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Dixit

versión impresa ISSN 1688-3497versión On-line ISSN 0797-3691

Dixit  no.31 Montevideo dic. 2019  Epub 01-Dic-2019

https://doi.org/10.22235/d.vi31.1887 

Editorial

Introdução ao dossiê: A cidade no cinema argentino contemporâneo

Natalia Christofoletti Barrenha


Nos últimos 20 anos, a relação entre cinema e cidade tem sido objeto de sucessivas conferências ao redor do mundo, de um grande número de livros e coletâneas e de especiais em revistas científicas de várias áreas. Essa relação tem alcances enormes e enfoques que convocam a quase qualquer disciplina humanística, tendo geralmente caráter interdisciplinar e possibilitando inúmeros cruzamentos metodológicos, especialmente com a Arquitetura, a Cartografia, a Geografia e a SociologiaImagen 1

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Grande parte dessa literatura acadêmica toma como embasamento teórico o reconhecimento, a partir da década de 1970, do espaço como categoria organizadora, e da espacialização como termo de análise e descrição da sociedade e culturas moderna e pós-moderna (Mello, 2011). Esse fenômeno, intitulado spatial turn (guinada ou virada espacial), tem em Henri Lefebvre e Michel Foucault seus principais referentes, já que suas análises do espaço contribuíram bastante para o entendimento da organização e da coerência do mundo moderno, influenciando consideravelmente o interesse cada vez maior no espaço. Aos trabalhos dos filósofos franceses unem-se os estudos de David Harvey, impulsionando uma reavaliação crítica do espaço e da espacialidade no pensamento social (Arias e Warf, 2009 citado em Andrews, 2014).

Costuma-se apontar a consolidação e o avigoramento do debate cinema/cidade a partir da conversa entre Karen Lury e Doreen Massey, em uma edição especial da revista Screen intitulada “Space/Place/City and Film” (1999), na qual as pesquisadoras identificaram o foco no espaço (com uma inclinação desproporcional para o espaço urbano) e no filme como um subcampo de investigação. Várias obras já trataram de recuperar e sistematizar uma bibliografia que se dedica a essa discussão, entre as quais gostaria de destacar a introdução de Julia Hallam e Les Roberts ao livro Locating the Moving Image (2014), e Film and Urban Space: Critical Possibilities (2014), de Geraldine Pratt e Rose Marie San Juan. Um dos poucos materiais em português é o relatório de pós-doutorado de Cecília Mello: Movimento e espaços urbanos no cinema mundial contemporâneo (2011). Em espanhol, estão os trabalhos de Irene Depetris Chauvin1

Jean-Louis Comolli (2008) aponta que filmar uma cidade recoloca a questão do sentido: reprodução do mesmo ou produção de outro? Sua interrogação me transporta à famosa frase de Marco Polo à Kublai Khan em As cidades invisíveis: “(...) jamais se deve confundir uma cidade com o discurso que a descreve. Contudo, existe uma ligação entre eles” (Calvino, 2003, p. 27). Essa ligação é constantemente realçada ao se tratar da cidade cinematográfica -ademais, em via de mão dupla: por um lado, quando os universos ficcionais se ancoram em lugares reais; por outro, quando tais universos afetam a maneira como o mundo é percebido.

Conforme afirma Maria Helena Braga e Vaz da Costa (2006), um filme não somente retrata as cidades e os lugares, mas assume papel central na construção das imaginações geográficas dos indivíduos, ajudando tanto a “inventar” esses espaços quanto influenciando o entendimento dos mesmos. Adrián Gorelik (2004) reforça essa perspectiva, ao sustentar que a cidade e suas representações se produzem mutuamente: não há cidade sem sua representação, e as representações não apenas decodificam o texto urbano em conhecimento social como incidem no próprio sentido de transformação social da cidade. Para Marcos Adrián Pérez Llahí (2013), a cidade já se constitui como um discurso prévio ao filme: a figuração da cidade no filme supõe, pois, uma relação intertextual entre esse discurso anterior e aquele que se erige, então, em forma audiovisual. Para Ângela Prysthon (2006), há muitos modos de representar o urbano: modos estes que vão gerando padrões estéticos, os quais vão imaginando, desenhando e construindo outras cidades, outras formas de traduzi-las.

O presente dossiê “A cidade no cinema argentino contemporâneo” busca pensar como se concebe e se percebe a cidade no cinema argentino da última década. No denominado nuevo cine argentino (NCA),2 surgido a meados nos anos 1990, o espaço urbano consolidou-se como um lugar privilegiado para se pensar as relações sociais, políticas e culturais da Argentina desse momento. No cinema argentino mais recente, após alguns anos de intensas modificações no panorama cinematográfico (com a consolidação das carreiras de diversos diretores e produtoras do nuevo cine e o incessante aparecimento de novos cineastas, estéticas e modos de produção), o espaço urbano ainda seria privilegiado?

Esta proposta nasceu do interesse em dialogar sobre a questão da cidade no cinema argentino contemporâneo, desdobrando um tema ao qual venho me dedicando desde minha tese de doutorado, finalizada em 2016 e intitulada Espaços em conflito. Ensaios sobre a cidade no cinema argentino contemporâneo.3

Antes de apresentar os artigos que compõem o dossiê, buscarei resgatar e sistematizar algumas abordagens sobre como se desenvolveu a relação com a cidade nos filmes ficcionais do NCA. Este itinerário será relevante no conjunto de textos que aqui se apresenta, estimulando, contextualizando e balizando as discussões trazidas pelos autores e autoras participantes.

A cidade no nuevo cine argentino: breve revisão

A cidade aparece como um proeminente elemento da narrativa em diversas produções ficcionais consagradas do NCA como Rapado (Martín Rejtman, 1995), Pizza, birra, faso (Adrián Caetano e Bruno Stagnaro, 1997), Fuga de cérebros (Fernando Musa, 1998), Mala época (Mariano de Rosa, Nicolás Saad, Rodrigo Moreno e Salvador Roselli, 1998), 76 89 03 (Cristian Bernard e Flavio Nardini, 1999), Silvia Prieto (Martín Rejtman, 1999), Bolivia (Adrián Caetano, 2001), La fe del volcán (Ana Poliak, 2001), Sábado (Juan Villegas, 2001), Solo por hoy (Ariel Rotter, 2001), Caja negra (Luis Ortega, 2001), Tan de repente (Diego Lerman, 2002), Todo juntos (Federico León, 2002) e Vagón fumador (Verónica Chen, 2002), além dos inúmeros filmes de Raúl Perrone, especialmente a trilogia Labios de churrasco (1994), Graciadió (1997) e 5 pal’peso (1998).

Apesar de existir uma negação sistemática dos realizadores do nuevo cine em pertencer a um movimento, não é difícil encontrar elementos comuns entre suas obras. Não houve uma busca programática por parte dos novos cineastas, e suas poéticas são variadas -mas, estabeleceu-se um novo regime criativo (expressão de Gonzalo Aguilar, 2006), no qual todos estavam atravessados por preocupações como a austeridade da mise en scène e com um realismo estético. Para Malena Verardi (2009), a busca por colocar em cena uma nova representação da cidade e um novo modo de vinculação com o mundo urbano atravessava grande parte dos filmes. Como reforça Alberto Chamorro:

(...) apesar da grande variedade de temas e estilos existentes nas produções fílmicas da época, os diretores e os filmes do nuevo cine argentino sim tiveram elementos em comum. Entre eles, o fato de ter apresentado de forma consistente, através de sua narrativa, a relação entre os espaços urbanos -tanto reais ou físicos como intangíveis- que faz parte do imaginário cidadão (Chamorro, 2011, p. 13).

Os filmes que inauguraram e consolidaram essa nova geração se empenharam em cartografar as consequências da implantação das políticas neoliberais no país nos anos 1990, seguindo uma necessidade de representar os novos atores sociais que irromperam na sociedade argentina ou alcançaram novas formas de visibilidade. Tais transformações se davam especialmente no espaço urbano, atraindo os cineastas a delinear novos mapas sociais e geográficos através dos filmes (Veliz, 2010).

Em seu estudo sobre o NCA, Jens Andermann (2015) dedica um capítulo à cidade como locação principal para a mise en scène da crise social. Após uma breve discussão que aponta o estouro da crise de dezembro de 2001 como uma intervenção cinemático-urbana, o autor considera quatro itinerários pela cidade contemporânea como lugar da crise: o espaço nômade das margens sociais, o interior doméstico ameaçado da classe média, os espaços noturnos e codificados da diversidade sexual e a cidade desfamiliarizada, alternativa e habitada por imigrantes e exilados.

No primeiro tópico, o teórico salienta como as margens e os marginalizados provocaram uma fissura no urbano com o qual o cinema argentino estava acostumado: o que antes ficava fora de campo torna-se o cerne dos filmes. Andermann se ocupa especialmente de Pizza, birra, faso para abordar essa questão. Considerado o filme inaugural do NCA, o longa de Caetano e Stagnaro foi analisado amiúde com respeito à relação que estabelece com a cidade -relação cujas características iriam ecoar em muitas outras produções. Uma dessas características destacada por Andermann é a desiconização da cidade: ao invés de pontos reconhecíveis, a ação transcorre em esquinas anônimas, entre postos de comida barata e descampados suburbanos às margens do rio (2015, p. 76).

Verardi (2009) faz um dos mais interessantes exames do filme que, segundo ela, permite dar conta das transformações dos modos de representar a cidade e da relação entre os espaços urbanos e suburbanos no NCA. Analisando a estruturação de espaços, Verardi encontra, como princípio construtivo, a constante delimitação de um dentro e um fora, configurando uma cidade dual de espaços exclusivos e marginais.

A partir da perspectiva espacial, o relato apresenta a cidade como demarcada por fronteiras que separam as zonas de possível ação para os jovens protagonistas de aquelas cujo acesso não lhes é permitido. A narração manifesta a polarização de uma cidade que, cada vez mais, vincula os espaços com a capacidade de consumo de seus habitantes. Embora os protagonistas circulem livremente pelas ruas da cidade, toda vez que ingressam em uma “zona proibida” a imagem se encarrega de fazer visível certo incômodo, certa defasagem, evidenciando o não pertencimento dos jovens. Ao contrário, quando circulam pelos espaços marginais que habitam cotidianamente, produz-se um encaixe com a paisagem. A mise en scène dessa polarização questiona a naturalização de um olhar que demonstra a indiferença quando a miséria -dos espaços e dos personagens- se circunscreve a determinado âmbito, e incômodo se essa miserabilidade atravessa as fronteiras de seu nicho para se introduzir nesse outro espaço (Verardi, 2009).

O segundo tópico desenvolvido por Andermann trata do interior doméstico ameaçado da classe média: o espaço interior como uma esfera de pertencimento pela qual se deve tomar partido e defender de um exterior hostil (o da debacle financeira) e em torno da qual a comunidade pode se reunir e recuperar sua força. Invoca-se e, ao mesmo tempo, nega-se a crise da cidade e da nação, que se “resolve” através da retirada a espaços interiores que albergam um núcleo de valores (Andermann, 2015, p. 87). Segundo o autor, os filmes de Juan José Campanella4El hijo de la novia (2001) e Luna de Avellaneda (2004), com o restaurante familiar e o clube de bairro, respectivamente, seriam representativos dessa reconstrução da comunidade, assim como Esperando al mesías (2000), El abrazo partido (2003) e Derecho de familia (2005), de Daniel Burman.

O terceiro tópico discute a cidade como um espaço erotizado, conectado de forma imediata e intensa com sua condição de mercado enquanto cenário para o espetáculo da mercadoria. Trata-se de uma cidade noturna que corresponde tanto ao lado escuro do neoliberalismo como a um plano onírico povoado de fantasias que abordam a experiência urbana da diversidade sexual. Nos filmes que se encaixam nessa tendência -o autor destaca Un año sin amor (Anahí Berneri, 2004), Ronda nocturna (Edgardo Cozarinsky, 2005) e o já citado Vagón fumador-, a atitude frente à crise costuma ser mais ambígua e complexa. Aparecem outras temporalidades, problemáticas e modos de experimentar e codificar o espaço urbano que, ao ser mais múltiplo e fluído, propõe outras questões para além das mais frequentes como centro/margem, ricos/pobres, família/desagregação.

Em seu trabalho sobre figuras fantasmagóricas no cinema latino-americano do século XXI e as marcas da crise no imaginário da cidade contemporânea, Carolina Rueda considera que, na produção cinematográfica pós-2000 do continente, o mapa físico da cidade adquire importância visceral e se converte em uma ferramenta fundamental mediante a qual se exibem a marginalização de comunidades, as grandes diferenças sociais e a desordem do espaço urbano em geral, entre outros efeitos da economia global/neoliberal (2012, p. 17). A cidade se descobre como um espaço simbólico que contém tanto sinais do passado como dos efeitos das mais recentes políticas econômicas -sinais que a autora vai interpretar através do conceito de fantasmagoria: aquilo que se encontra oculto no inconsciente coletivo e histórico, e que o cinema vai colocar em cena. Ronda nocturna é um dos filmes privilegiados por Rueda para abordar as capacidades de resistência e de desfrute do outro rechaçado em meio de uma vida incerta, mas não totalmente desafortunada, em megas urbes -entrecruzando o primeiro e o terceiro tópicos de Andermann.

Para Rueda, o filme de Cozarinsky expõe tanto a vida “sem-teto” e sua precariedade como propõe um giro que busca ressignificar a rua (enquanto referente do abjeto) ao apresentá-la nos termos de um espaço propício para a autonomia pessoal, a liberdade e o gozo. Sem ocultar os problemas da marginalidade urbana, o filme retrata o potencial do espaço físico da cidade e do sujeito que vive na rua e da rua.

As ideias de Andermann e de Rueda continuam dialogando ao tratarem de Bolivia -analisado, pelo primeiro, sob o tópico da cidade desfamiliarizada, alternativa e habitada por imigrantes e exilados; e, pela segunda, a partir dos problemas de (i)migração, especialmente do campo à cidade. Sendo que o NCA encontra na cidade uma maneira de localizar a crise, como afirma Andermann, para este autor a migração, a diáspora e o exílio capturam esse traço fragmentário e desarticulado da cidade cinematográfica melhor que qualquer outra forma de experiência.

Os filmes aos quais se dedica Andermann nesse tópico, intitulado por ele como “Cidades em trânsito”, proporcionam, segundo o teórico, um ponto de vista diverso sobre uma cidade e um país em crise. No longa de Caetano, a atenção recai sobre o lugar no qual se dá a ação (um café em Buenos Aires), utilizando tal espaço para pensar como as pessoas o ocupam e como isso as coloca, automaticamente, em um papel social: o lugar como localização e como função, dependendo de onde cada um se encontre na cadeia de produção capitalista. Como comenta Aguilar (2006), a morte do protagonista, o boliviano Freddy, se dá no umbral entre o bar e a rua, como se este fosse um lugar que ele não deveria ultrapassar. Rueda se concentra na história de ressentimento e ódio do outro e na persistência no presente da discriminação racial e da xenofobia de acordo com o conceito de “civilização e barbárie”. A autora também reconhece como se conforma uma série de territórios dentro do reduzido espaço do café, os quais se encontram divididos por linhas imaginárias de certa forma análogas aos extensos territórios que, dentro do mapa do país, narram uma história de hierarquias e de subalternização -forma de organização que também se repete na cidade.

Em seu estudo sobre a renovação do espaço no nuevo cine, Pérez Llahí (2007) prefere se debruçar sobre produções que se situam nas antípodas de um realismo reinante, como Picado fino (Esteban Sapir, 1996), sobre a qual comenta que “a opacidade que a vocação experimental dá ao filme não termina nunca de apagar seu compromisso oblíquo com o lugar real que o filme não chega a atualizar completamente, pois está aferrado aos enquadramentos fragmentários e aos planos detalhes” (2007, p. 76), característica que estende a El nadador inmóvil (Fernán Rudnik, 2000). O autor ainda cita Hoteles (Aldo Paparella, 2004) e Monobloc (Luis Ortega, 2005), nos quais há um corte definitivo com a identificação do lugar real -independente disso, o espaço continua tendo uma função marcante nos relatos.

Há ainda os filmes de ficção científica que trazem cidades inventadas ou reinventadas: Moebius (Gustavo Mosquera, 1996), La sonámbula (Fernando Spiner, 1998) e La antena (Esteban Sapir, 2007). Para falar do cinema de ficção científica argentino, Andrea Cuarterolo (2007) parte de uma referência inevitável dentro da cinematografia do país: Invasión, de Hugo Santiago (1969), e a importância do espaço:

(...) os caminhos abertos pelo filme de Santiago permitirão, por um lado, o surgimento de uma versão vernácula do gênero com identidade própria e, por outro, ajudarão a outorgar verossimilhança a uma temática, até então, ligada ao imaginário hollywoodiano. A primeira dessas linhas se relaciona com a construção do espaço. Santiago situa a ação do filme em Aquilea, uma cidade imaginária, mas que remete, inconfundivelmente, a Buenos Aires. (...) O próprio Santiago reconhece que “Aquilea é Buenos Aires mas é Aquilea e é a Argentina mas é Aquilea”. Desta maneira, identifica o referente para depois desnaturalizá-lo. Nesta operação, toma diversos aspectos da cidade real (as ruas centrais, a paisagem portuária, o típico café portenho, a Bombonera) e os reorganiza com uma nova lógica, criando um espaço, ao mesmo tempo, estranho e familiar, ameaçador e cotidiano, imaginário e real. Com mais ou menos variações, é esta forma de construir o espaço que vai marcar a maioria dos filmes argentinos de ficção científica das décadas seguintes (Cuarterolo, 2007, p. 83-84).

Assim, as produções de ficção científica do nuevo cine também mantêm a atenção voltada para o espaço urbano: seja representando cidades fictícias que seguem convenções do gênero; seja recuperando índices da cidade contemporânea para projetar uma cidade construída; ou quando a concepção visual pareceria não diferir da cidade atual, mas por efeito da narração a transforma em uma cidade imaginária (Brignardello, Pérez Rial e Turquet, 2008).

A cidade no pós-nuevo cine argentino: aproximações

Como afirma Aguilar em um breve epílogo para a edição de Otros mundos publicada em 2010, “muitos dos princípios que regiam o cinema a princípios dos anos 2000 se modificaram radicalmente, e o que antes eram casos isolados hoje configuram uma tendência cujos caminhos são muito difíceis de prever” (p. 238). Há mais de uma década já se discute que o nuevo cine transitou o tempo de uma geração inteira, lapso demasiado extenso para a dinâmica própria de um movimento cinematográfico.

Sergio Wolf, em um debate promovido em 2007 e denominado “Qual é a verdadeira situação do cinema argentino?”, propõe uma periodização do NCA a partir da estreia, naquele ano, de dois filmes que ele considera definidores, devido à capacidade de refletir sobre suas próprias problemáticas: Estrellas (Federico León e Marcos Martínez) e UPA - Una película argentina (Camila Toker, Santiago Giralt e Tamae Garateguy). “Justamente, a autoconsciência de dois filmes recentes como Estrellas e UPA me faz pensar em um modelo que já é um circuito fechado, encerrado. (...) demonstram o esgotamento de um período e propõem (...) a necessidade de passar a outra fase” (Wolf, 2007).

Historias extraordinarias (Mariano Llinás, 2008) é outro filme considerado divisor de águas entre o NCA e o que virá depois. Agustín Campero escolheu a produção de Llinás para fechar seu livro Nuevo cine argentino. De Rapado a Historias extraordinarias (2009), Jaime Pena (2009) localizou o título como arremate da primeira década de NCA ou inaugurador de um NCA 2.0 que então se iniciava, e Aguilar o colocou como principal representante do que chamou de cinema anômalo.5

O presente dossiê se dedica a explorar filmes produzidos nesse contexto pós-NCA, ou seja, a partir de fins da década de 2000. No texto de abertura, “La ciudad y los sentidos: las sensaciones como imágenes del espacio y de las afecciones en el cine argentino contemporáneo”, Esteban Dipaola se debruça sobre alguns longas-metragens recentes que permitem uma reflexão sobre as sensações do deslocamento na cidade, com destaque para Lulú (Luis Ortega, 2014) e Vapor (Mariano Goldgrob, 2016). Nestes filmes, enfatiza-se a presença dos cheiros, dos corpos e seus gestos, do calor e da umidade como sensações que expandem os sentidos da composição relacional do espaço urbano. Esses signos, segundo o autor, possibilitam um olhar sobre a cidade que o cinema argentino capta a partir do que ele denomina imagem-espaço (2013).

Em “Urbano cindido: tensões da metrópole em AU3 - Autopista Central”, Marília-Marie Goulart se ocupa do documentário AU3 - Autopista Central (Alejandro Hartmann, 2010), que acompanha moradores de um bairro nobre de Buenos Aires e coloca em cena as tensões sociais e urbanas que atravessam diferentes períodos históricos. Contra a tentativa de apagar um passado indesejado, nesta obra o espaço fílmico é potente para dar visibilidade a diversos tipos de violência, e anima a discussão sobre expansão urbana gentrificada (onde a malha rodoviária de veículos particulares se sobrepõe aos interesses de ampla parte da sociedade), levando em conta um processo que, indiferente a governos ditatoriais ou ditos democráticos, privilegia um projeto de exclusão social e concentração especulativa do capital.

Hugo Hortiguera, em “El camino de Sísifo y la nostalgia reflexiva en el cine de Juan José Campanella”, propõe analisar a forma espacial (conceito tomado de Joseph Frank) da obra desse diretor e sua relação com o uso ideológico da nostalgia, focalizando especialmente Luna de Avellaneda (2004) e Metegol (2013), considerados pelo próprio Campanella versões de uma mesma história e produzidos em conjunturas políticas bastante diferentes. O autor parte do mito de Sísifo para examinar como certos elementos dessa história (a repetição infinita como castigo inútil e sem esperança) são utilizados pelo cineasta com um valor didático para exibir e preservar certos princípios que guiam a existência de sua comunidade -em sintonia com o que Andermann (2015) classificou como “interior doméstico ameaçado da classe média”.

Tanto em “El camino de Sísifo y la nostalgia reflexiva…” como em escritos anteriores, Hortiguera (2012, 2013, 2014) nota que a situação de deterioração dos laços sociais é, talvez, um dos elementos que mais significativa e insistentemente vem se projetando no discurso cinematográfico argentino da última década. De um lado, o autor aponta como os filmes de Pablo Trapero ou Marcelo Piñeyro coincidem em falar sobre as fragmentações do espaço urbano, ao mesmo tempo em que aludem a âmbitos que deveriam ser refeitos ou reinventados, para que se possa reconstruir um lugar de encontro que hoje é de profunda disputa. Para esses diretores, os espaços urbanos têm perdido seu status como lugares de comunicação cultural e de interação social espontânea, se transformando em territórios partidos, de crises contínuas e cheios de fendas.

De outro, Hortiguera percebe que um dos aspectos mais chamativos da cinematografia argentina nesse período radica na fuga da cidade: observa como seus personagens abandonam a esfera urbana (Buenos Aires, especialmente) para se instalar de costas a ela, buscando um lugar bucólico ou quimérico. Mas os conflitos também alcançam essa zona íntima: uma divisão parece ter possuído os espaços mais recônditos, e neles se instalou uma fissura que os converteu em lugares instáveis e inseguros.

Esse “racha” do espaço público (que se alastra aos espaços privados) está posto de forma contundente nos filmes estudados pelos artigos seguintes: “La ciudad que huye: formação dos countries argentinos e os ruídos da cidade no cinema”, de Suelen Caldas de Sousa Simião, e “Por causa de uma cerca: território e narrativa cisados pelo medo em Historia del miedo e O som ao redor”, de Fernanda Sales Rocha Santos.

No primeiro, Caldas de Sousa Simião busca refletir sobre as mudanças urbanas e suas expressões no cinema argentino entrecruzando um conjunto de filmes -La ciudad que huye (Lucrecia Martel, 2006), Cara de queso - mi primer ghetto (Ariel Winograd, 2006), Una semana solos (Celina Murga, 2008), Las viudas de los jueves (Marcelo Piñeyro, 2009), Historia del miedo (Benjamín Naishtat, 2014) e Los decentes (Lukas Valenta Rinner, 2016)- à luz do processo histórico de formação e multiplicação dos condomínios fechados (também chamados de countries) na Argentina a partir dos anos 1990, sob o contexto de políticas neoliberais. Segundo a autora, essas produções nos auxiliam a pensar e problematizar as relações entre sensibilidades, sociabilidades e espaço urbano contemporâneo nessa espécie de “cidade que foge” que são os countries.

Caldas de Sousa Simião destaca como todos os filmes jogam com diversas figurações do medo e, em maior ou menor intensidade, flertam com ingredientes do horror. Sales Rocha Santos vai aprofundar essa questão através da análise comparativa entre Historia del miedo e o longa-metragem brasileiro O som ao redor (Kleber Mendonça Filho, 2013), pensando como a temática da cisão territorial se relaciona com a questão do ressentimento social e se reflete, de forma análoga, na estrutura narrativa e estética dos dois filmes. Ambos abordam a questão da (in)segurança no espaço urbano e da contínua ameaça do corpo estranho, historicamente excluído. A atmosfera sensória de medo que permeia a experiência dos habitantes dos centros urbanos do Brasil e da Argentina é articulada a partir de uma combinação de elementos de um realismo social e sensório contemporâneo com procedimentos do cinema de gênero, particularmente do horror.

Atentar-se à forma como o cinema se relaciona com a cidade pode iluminar aspectos inesperados dos filmes e produzir novos sentidos para outras análises, a partir de variadas perspectivas. Neste texto, tentei recuperar e sistematizar algumas ideias e estudos a respeito do espaço urbano em filmes ficcionais do NCA. O dossiê proposto busca dar continuidade e ampliar esse debate, mobilizando, em torno do tema da cidade, a cinematografia argentina recente, com o objetivo de elaborar uma forma singular de panorama no qual transitam diversas questões, identificando recorrências e particularidades nos modos de filmar, escutar, experimentar e conceber a cidade.

Natalia Christofoletti Barrenha Universidade Estadual de Campinas, Brasil. nataliacbarrenha@gmail.com

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1No prelo: Geografías afectivas. Prácticas espaciales y formas de estar juntos en el cine contemporáneo de Argentina, Chile y Brasil.

2Retomada, após um período de crise, da produção cinematográfica argentina, devido a uma série de fatores como a criação de uma lei de fomento ao setor, a reativação da cota de tela, o surgimento de inúmeras escolas de cinema e o acesso a equipamentos devido à convertibilidade cambiária. Uma nova geração entrou em cena, trazendo novas sensibilidades estéticas e novos princípios ideológicos.

3Parte considerável desta introdução ao dossiê foi desenvolvida para a tese, recentemente publicada pela editora Intermeios (Christofoletti Barrenha, 2019).

4Apesar de ser considerado parte do NCA, especialmente no exterior, Campanella trabalha com modos de produção e poéticas bastante diferentes aos do nuevo cine, sendo mais ligado aos grandes conglomerados de comunicação. Fabián Bielinsky e Marcelo Piñeyro são outros realizadores que se destacam entre esses “diretores industriais”. Tais esquemas mais “industriais” também foram atualizados a partir de meados dos anos 1990. Podemos notar renovações estéticas e temáticas que se correspondem com as propostas do NCA, sendo a presença da cidade uma delas —filmes como Nueve reinas (Bielinsky, 2000) e Taxi, un encuentro (Gabriela David, 2000) são exemplos notáveis da importância do espaço urbano nas tramas.

5Com este termo, Aguilar se refere a uma série de filmes, surgidos entre 2006 e 2010, que não se vinculam ao Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales - INCAA para conseguir orçamento e que buscam instaurar outros circuitos de exibição. Partindo do subtítulo do livro de Campero, Aguilar acredita que o NCA traçou o caminho de um filme independente a outro. Porém, enquanto Rapado foi uma obra independente em um contexto hostil; descobrimento e aprendizagem ante a escassez de opções, Historias extraordinarias tem a independência como uma escolha; estratégia e fortalecimento de um modo de pensar o cinema (2010, p. 240).

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