científico e da cristalização da história oficial, a cidade pode ser pensada como lugar de memória. Alargando o conceito do historiador Pierre Nora,3 podemos ler as memórias da cidade em seus espaços, uma memória que não é completa ou fechada, mas em permanente batalha:
A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos (...) está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento (...). A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente (Nora, 1993, p. 9).
Local de atualização e ressignificação contínua, a cidade pode ser pensada como uma superfície “(…) donde se tramita colectivamente el pasado, el campo de batalla por el sentido. Es entonces la ciudad un enorme palimpsesto donde marcamos nuestra historia, nuestra vida” (Sztulwark, 2009, p. 14). O espaço da cidade expressa, de modo explícito ou menos visível, diferentes camadas do passado e das dinâmicas sociais que se cruzam: “(...) o espaço pode ser interpretado (...) como uma superposição de grafias, de natureza social, feita de superfícies complexas, já que não se consegue apagar completamente as grafias anteriores” (Viana Hissa e Ferreira Melo, 2008, p. 297). Nesse palimpsesto-urbano “(...) la ciudad es el sitio que registra por antonomasia el conflicto entre lo existente y lo nuevo, entre la preservación y la transformación: es el sitio donde la historia está ocurriendo, donde más evidente se vuelve el paso del tiempo” (Gorelik, 2009, p. 17).
Composta por um conjunto de forças de ordens diversas, a memória não é uma representação acabada e objetiva do passado, mas um
conjunto de fuerzas, heterogéneas, indeterminadas, que afectan a un espacio, un objeto y lo transforman en un LUGAR (…). La memoria entonces, que deviene inmanente, está hecha de marcas y afectaciones varias (deliberadas o no, contradictorias o no, programadas o no), marcas y afectaciones que hacen ciudad. Desde esta perspectiva la memoria es la ciudad (Sztulwark, 2009, p. 13).
Como veremos em AU3, a forma cinemática de “ver” e percorrer os espaços se apresenta como uma ferramenta potente para penetrar nas diferentes camadas do urbano, nas fissuras desse terreno em permanente escrita.
Ditadura e cidade: Plan de Autopistas
No documentário AU3, vemos a cicatriz de uma violenta intervenção urbana na cidade de Buenos Aires: o Plano de Autopistas, lançado em 1977 e jamais concluído. Imposto pela mais sangrenta ditadura argentina (1976-1983), autointitulada Proceso de Reorganización Nacional, o Plano de Autopistas se converteu em um marco do regime militar na cidade.
Integrando o Código de Planejamento Urbano de 1977, o Plano previa uma obra mais que gigantesca, de intenso impacto físico, social e econômico, com sete autopistas que atravessariam o tecido urbano já consolidado (Canese, 2013). Para a construção das vias expressas que atravessariam a cidade de Saavedra até Pompeya, o Plano implicou a expropriação de mais de 800 propriedades (Fernandez e Zucco, 2013).
Esse que foi o último governo militar argentino se caracterizou pela implementação de políticas neoliberais, com projetos altamente elitistas de produção e de uso dos espaços (Fernandez e Zucco, 2013, p. 2) que converteram a cidade de Buenos Aires em um espaço ideal para a especulação. O Plano de Autopistas se insere nesse intento de favorecer proprietários de automóveis e habitantes de regiões com maior concentração de renda; coerente com a política neoliberal, o Plano tem também o intento de beneficiar a iniciativa privada, tanto através da concessão da obra quanto por meio do pedágio que seria cobrado pela empresa responsável pela construção.
Como expressão material e brutal da planificação urbana funcionalista, autoritária e tecnocrata (Domínguez Roca, 2005, p. 5), o Plano buscou imprimir no tecido da cidade a marca do regime. A ideia de rasgar a cidade com uma série de autopistas e a consequente desapropriação de bairros consolidados pode ser pensada como a corporificação, no tecido da cidade, da brutalidade do regime militar. De modo coerente, as políticas higienistas e de controle social impostas pelas intervenções urbanas se articulavam com uma busca mais profunda e geral do governo ditatorial: a busca da ordem. O Plano de Autopistas revela que “el intento de ‘reorganizar la nación’ mediante una combinación de autoritarismo político, liberalismo económico y exclusión social dejó profundas huellas en todos los ámbitos” (Domínguez Roca, 2005, p. 2).
A controvérsia em torno do projeto -que, de imediato, revela sua preocupação estética e higienista- é intensa e diversa. Com custo milionário, o Plano significava o forte incentivo ao uso do automóvel individual, supunha a demolição de milhares de vivendas e a violenta ruptura da trama urbana e dos bairros, além da contaminação do ar, visual, sonora (Canese, 2013, p. 4). Ignorando planos e estudos que recomendavam enfaticamente o investimento na melhoria do transporte público, o Plano de Autopistas se fundamentava na noção de circulação eficiente e de espaços funcionais, postulados do urbanismo moderno que estavam em crise nos países de “capitalismo avançado”. Todavia, na Argentina não havia outro paradigma, até porque o debate estava obscurecido pela ditadura (Domínguez Roca, 2005).
A implementação do polêmico Plano só seria possível em uma conjuntura política ditatorial, ou seja, em um contexto em que não há diálogo com outros agentes envolvidos no processo de construção da cidade. Mesmo com a imposição do projeto, após a construção de duas autopistas (a AU1 - Autopista 25 de Mayo e a AU6 - Autopista Perito Moreno), o Plano foi interrompido, não pelas polêmicas urbanísticas, mas por uma preocupação financeira. Finalizado esse primeiro traçado, fica claro o fracasso do sistema de “auto-sustentação”: “as cifras do primeiro ano de funcionamento indicavam um déficit importante de veículos diários, o que significaria um elevado gasto para o município, uma vez que na licitação da concessão se garantia à empresa privada um mínimo de arrecadação” (Vega, 2013, p. 162). Em consequência, no ano de 1981 a prefeitura de Buenos Aires abandonou a construção das demais autopistas projetadas.
Quando se suspende o Plano, muitas casas já haviam sido desapropriadas, e outras tantas estavam em processo de demolição. As desapropriações e o abandono do Plano fomentaram um fenômeno singular: a chegada da população de baixa renda em ruas de alta concentração financeira. Esse é o caso da Villa Urquiza, por onde passaria a Autopista Central:
El proceso de ocupación de la traza de la ex-AU3 comienza en la década del ‘80, como consecuencia del aumento de la pobreza y las desigualdades sociales en un contexto caracterizado por la inestabilidad económica. Esta situación de precariedad remite a las políticas urbanas implementadas durante la última dictadura militar (...) (Fernandez e Zucco, 2013, p. 2).
Alinhado com os ideais do regime militar, o Plano de Autopistas deveria atender aos interesses de uma classe média emergente, promovendo a segregação. Todavia, com a não conclusão do traçado iniciado, ocorre o inverso. Em um contexto de crise econômica e de aumento dos valores do aluguel, as casas desapropriadas na vizinhança de Villa Urquiza se apresentaram como atraente possibilidade de moradia e de acesso à “cidade global” para cidadãos de baixa renda que passam, então, a dividir o bairro com a população abastada. Como define um dos entrevistados do documentário, ao atravessar as ruas pode-se ter a impressão de que se passa por dois países distintos: de um lado, o poder econômico das mansões; de outro, a deterioração dos espaços e a pobreza absoluta. O bairro passa, assim, a exibir em suas ruas o contraste social que marca Buenos Aires. Passadas três décadas da interrupção do Plano, o documentário AU3 - Autopista Central acompanha os conflitos entre ocupantes, vizinhos e poder público que ainda marcam o bairro nos anos 2010.
AU3 - Autopista Central
AU3 - Autopista Central acompanha os desdobramentos da cicatriz na malha urbana deixada pelo Plano de Autopistas, colocando em cena as novas formas de violência que o projeto e sua interrupção lançaram sobre a população. A tensão presente no território de Villa Urquiza é exibida já nos primeiros fotogramas do filme, que enquadram o bairro de modo a apresentar uma paisagem dividida, partida entre “dois mundos”. Através das paisagens, o documentário introduz visualmente a fratura do bairro cindido entre luxo e precariedade, como com a imagem de uma varanda bem-acabada que faz esquina com terreno baldio, ou com o quarteirão composto por casas de luxo em frente de habitações parcialmente demolidas. Os travellings e pans presentes em diversos momentos são recursos potentes para fazer ver o contraste: o deslocamento da câmera pelas ruas do bairro revela a paisagem extremamente desigual.Imagen 1
Além da construção visual, o choque social concentrado no bairro está presente nas falas dos personagens envolvidos na tensão territorial. De modo interessante, AU3 aciona todos os envolvidos: vizinhos ocupantes, vizinhos proprietários, moradores que foram expropriados durante a ditadura, membros do poder público e também funcionários das empresas de especulação e de demolição. As muitas vozes e posições ajudam a compreender o conflito da região e também colocam em cena questões mais amplas, como o direito à cidade, e sua negação para a parcela da população desprovida de recurso.
No preâmbulo do filme, vemos Valeria desocupar o apartamento onde vive, na Rua Holmberg. Ex-proprietária nessa mesma vizinhança, Valeria passou a viver na ocupação quando o pai foi à falência. Ela nos explica que, como é mãe de três filhos, lhe foi concedida uma indenização mais alta do que a dos vizinhos que receberam entre 7 e 15 mil pesos. Como explica, nenhuma dessas indenizações permite a aquisição de imóvel: “o que se pode fazer com 15 mil? Pão para hoje, fome para amanhã”. Os depoimentos de todos que ocuparam os espaços abandonados reforçam o sentido de urgência, da necessidade de moradia que, situada em uma região central, representa também o acesso a serviços e bens que lhes eram negados. A oportunidade de acesso que a região lhes oferece é exposta por Ramón: “isso é um paraíso comparando com o local de onde vim; vivíamos em casas feitas de placas de metal e papelão. E, aqui, ônibus na porta, praça do outro lado da rua... imagine não ter nada e vir para cá, ter uma casa de tijolo. Para mim foi um paraíso”.
O choque de classes e a fratura social também são trazidos ao filme através da montagem, que contrasta as entrevistas entre os diferentes atores do bairro. A articulação das falas dos vizinhos proprietários com as dos vizinhos ocupantes produz um choque intenso entre uma população rica que teme a vizinhança pobre e os diversos personagens que viram nas ocupações a melhor -e, às vezes, a única- possibilidade habitacional. Com muita naturalidade, a proprietária Graciela declara que “os de lá” (das ocupações) não servem para nada, e que “se desaparecem não vou dizer 'pobre gente'. Direi ‘menos mal, acabou’”. Em meio ao conflito, o poder público aparece nas assembleias e em ações letárgicas4 que não parecem ter força para solucionar o problema habitacional. Por outro lado, vemos a agilidade na retirada dos moradores ocupantes e nas demolições que se multiplicam na tela.
Acompanhando o interesse da especulação e dos proprietários, o então Ministro de Desenvolvimento Urbano, Daniel Chalín, expressa em sua fala sua visão segregacionista de que o bairro não é o espaço para os ocupantes. Como figura pública e agente do Estado, sua fala revela também uma política do governo. Segundo ele, aos ocupantes não caberia receber a propriedade dos locais onde moram, nem uma indenização equivalente ao preço desses imóveis. A parcela que lhes cabe equivale ao valor de uma vivenda social, não de uma casa de luxo com alto valor imobiliário. E complementa: como uma bela cirurgia, o processo de reurbanização do bairro deve retirar a população de baixa renda. As políticas de segregação resumidas nessas falas são sentidas de diversas formas pela população ocupante, como declara outro morador no momento em que é retirado do bairro: “Macri vai fazer com que tiremos um passaporte para entrar em Buenos Aires”.
O olhar fílmico que se volta às origens do Plano, com as primeiras retiradas de moradores e a continuação do processo no presente, revela uma dinâmica cíclica de expropriações que parece não ter fim. As expropriações realizadas pelo governo militar para implementar o Plano viário voltam a ocorrer na democracia, como parte do projeto de reurbanização e especulação do bairro. Todavia, tendo em vista o baixo valor recebido pelas famílias retiradas e que tantas outras famílias foram expulsas sem receber qualquer quantia, novas ocupações podem ser esperadas, como acontece com Valeria que, após a demolição do prédio onde habitava, volta a ocupar outro imóvel. O sentido de permanente expulsão e de não solução do problema é apresentado visualmente pelas fotografias e imagens de demolições do passado que ecoam nas imagens de demolição do presente fílmico. Imagen 2
Sobre a paisagem fraturada entre casas de alto padrão e terreno baldios, se projeta uma animação que representa o traçado do Plano de Autopistas. Poeticamente, a animação nos lembra que, mesmo interrompido, o Plano de Autopistas e seu ideário se imprimem no espaço e conformam, em meio à batalha de sentidos, a Villa Urquiza do presente, que concentra em algumas quadras a intensa contradição social de Buenos Aires. Imagen 3
A segregação se perpetua entre as diferentes etapas políticas do país: assim como na ditadura, a cidade democrática tampouco oferece pleno direito à cidade e à habitação para todos os cidadãos. A proprietária Beatriz sintetiza em sua entrevista a continuidade do processo ao longo das décadas: “me chamava a atenção que não era um projeto de um partido político ou de uma gestão, era um projeto que permanecia com o tempo e que cada gestão o tomava como seu. Isso é muito grave, porque quer dizer que as ideologias, os programas de governo, sucumbem diante do grande negócio”. Diferente da morosidade dos acordos com os ocupantes, a retirada dos mesmos ocorre muito rapidamente, assim como a melhoria da infraestrutura na região, abrindo espaço para o projeto imobiliário que se insinua. “Quando o poder tem um objetivo, pode se desviar momentaneamente desse objetivo, mas jamais renunciar, e eles vêm com esse objetivo desde antes da ditadura, jamais desistiram dele. Eles sempre são ‘expulsores’” sintetiza Alberto, que viu na ocupação a única possibilidade de não morar na rua.
Além do choque denunciado pelas imagens e pela montagem, outro elemento tem um destaque poético no documentário: as ruínas que se multiplicam nos espaços da vizinhança recebem grande atenção da câmera e, por vezes, produzem potentes imagens. Trabalhados com delicadeza, os espaços parcialmente destruídos recebem atenção ímpar da câmera que se detém em objetos, vaga por destroços e observa a dança dos guindastes e marretas na retomada, no presente, das demolições. Mais que expressar a ação do tempo, as ruínas deixadas pelo Plano inconcluso dão materialidade e reafirmam a leitura benjaminiana sobre a destruição promovida sob a égide do progresso (Benjamin, 2012). Mas suas imagens vão além. Carregando um senso da vida parada, interrompida pela destruição, as imagens de ruínas, ou destroços das construções, sugerem uma associação com a intervenção militar, colocando em tela as diversas tentativas de destruição e apagamento operadas pela ditadura.
Como alegorias, as ruínas deixadas pelo Plano inconcluso remetem à violência que não se restringiu à intervenção urbana. Como uma cicatriz, as ruínas dão materialidade à brutal política imposta no âmbito urbano e também em outras esferas da vida política, cultural, afetiva e social. Imagens como a de um sofá abandonado em um terreno baldio, ou de uma curiosa escada que sai de uma parede em meio a um descampado, fazem lembrar as vidas e projetos interrompidos, o amplo dilaceramento promovido pelo regime militar. Sem a conclusão do Plano de Autopistas, a permanência do projeto como destroço é memória viva, que exibe na superfície da cidade a marca da violência, do autoritarismo e da arbitrariedade do regime. Longe do apagamento das brutalidades cometidas e da supressão da memória, os destroços reforçam a lembrança do passado sombrio que, junto com problemáticas urbanas e sociais que se anunciam há algumas décadas, aguardam por uma resolução. Imagen 4
Assim, como imagens dilacerantes da ditadura que arrasou a Argentina, as ruínas podem ser pensadas, também, como alegoria dos desaparecimentos promovidos pelo Estado. O desaparecimento foi uma tétrica estratégia dos regimes autoritários e a alarmante cifra de 30 mil desaparecidos na Argentina revela o esforço para aniquilar a população sem deixar rastros.
Considerações finais
Apoiado na kinesthesis, a forma tátil do audiovisual de ver os espaços transforma as imagens em arquitetura, fazendo delas uma geografia de espaços vivos e da vida (Bruno, 2011). Trabalhada com sensibilidade em AU3, o espaço cindido e a cicatriz da autopista revelam as múltiplas dinâmicas e processos que tiveram lugar na Villa Urquiza. A sensibilidade fílmica dá visualidade às muitas grafias que se sobrepõem no espaço, do processo de intervenção militar às tensões do presente democrático. Reconhecendo sua implicação na própria configuração urbana, o documentário se posiciona e destaca as contradições dos discursos e ações dos agentes públicos, apontando também para a desesperança para chegar a uma solução definitiva.
O prolongamento da cicatriz e do conflito ao longo das décadas e dos diferentes regimes políticos aponta para uma problemática dos Estados modernos ocidentais. A despeito do rótulo, as democracias modernas não são o “governo do povo”, ou mesmo governos voltados para o povo. No lugar de atender às necessidades e aos desejos da maioria, os regimes democráticos modernos governam para uma minoria, se apropriando da coisa pública em uma forte aliança entre Estado e capital (Rancière, 2014). Conforme elaborado pela teoria política de Jacques Rancière, vivemos em estados oligárquicos republicanos que
têm se dado a tarefa de gestão das exigências do capital e do ilimitado poder da riqueza e suas consequências sobre as populações. Estas exigências são por eles tratadas como uma realidade única e incontornável e são assunto de especialistas: são estes, os detentores da riqueza e da ciência -sobretudo econômica- que afirmam ter a capacidade de escolher os bons caminhos, e não a escolha popular (Rancière citado em Pallamin, 2010, p. 15).
Ainda que exerça forte poder político e financeiro, os interesses do estado oligárquico se chocam com as múltiplas forças que circulam e agem no espaço urbano. Se por um lado a segregação é altamente favorável ao processo de reprodução do capital, a fratura social não é imposta livremente. Movimentos de moradia, coletivos pró meio ambiente e diversos segmentos da população compõem o conjunto de forças que resistem ao modelo de cidade cindida, com as quais o capital deve negociar, repensar estratégias e até ceder. Os embates diários pelos sentidos e usos do urbano reforçam a cidade como campo de batalha, como geografia em permanente atualização e também como local privilegiado para luta por direitos.