Introdução
Há décadas, a política criminal brasileira sobre drogas tem feito parte do centro dos debates nos campos do direito, da segurança pública, da saúde, da educação e da elaboração de políticas públicas. Atualmente, fundamentada em uma legislação extremamente problemática e punitivista -por diversos motivos, dentre os quais o aumento do encarceramento em massa de jovens, negros, moradores de periferias e presos com quantidades insignificantes de drogas- a política de drogas no Brasil levanta importantes questões sobre seu exercício e manutenção.
Por conseguinte, neste trabalho, pretende-se abordar a política criminal de drogas no Brasil, a partir de alguns pontos fundamentais para sua compreensão. Primeiro apresenta-se a Lei 11.343, que entrou em vigência no ano de 2006 e se mantém até os dias atuais. Dada sua importância, são apresentadas as peculiaridades e alterações que ocorreram desde sua implementação, em comparação com o texto legal que a precedeu. Em vista da complexidade dos resultados percebidos a partir da nova lei, são apresentados os impactos causados desde sua implementação.
Isso porque a Lei 11.343/06 foi a principal responsável pelo aumento do encarceramento no Brasil desde sua entrada em vigor, bem como abriu margem para a atuação discricionária de diversos atores da administração da justiça penal. Neste sentido, neste trabalho a legislação será apresentada a partir de seus principais impactos, sendo estes o aumento do encarceramento, a partir da análise de dados provenientes do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) (2018, 2020 y 2022), e a abertura de margem para a atuação discricionária de dois dos principais atores da administração da justiça penal brasileira: policiais e juízes. Para essa última, serão avaliados dados secundários de estudos empíricos correspondentes ao referido campo (Boiteux e Wiecko, 2009; Campos, 2015; Lemgruber e Fernandes, 2015; Jesus, 2016; Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPERJ), 2018; Semer, 2019; Valois, 2020).
Deste modo, em um primeiro momento será apresentada a legislação, para que posteriormente sejam introduzidos o conceito de discricionariedade policial autorizada e a evidenciação do aumento do número de encarcerados, bem como o papel que cumprem os juízes na incriminação de pessoas por tráfico de drogas. Por fim, a política criminal de drogas brasileira será demonstrada em perspectiva internacional, com o intuito de apontar problemas inerentes ao seu funcionamento.
A Lei 11.343/06
Aprovada após cerca de quatro anos de debates legislativos, a Lei 11.343 entrou em vigor em agosto de 2006 e se tornou o primeiro dispositivo legal em matéria de drogas aprovado em período democrático no Brasil. Ao substituir a antiga Lei 6.368/76, que se manteve em vigência por mais de três décadas, o novo regimento legal instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), o qual prescreve medidas para prevenção do uso indevido (art. 18 e 19), atenção e reinserção social de usuários e dependentes (art. 20 a 26), normas para a repressão à produção que não tiver autorização e ao tráfico ilícito de drogas (art. 31 e 32), além de também definir crimes (28 e 33 a 39) e outras providências.1
Por reconhecer expressamente em seu texto legal uma série de princípios de respeito aos indivíduos, integração e medidas de redução de danos, a legislação pode ser classificada dentro do espectro proibicionista como de um proibicionismo moderado (Boiteux, 2010). Nesse sentido, a lei dispõe em seu art. 4º, inciso I, o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, especialmente quanto à sua autonomia e à sua liberdade, bem como no inciso II o respeito à diversidade e às especificidades populacionais existentes.
Formada por 75 artigos, em comparação com a legislação que a antecedeu, a Lei 11.343/06 encaminhou uma série de mudanças significativas. O antigo termo “substância entorpecente” foi substituído pela expressão “drogas”, as quais são devidamente identificadas por intermédio da portaria 344/1998 da ANVISA, o que por definição torna a Lei de Drogas uma norma penal em branco heterogênea, na medida em que é caracterizada necessariamente por uma disposição normativa diversa (Dotti, 2018).
Não obstante, para além de meras mudanças de ordem semântica e formal, a nova legislação apresentou importantes alterações na sua estrutura punitiva. Nesse sentido, como um dos principais destaques, tem-se a despenalização do consumo (art. 28), o que significa dizer que a partir da Lei 11.343/06 fica vedado que o usuário de drogas consideradas ilícitas receba como sanção pena privativa de liberdade.
Diferentemente da legislação anterior, que previa para a conduta de porte para consumo pessoal uma pena de detenção de seis meses a dois anos, o art. 28 da lei vigente determina que “quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar” não mais será submetido à prisão, mas, sim, a penas restritivas de direitos, tais como advertência sobre os efeitos das drogas, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. A lei atual assegura a aplicação dessas medidas, mesmo em casos de reincidência (art. 28, § 4º).
É importante enfatizar que a Lei 11.343/06 não descriminalizou o porte e consumo para fins de utilização pessoal. As condutas de consumir e portar continuam sendo tipificadas pela legislação. O que mudou, em comparação com o dispositivo legal anterior, foi apenas a resposta penal reservada ao usuário, a qual não pode mais ser a do encarceramento, fato que torna a legislação de drogas a única no ordenamento jurídico brasileiro com essa peculiaridade. Dessa forma, a lei prevê a despenalização e não a descriminalização. Esses conceitos possuem significados distintos, ainda que por vezes se confundam.
Outra importante alteração se deu no sentido de equiparar o cultivo doméstico (art. 28, §1º) à posse para uso pessoal. Na mesma lógica, foi definida uma mudança significativa em relação à conduta do consumo compartilhado (art. 33, §3º), que deixou de ser equiparado ao tráfico, recebendo assim uma redução no apenamento, que a partir da nova legislação passou a ter sanção de seis meses a um ano de detenção, o que, de acordo com o art. 44, do Código Penal Brasileiro2, permite a aplicação de penas restritivas de direitos, no mesmo sentido daquelas destinadas para o consumo.
Em um primeiro momento, ao se analisar essas alterações, que se impõem para reduzir o peso das sanções atribuídas às condutas acima apontadas (em relação aos usuários), pode parecer que a atual Lei de Drogas avançou no sentido de romper com a lógica proibicionista de controle. Não obstante, o texto legal mantém a criminalização de atos como o porte e o cultivo para consumo pessoal, não inovando de forma significativa nesse sentido. Isso porque o apenamento destinado às condutas na lei antiga, desde a metade da década de 1990, já era contemplado pelas previsões da Lei 9.099/95. Ou seja, era enquadrado na definição de infração de menor potencial ofensivo, com uma resposta penal distinta à aplicação de pena privativa de liberdade para o usuário, tendo em vista que já eram asseguradas penas e medidas alternativas ao cárcere como sanção (Karam, 2007).
Campos (2019), que analisou o histórico legislativo da construção da Lei 11.343/06 a partir dos discursos proferidos pelos parlamentares, demonstra que a legislação aprovada foi fruto de inúmeras negociações e acordos,3 com a finalidade de homologar um texto que estaria focado em dois principais pontos: o primeiro que previa a descarcerização do usuário e o segundo que estabelecia o recrudescimento penal para o indivíduo enquadrado como traficante de drogas. E é justamente sobre o segundo ponto que recai a principal alteração apresentada pela nova lei: o aumento da pena mínima para o delito de tráfico, previsto no art. 33,4 de três para cinco anos, podendo atingir o patamar máximo de até 15 anos de reclusão. Por conseguinte, de acordo com Campos (2018), o texto debatido no legislativo tinha como foco a descarcerização do usuário, a qual, contudo, estava condicionada ao recrudescimento penal para o tráfico de drogas mediante a exasperação da pena mínima, como de fato ocorreu.5
Essa alteração, que revela a permanência do caráter repressivo na nova Lei de Drogas, diferentemente das outras modificações direcionadas aos usuários e as quais não impactaram substancialmente o campo prático, acarretou sérias transformações no sistema de justiça penal brasileiro. Isso porque o tráfico é o tipo penal de maior incidência no sistema de justiça criminal e, uma vez que a imposição de uma sanção para o delito que já se inicia com uma pena mínima de cinco anos de reclusão e que ainda sofre na dosimetria da pena o peso da análise das circunstâncias contidas no art. 59 do Código Penal e da consideração de possíveis majorantes, em regra, impossibilita como resposta uma punição diversa ao encarceramento. A repercussão dessa realidade, como se demonstra devidamente adiante, possui uma relação direta com o crescimento exponencial do número de pessoas presas no Brasil nas últimas duas décadas.
Dando seguimento, outra alteração importante, corresponde à previsão na lei da figura do tráfico privilegiado (33, §4º). Com a intenção de diferenciar e individualizar as penas para casos menos gravosos de tráfico, tratando de maneira distinta pequenos e grandes traficantes, a nova legislação autorizou uma redução do apenamento a partir do reconhecimento da minorante. Na prática, esse dispositivo legal prevê uma redução de um sexto a dois terços da pena aplicada para indivíduos condenados por tráfico de drogas, desde que primários, com bons antecedentes, não dedicados a atividades criminosas e não pertencentes a organizações criminosas.
Nessa lógica, é possível que, após a redução aplicada, o réu receba uma sanção definitiva de um ano e oito meses de detenção, a qual pode ser convertida em penas restritivas de direitos, por não ultrapassar o patamar dos quatro anos, nos termos da legislação vigente. Não obstante, conforme se vê mais a frente, em grande parte dos casos, mesmo quando os réus preenchem os requisitos previstos na lei, os juízes deixam de aplicar a privilegiadora, ou a aplicam em menor proporção, a partir de critérios subjetivos e extralegais. Assim, se o objetivo do legislador, ainda no contexto de formulação da lei, era marcar a diferenciação entre usuários, pequenos e grandes traficantes (Campos, 2018), destinando tratamentos distintos para cada caso, a ausência do estabelecimento de critérios objetivos no texto legal, com a finalidade de distinguir as condutas, dificultou o êxito para alcançar esse propósito.
Desse modo, ainda que as alterações trazidas pela Lei 11.343/06 possam, em um primeiro momento, ter se apresentado como progressistas em relação à atenuação do controle exercido sobre os usuários, a legislação não especificou de maneira objetiva a distinção entre porte para uso pessoal e tráfico. Como consequência, essa omissão no texto legal sujeita o consumidor a um campo de inseguranças jurídicas, e deixa margem à discricionariedade policial na hora da abordagem.
A Lei 11.343/06 e a discricionariedade policial autorizada
No campo prático, tendo em vista que o critério quantidade não foi adotado na lei, a distinção entre usuários e traficantes é realizada pelos policiais, desde a primeira abordagem e, consequentemente, determinam a tipicidade do fato. Assim, a subjetividade dos critérios legais abre espaço para a reificação das preconcepções destes sobre quem seriam os traficantes e os usuários (Grillo, Policarpo e Veríssimo, 2011), de modo que a seleção da conduta a ser enquadrada é realizada de maneira discricionária.
Ademais, pelo fato de o abrandamento da pena para os usuários não ter sido bem recebido nas instituições policiais, em razão do viés autoritário das polícias brasileiras (Kant de Lima, 2019), verificou-se o fenômeno do aumento das tipificações de casos como tráfico e a consequente diminuição de enquadramentos como consumo (Campos, 2015). Essa realidade, que se perpetua desde a fase policial até os julgamentos de primeiro e segundo graus -visto que o enquadramento apontando no inquérito não costuma ser contestado nos tribunais-, demonstra o tamanho do poder que ficou reservado às policias a partir da entrada em vigência da lei.
De acordo com Alexander (2017), a detenção pela polícia marca o ponto de entrada no campo no qual se desenvolvem os processos criminalizantes da lógica de guerra contra às drogas, de modo que é a partir do exercício da discricionariedade policial autorizada que se opera o poder de escolher contra quem mirar, bem como onde mirar as abordagens de indivíduos.
No caso da Lei de Drogas brasileira, como acima apontado, a lacuna legal deixada pela não definição de critérios quantitativos de diferenciação entre usuários e traficantes evidencia essa realidade. Isso porque a grande maioria das prisões correspondentes aos crimes relacionados ao comércio de entorpecentes ocorre a partir da ação do policiamento ostensivo6 -que, por definição, é discricionário- e resulta na exasperação de uma massa carcerária formada sobretudo por jovens do sexo masculino, primários, majoritariamente pretos ou pardos, de baixa escolaridade e moradores de regiões periféricas (Sinhoretto, 2014).
Assim, o papel desempenhado pelas forças policiais é fundamental para alimentar a lógica de encarceramento de pessoas pretas e pardas no Brasil, ao passo que configura uma prática de exclusão racial cotidiana que se consuma por meio da realização de ações “que escolhem sempre mais negros do que brancos e os humilham a partir da apresentação pública do poder e da hierarquia” (Schwarcz, 2019, p. 35). Isso ocorre em razão de não ser possível compreender o Estado contemporâneo brasileiro sem que sejam incorporados os conceitos de raça e de racismo e sem que seja devidamente superado o fatídico mito de uma suposta democracia racial no país.
O racismo no Brasil é estrutural e, como processo histórico e político, “cria as condições sociais para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma sistemática” (Almeida, 2020, p. 51). Por ser parte da estrutura social, o racismo é materializado e consumado por meio das ações dos atores das mais diversas instituições estatais, as quais têm entranhadas em seu âmago o preconceito racial como um de seus componentes orgânicos e, no caso das instituições de controle criminal, a partir da atuação dos mais distintos atores da administração da justiça penal, essa realidade fica ainda mais evidenciada.
Nesse sentido, como afirma Alexander (2017), o viés racial na atuação policial é substancial para compreender como a maioria esmagadora das pessoas captadas pelo sistema de justiça criminal em relação a delitos envolvendo drogas são pretas ou pardas -não obstante as taxas de consumo entre pessoas brancas estejam nos mesmos patamares-, ainda que as instituições de controle neguem categoricamente que se utilizem de perfilamento racial para realizar as abordagens.
Para Semer, os relatos dos policiais não permitem saber exatamente em que circunstâncias eles decidem abordar os suspeitos, de modo que a repressão pode ocorrer “por fazer ou por não fazer, por fugir ou por não fugir, por se misturar entre os populares ou por se distinguir deles” (Semer, 2019, p. 241). Assim, são justificações que se fundamentam em afirmações como “o indivíduo se encontrava com atitude suspeita” ou “transitava em local de constante comércio de drogas”, bem como em inquéritos que são posteriormente encaminhados ao judiciário e que, via de regra, não são contestados pelos magistrados, na medida em que servem para embasar os elementos utilizados em suas próprias decisões (Hypolito, 2013).
Do mesmo modo, a polícia é peça-chave fundamental nos processos de criminalização em matéria de drogas por configurarem, regularmente, as únicas testemunhas de acusação. Não obstante as defesas dos réus frequentemente contestem a veracidade do que é afirmado nos autos, visto eventuais flagrantes de contrariedade nos depoimentos, os juízos competentes raras vezes acatam essa argumentação; dentre outros fundamentos, sob a alegação de que a palavra dos policiais contém fé pública (Rigon e Jesus, 2019).
Nessa lógica, a polícia de fato marca o ponto de entrada no campo dos processos de criminalização por tráfico de entorpecentes, como afirma Alexander (2017). Mas, para além disso, a discricionariedade policial autorizada transborda e influi também no decorrer e no fim desses processos, operando como uma engrenagem fundamental no funcionamento do sistema punitivo criminal, visto que se estende de maneira quase que inabalável durante todo o decorrer das ações penais em matéria de drogas nos tribunais brasileiros.
Ao falar do contexto de aprisionamento nos Estados Unidos, Michelle Alexander afirma que “nada contribuiu mais para o encarceramento em massa sistemático das pessoas não brancas nos Estados Unidos do que a Guerra às Drogas” (Alexander, 2017, p. 110), e que, apesar de a maior parte das prisões relacionadas às drogas correspondam a infrações sem violência e de menor importância, essa guerra inaugurou uma era de punitivismo sem precedentes no país.
Ainda que a autora discorra acerca do contexto estadunidense, os mesmos fundamentos podem ser adotados para se pensar a realidade brasileira, na medida em que nenhuma outra legislação cumpriu um papel tão fundamental para a aceleração do processo de crescimento exponencial de pessoas presas no Brasil como a atual Lei 11.343/06. É o que se vê a seguir.
A Lei 11.343/06 e o aumento do encarceramento no Brasil
Nas últimas décadas, o crescimento das taxas de encarceramento no Brasil tem preocupado pesquisadores, gestores e atores da administração da justiça penal. Atualmente, com um total de 837.443 pessoas presas em unidades físicas e domiciliares (DEPEN, 2022), o país abriga a terceira maior população carcerária global em números absolutos, atrás apenas dos Estados Unidos e da China, e configura o primeiro em termos de crescimento, tendo em vista que nos últimos anos os países acima mencionados já verificaram inflexões nas taxas de aprisionamento.
Desse modo, o encarceramento em massa de pessoas - formado majoritariamente por homens jovens, negros, com baixa escolaridade, moradores de regiões periféricas e que no momento da abordagem portavam pequenas quantidades de droga7 -ocupa uma posição central nos debates que permeiam o campo da segurança pública no Brasil. Essa realidade, embora tenha graus de variação, se repete em todos os estados da federação, sendo agravada desde os anos 1990 e carregando consigo o rastro de um país que não foi capaz de superar as marcas deixadas por anos de escravidão, patrimonialismo e ausências democráticas.
Nesse sentido, ainda que a redemocratização, estabelecida a partir do texto constitucional de 1988, tenha buscado agregar direitos e garantias ao cidadão, as alterações trazidas não foram suficientes para transformar as mentalidades dos agentes estatais da segurança, tampouco para adequar as legislações ou as instituições, que ainda perpetuam práticas abusivas e seletivas do sistema de justiça penal.
Com efeito, como afirmam Campos e Azevedo (2020), desde a redemocratização, houve um endurecimento da punição no Brasil. Quando se coloca em evidência o crescimento da taxa de encarceramento, ou seja, o número de presos para cada 100 mil habitantes a partir do ano de 1990, essa realidade fica manifesta.
De acordo com o gráfico 1 acima é possível apurar que, desde os anos 1990, houve um aumento de 426% nas taxas de encarceramento no país. Um dos motivos para esse crescimento pode ser relacionado, ainda em um primeiro momento, à Lei dos Crimes Hediondos do ano de 1990 e, posteriormente, à entrada em vigência da atual legislação de drogas brasileira.
Atualmente, a partir dos dados do DEPEN (2022), com mais de 70% da população carcerária do país formada por condenados por crimes contra o patrimônio (39,72%) e tráfico de drogas (30,28%), verifica-se que a lógica da administração da justiça penal no Brasil está focada na resolução de conflitos ligados à circulação de riqueza, seja nos mercados formais ou informais (Lima, Sinhoretto e Bueno, 2015).
A partir dessa perspectiva, tendo em vista que o grupo de crimes contra o patrimônio abrange diversos delitos9 e que o tráfico de drogas corresponde a um único tipo penal, fica evidente o espaço que a legislação de drogas ocupa dentro do sistema carcerário brasileiro. Isso porque apenas um ilícito penal é responsável por mais de 30% dos encarceramentos.
É nesse sentido que a atual Lei de Drogas brasileira, desde sua entrada em vigor no ano de 2006, tem ocupado um lugar de extrema relevância nas discussões da segurança pública no Brasil. Considerada a principal responsável pelo aumento massivo do encarceramento no país (Azevedo y Cifalli, 2016), a legislação tem sido um importante vetor para intensificar práticas há muito tempo conhecidas no sistema de justiça brasileiro, como de tratamento desigual, seletivo e inquisitorial nos processos criminais.
No que se refere ao encarceramento feminino, é de extrema importância constatar que sua expansão foi fortemente afetada pela atual Lei de Drogas. Com uma taxa de aprisionamento de 40,6, o Brasil ocupa a terceira posição entre os países que mais encarceram mulheres no mundo. De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN Mulheres), de 2018,10 no período de 2016, o país possuía uma população prisional de 42.355 mulheres, o que representava 5,8% do total das pessoas presas daquele ano11. Ainda que ao se comparar à proporção de presos do sexo masculino esse número possa parecer reduzido, dentre os anos de 2000 a 2016, o crescimento dos aprisionamentos femininos foi de 656%, ao passo que, no mesmo período, a população masculina privada de liberdade cresceu 293% (DEPEN, 2018).
O gráfico 2 abaixo demonstra como, desde a entrada em vigor da Lei 11.343/06, o número de mulheres presas no Brasil cresceu exponencialmente e de maneira desproporcional, em comparação aos dados do início dos anos 2000.
Por conseguinte, a alta elevação nas taxas de encarceramento de mulheres, que são majoritariamente jovens (68% têm idade entre 18 e 34 anos), negras (62%), com baixa escolaridade (82% com ensino médio incompleto), solteiras (62%) e com filhos (74%), está profundamente atrelada à atual Lei de Drogas. Essa afirmação se evidencia, visto que, de acordo com os dados provenientes do INFOPEN Mulheres (DEPEN, 2018), os crimes relacionados ao tráfico de drogas correspondiam a 62% das incidências penais pelas quais as mulheres respondiam criminalmente em 2016. Isso significa dizer que, naquele período, três em cada cinco mulheres estavam presas por crimes relacionados à Lei 11.343/06.
Assim, dentre todas as vulnerabilidades sociais - idade, classe social, escolaridade, cor, território, entre outras - que predispõem determinados grupos ao alcance do controle do Estado operacionalizado pelo direito penal, as mulheres ainda têm somado a essas variáveis o marcador de gênero, que, de acordo com a pesquisa de Campos (2015), aumenta as chances de incriminações por tráfico em relação ao uso, em comparação com os homens.12
Como apresentado anteriormente, não obstante as importantes mudanças introduzidas a partir da vigência da nova Lei de Drogas -principalmente em relação à diferenciação de condutas, ao controle exercido ao usuário e ao aumento da punitividade reservada ao traficante-, a ausência da determinação de critérios objetivos de distinção entre as condutas de tráfico e uso abriu margem para a atividade seletiva dos atores da administração da justiça penal. Essa atuação é operacionalizada, em um primeiro momento, pela ação da polícia e, posteriormente, pelas decisões dos magistrados.
Marcelo da Silveira Campos (2015), que efetuou uma pesquisa sobre as principais implicações da lei no sistema de justiça criminal da cidade de São Paulo, dispõe que a ausência de critérios objetivos não impede que se estabeleça a distinção entre uma e outra conduta, mas, sim, o contrário. Como demonstra, essa diferenciação de fato ocorre, inicialmente, pelos policiais e, depois, pelos juízes, visto que é com base no vocabulário de motivos específicos de cada um que será determinado quais serão os indivíduos direcionados para o sistema médico-repressivo e quais serão os encaminhados para as prisões.
Por meio de uma série temporal, o autor evidencia que a principal implicação da Lei 11.343/06 na cidade de São Paulo foi o envio de usuários para a prisão, e não o oposto, como se esperava em um primeiro momento quando da formulação da lei pelo legislativo. A pesquisa de Campos (2015) demonstra que, à medida que transcorreu o tempo após a entrada em vigor da nova lei, percebeu-se um aumento do número de pessoas incriminadas por tráfico e a consequente diminuição das incriminações por uso.
Nessa lógica, a partir da adoção de um modelo estatístico de regressão binária logística, o autor evidencia que a condição que mais incidiu no aumento das chances de alguém ser considerado traficante ou usuário foi o ano.
Em 2009, tendo como referência o ano de 2004, as chances de uma pessoa ser incriminada por tráfico em relação ao uso aumentaram aproximadamente 4 vezes mais (3,95). Ou seja, à medida que os anos passaram e que a nova lei de drogas entrou em vigor (2006), a cada ano aumentaram gradativamente as chances de ser incriminado pela polícia por tráfico em relação ao uso. (Campos, 2015, p. 156)
Assim, quanto maior a distância em relação ao ano de 2006, quando a lei entrou em vigor, maior é o número de pessoas denunciadas por tráfico e menor é o número de indivíduos incriminados por porte para uso pessoal. Essa constatação demonstra resultados que apontam para o papel fundamental da Lei de Drogas no aumento do encarceramento no Brasil, desde o início de sua vigência.
Sobre a relação entre a atual Lei de Drogas e o aumento da população carcerária, um estudo realizado sobre a política criminal no Brasil nos governos Lula e Dilma (Azevedo e Cifalli, 2016) demonstrou que, dentre todas as reformas legais levadas a cabo nesse período, a Lei 11.343/06 se destaca justamente por esse motivo. Ao analisar as diretrizes, as reformas legais e o impacto carcerário decorrentes das reformas legislativas na área penal abrangidas no espaço temporal proposto, a pesquisa afirma que, do conjunto de reformas legais implementadas dentre os anos de 2003 a 2014, a Lei de Drogas foi efetivamente a que mais contribuiu para o aumento das taxas de encarceramento no Brasil.
Atualmente, ao representar cerca de 30% das incidências por tipo penal, os delitos correspondentes à legislação de drogas configuram aproximadamente um terço dos aprisionamentos no país. Esse número, que antes da vigência da atual lei representava cerca de 10% do total de presos, demonstra como as prisões por tráfico cresceram desproporcionalmente, quando comparadas ao aumento das taxas relativas ao total do número de encarcerados (Azevedo e Hypolito, 2016). Assim, essa constatação indica a relação direta entre a entrada em vigência da Lei 11.343/06 e o aumento massivo do número de pessoas presas no Brasil.
Desse modo, de todas as implicações percebidas desde a implementação da atual Lei de Drogas, o crescimento acentuado do número de aprisionados no país é a mais expressiva. Se, em um primeiro momento, ainda no período de sua construção no legislativo, a proposta trazida pela lei era a de reduzir danos e diminuir os problemas decorrentes do antigo texto legal; ao diferenciar condutas - usuários de pequenos e grandes traficantes - por meio da aplicação de penas distintas para cada um, no campo prático, como anteriormente apontado, isso não ocorreu.
O aumento da pena mínima do delito de tráfico para cinco anos, o que em regra impede a aplicação de penas alternativas à prisão, assim como o crescimento constante do indiciamento de pessoas por comercialização de drogas, mesmo a partir da apreensão de pequenas quantidades, e a diminuição das condutas enquadradas como consumo foram fatores que agravaram as taxas de encarceramento desde que a Lei 11.343/06 entrou em vigência em 2006.
Somado a esses aspectos, o fato de o tráfico ser equiparado a crime hediondo -o que acarreta aos presos que respondem por esse delito um maior tempo de cumprimento de pena para a progressão de regime, além de obstruir a comutação de indulto- tem de igual forma um importante papel na elevação expressiva do número de encarcerados no país, de modo que interfere diretamente no tempo em que estes permanecem nas prisões.
Se anteriormente foi dado um maior foco para o papel da polícia no processo de incriminação de pessoas por delitos relacionados ao tráfico de drogas, neste momento cabe evidenciar a função que cumprem outros atores pertencentes à arquitetura institucional da segurança pública, como a desempenhada pelo judiciário na perpetuação das acusações e no consequente aumento do encarceramento de pessoas no Brasil.
A Lei 11.343/06 e o papel do judiciário: evidências empíricas
Ao longo dos últimos anos, diversas pesquisas foram desenvolvidas no que diz respeito ao campo de atuação do judiciário nos processos de tráfico de drogas no Brasil (Boiteux e Wiecko, 2009; Campos, 2015; Lemgruber e Fernandes, 2015; Jesus, 2016; DPERJ, 2018; Semer, 2019; Valois, 2020).
A pesquisa Tráfico de drogas e Constituição, publicada no ano de 2009 (Boiteux e Wiecko, 2009), foi uma das pioneiras na análise dos impactos da Lei 11.343/06 nos processos judiciais e nas incriminações por tráfico no Brasil. Realizada com um recorte temporal que abrangeu os anos de 2006 a 2008, muito próximos à entrada em vigência do novo dispositivo legal, as autoras analisaram mais de mil sentenças judiciais e 128 acórdãos em matéria de drogas, referentes às comarcas do Rio de Janeiro e Brasília.
A partir dos resultados obtidos pela pesquisa, foi possível desmistificar preconcepções em relação à figura dos presos por tráfico -estereótipos formados muito em decorrência da equiparação do delito com os crimes hediondos- como sendo pessoas com atitudes violentas e com alta periculosidade para a sociedade de um modo geral. Esse fato, reproduzido pelo senso comum, bem como pelos agentes da administração da segurança pública, que nesta etapa do trabalho são representados na figura dos juízes, demonstra o forte estigma que carrega o indivíduo que responde penalmente pelo delito de tráfico de drogas no Brasil.
No entanto, com base nos resultados apresentados pelo estudo, acerca das condições em que se deram os encarceramentos por tráfico, ficou demonstrado que a grande maioria das abordagens e posteriores prisões decorrem de crimes não violentos. Isso, pois 84% dos réus eram primários, 65% não tinham qualquer ligação com organizações criminosas, 60% eram réus únicos do processo e apenas 14% portavam arma de fogo no momento da abordagem policial (Boiteux e Wiecko, 2009).
Acerca da manutenção da prisão provisória para delitos de tráfico, realidade que contribui diretamente para o aumento do encarceramento, Lemgruber e Fernandes (2015) analisaram -a partir de um recorte de 1.330 processos por tráfico de drogas tramitados no ano de 2013 e com sentenças proferidas até março de 2015- como a modalidade da prisão provisória é imposta pelos juízes.
O estudo concluiu que o número de pessoas presas provisoriamente por indiciamentos referentes ao tipo criminal é excessivo, ao apontar que 72,5% ficaram encarceradas durante o curso da investigação e do processo, entretanto, destas, apenas 45% acabaram condenadas à pena privativa de liberdade. Ou seja, aproximadamente um terço ficou encarcerada desnecessariamente durante o decorrer do processo (Lemgruber e Fernandes, 2015).
A respeito das decisões dos juízes acerca das absolvições e desclassificações para uso, a investigação demonstra que, do total de 1.330 situações jurídicas analisadas, 20% terminaram em absolvição, fundamentadas no art. 386 do Código de Processo Penal, e 7% em desclassificação da conduta de tráfico para consumo, nos termos do art. 28 da Lei 11.343/06, o que demonstra as altas taxas de condenações por tráfico de drogas por parte dos magistrados.
A pesquisa também analisou o acesso à justiça e ao direito de defesa dos réus e concluiu que, nos processos examinados, garantias fundamentais para o cumprimento do devido processo legal, como a presunção de inocência e a garantia ao contraditório, não foram respeitadas pelos juízes. Um exemplo disso está na atribuição, por parte dos magistrados, de valor absoluto ao depoimento das testemunhas de acusação, ou seja, à palavra dos policiais. Fundamentados muitas vezes pela Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro13, os julgadores compreendem que o depoimento dos policiais que efetuam a prisão em flagrante basta como prova para fundamentar uma sentença condenatória (Lemgruber e Fernandes, 2015).
Essa realidade evidencia o flagrante desrespeito à garantia dos réus ao direito ao contraditório e à presunção de inocência, visto que, no processo penal brasileiro, nenhuma prova isoladamente deve ter força para legitimar uma condenação criminal; especialmente quando mais de 90% das testemunhas arroladas pela acusação nos processos de tráfico são provenientes das forças de segurança (Semer, 2019).14 Assim, a disparidade de armas entre defesa e acusação nos processos de tráfico é inequívoca, visto a credibilidade que é dada à palavra do policial em detrimento aos testemunhos de defesa.
Deste modo, como afirma Gorete Marques, dentre os magistrados é difundida e majoritária a crença na conduta íntegra do policial, de modo que, para os juízes, os policiais “não sairiam por aí prendendo desconhecidos”’ (Jesus, 2016, p. 215). É nessa mesma lógica que Semer afirma que os juízes desprezam a possibilidade de que policiais poderiam estar interessados em mentir em seus depoimentos, o que torna a compreensão da idoneidade da palavra da polícia praticamente uníssona pelo judiciário.
Desprezando a possibilidade de que os policiais poderiam estar interessados, como testemunhas, na legitimação de suas próprias condutas, um dos pontos essenciais para a valoração do depoimento é justamente a incompreensão dos motivos que os levassem a mentir (...). A inidoneidade do policial parece ser um objeto absolutamente desconhecido, quase exótico, que só se justificaria aos crédulos de uma teoria da conspiração. (Semer, 2019, p. 191)
Da mesma forma que nos processos de tráfico existe a crença inabalável no depoimento policial, há também uma aceitação e adoção por parte dos juízes do conteúdo dos inquéritos produzidos pela polícia no auto de prisão. Estes, como foi anteriormente apontado, muitas vezes servem para fundamentar as sentenças condenatórias.
É a partir da concepção dessa lógica de repetição e reprodução que Valois (2020) afirma que o rito processual nos crimes de tráfico não constitui o momento em que se julga o possível cometimento do ilícito criminal “mas simplesmente onde se repete o que foi documentado pela polícia, como um teatro, onde o que está em julgamento não é o fato, mas somente o documento apresentado” (Valois, 2020, p. 463). Para o autor, os magistrados nos processos de tráfico não se comportam como juízes togados, como deveriam, mas, sim, como os policiais da rua, na medida que apreendem dos autos de prisão em flagrante a comprovação incontestável do fato ilícito.
É nesse mesmo sentido que Semer (2019) afirma que, ao agirem dessa forma, os magistrados deixam de exercer o poder que têm às mãos, qual seja, o da defesa dos princípios e normas que conformam o ordenamento jurídico, como terceiros imparciais.
A ideia de que o juiz possa representar uma continuidade do trabalho policial, uma espécie de centroavante de uma equipe na qual participam policiais militares, policiais civis, promotores etc., inutiliza por completo a função jurisdicional -de apreciar o conflito na posição de terceiro. (Semer, 2019, p. 287)
Marcelo Semer (2019) realizou um denso estudo acerca do papel dos juízes no grande encarceramento, a partir da análise de mais de 800 sentenças de tráfico proferidas em oito estados brasileiros. De um modo geral, de todas as decisões examinadas, 78,40% foram no sentido de procedência da condenação, 6,27% desclassificaram a conduta para consumo pessoal e 15,33% decidiram pela improcedência da ação, absolvendo os réus.
No que diz respeito às altas taxas de condenação, de acordo com o autor:
O vigor probatório dos relatos policiais, a suspeita inerente aos interesses do réu e suas testemunhas próximas, as regras que permitem o aproveitamento dos elementos de inquérito e que provocam a inversão do ônus da prova, tudo converge para um padrão elevado de condenações. (Semer, 2019, p. 237)
A pesquisa de Semer demonstra que, não obstante exista “um enorme potencial despenalizador na decisão judicial” (Semer, 2019, p. 238), esse é raramente exercido pelos magistrados. Pelo contrário, os resultados do estudo demonstram que, em diversos casos, o crime de tráfico foi caracterizado a partir de pequenas quantidades de droga, que mediante a interpretação dos juízes foram consideradas “expressivas”, mesmo quando ínfimas, como no caso da apreensão de 1,8 g de crack.
Nesse sentido, acerca do impacto da ausência de parâmetros quantitativos para diferenciar as condutas de tráfico e consumo, confirmando o que já havia sido apontado por Campos (2015), a pesquisa de Semer demonstra como essa realidade contribui para a opção dos juízes pela condenação, que posteriormente resulta na aplicação de penas altamente desproporcionais, as quais utilizam critérios incoerentes.
Na sentença-279, réu primário, a apreensão de 0,2g de cocaína em pó e 0,4g de crack, resultou em uma pena final de 3 anos, 2 meses e 26 dias de reclusão; na sentença-702, 8g de crack chegaram a 6 anos de reclusão; na sentença-668, com a apreensão de três trouxinhas de maconha e 2 pedras de crack, a pena chegou a 6 anos e 10 meses de reclusão, na sentença-744, com apreensão de 2,2g, uma pena resultante de 5 anos e 9 meses. (Semer, 2019, p. 244)
De acordo com os dados apresentados pelo autor acerca da pena definitiva aplicada nos casos de condenação, chegou-se à conclusão de que o apenamento nos processos é quase três vezes superior ao mínimo legal.
Sobre o regime de cumprimento, que, assim como o tempo de pena, tem forte impacto no encarceramento, Semer demonstra que existe uma diversidade considerável nos regimes fixados. Os resultados apresentados pela pesquisa indicam que, para muitos juízes, a decisão do STF que declarou a inconstitucionalidade do parágrafo 1º do art. 2º da Lei 8.072/90, o qual determinava que o regime inicial para cumprimento de pena por crime de tráfico deveria ser o fechado, não surtiu efeito algum, de modo que não é observada pelos magistrados em grande parte das sentenças analisadas (Semer, 2019).
Ademais, a pesquisa do autor constatou que a maioria expressiva dos réus por crime de tráfico são primários (80%), hipossuficientes e, em grande medida, os processos derivam de prisão em flagrante, com pouca investigação policial. A taxa por associação é baixa e cerca de 70% dos processos contam com apenas um réu, o que evidencia pouca coautoria. As prisões nas quais são confiscadas balanças de precisão são uma em cada oito e em menos de 10% dos casos ocorre apreensão de arma de fogo (Semer, 2019).
No mesmo sentido dos resultados de Lemgruber e Fernandes (2015), a pesquisa de Semer (2019) evidencia que a prisão provisória segue sendo regra básica nos processos de tráfico. Isso, na medida em que, dos 800 processos analisados pelo autor, em 89,86% dos casos os réus começaram o processo com a prisão em flagrante, que logo em seguida foi convertida em preventiva.
Sobre a aplicação da minorante prevista no §4 do art. 33, que configura a conduta do tráfico privilegiado e que prevê uma redução no apenamento de um sexto a dois terços para réus primários, com bons antecedentes, não dedicados a atividades criminosas e não pertencentes a organizações criminais, Semer afirma que a redutora “é ao mesmo tempo o diferencial e o calcanhar de Aquiles da nova lei” (Semer, 2019, p. 252). De acordo com a pesquisa do autor, fica evidente a resistência dos juízes em reduzir as penas, percebido que, ainda que o índice de reincidência nos casos analisados não tenha ultrapassado 20%, a aplicação da redutora não chegou a 50% dos casos.
No mesmo sentido, a pesquisa de Lemgruber e Fernandes (2015) constatou que, mesmo quando os réus preenchem os requisitos previstos em lei, os juízes de primeiro grau não apenas ignoram a primariedade e os bons antecedentes, como se valem de critérios não objetivos para não aplicar a possibilidade legal de redução de pena. Isso, porque, de todos os 1.330 casos analisados ao longo da pesquisa, 80% dos acusados de tráfico eram primários e com bons antecedentes, porém apenas cerca de um terço recebeu a redução no apenamento como prevê a lei.
Além do mais, o estudo realizado pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (2018) demonstrou que, quando de fato a minorante é concedida, não existe um padrão que determine a redução no tempo de pena efetivamente aplicada, que pode ser entre um sexto e dois terços. De acordo com a pesquisa, os juízes, que dedicam pouco mais de um parágrafo para conceder ou não o benefício, aplicam os diferentes percentuais de diminuição de forma discricionária, uma vez que não justificam textualmente em suas sentenças sua opção acerca da proporção adotada, que muitas vezes é no sentido da aplicação de um patamar menor do possível de redução.
Na vanguarda do pior: o desastre da política de drogas brasileira em perspectiva internacional
A partir de tudo que foi apontado, fica evidenciado que a política de drogas brasileira é ineficiente e problemática. Em nível nacional, em diferentes espaços institucionais, existe o reconhecimento dos equívocos e limitações da legislação para resolver as diversas dinâmicas que envolvem as drogas ilícitas. Internacionalmente, o tema voltou ao foco no fim do ano de 2021, a partir da publicação do Índice Global de Política de Drogas (IGPD, 2021), que classificou o Brasil na pior posição do ranking dos trinta países analisados.
O estudo elaborado pelo The Harm Reduction Consortium (2021) surge como uma ferramenta que busca descrever, avaliar e comparar distintas políticas nacionais de drogas e suas implicações, ao atribuir para cada país uma pontuação e classificação. Os parâmetros de avaliação são compostos por 75 indicadores abrangidos em cinco grandes dimensões da política de drogas relacionadas aos direitos humanos, justiça criminal, saúde e desenvolvimento. De acordo com os critérios do índice, a pontuação de cada país pode ir de 0 a 100, tendo a média global ficado nos 48 pontos (IGPD, 2021).
Nessa primeira publicação foram analisados trinta países de todas as regiões do globo e o Brasil ficou na última colocação, marcando apenas 26 pontos, atrás de Uganda (28 pontos), Indonésia (29 pontos) e Quênia (34 pontos). Dentre os melhores colocados estão países como Noruega (74 pontos), Nova Zelândia (71 pontos) e Portugal (70 pontos), conhecidos por suas políticas de drogas engajadas com estratégias de redução de danos, inclusão social e descriminalização dos usuários.
Mas o que fez o Brasil marcar uma pontuação tão baixa, a qual lhe relegou a pior posição no ranking dentre todos os países analisados? A resposta para essa pergunta reside principalmente no fato de o aparato da política de drogas brasileira -governo, legislação e atores- não estar alinhado a compromissos de respeito aos direitos humanos, dignidade e saúde pública, como assim determinam os tratados da Organização das Nações Unidas.
Em um país com alto nível de desigualdade social e com um histórico de legislações em matéria de drogas ilícitas ineficientes para a proteção da saúde de usuários, desprovidas da adoção de políticas de redução de danos, focadas na criminalização e passíveis de discricionariedades e interpretações arbitrárias pelos atores da administração da justiça criminal (como policiais, juízes e desembargadores etc.) e que majoritariamente tendem a condenações por pequenas quantidades de droga, como foi anteriormente demonstrado, a atual política de drogas brasileira se mostra efetivamente um fracasso como política pública para enfrentamento do problema.
Os resultados apresentados pelo índice (IGPD, 2021) evidenciam essa realidade. Ao colocar luz sobre problemas relacionados à brutalidade policial, execuções extrajudiciais cometidas por agentes estatais, uso excessivo do encarceramento como resposta para crimes não violentos e a ausência de adoção de políticas de redução de danos, o estudo realça o verdadeiro fracasso do Estado brasileiro para implementar e gerir políticas públicas em matéria de drogas e segurança pública.
Nesse sentido, ainda que o Brasil tenha marcado uma pontuação extremamente baixa em praticamente todos os eixos de análise apresentados no índice, alguns indicadores precisam ser evidenciados. Acerca das execuções extrajudiciais relacionadas ao controle das drogas e cometidas por agentes da lei, o Brasil foi o único país, dentre todos os analisados, no qual o uso desnecessário de força letal na repressão às drogas foi visto como endêmico. Cabe destacar que os parâmetros metodológicos da pesquisa realizada pelo índice consideram endêmico o uso da força letal na repressão das drogas quando foram constatadas mais de quarenta mortes no ano de 2020 (IGPD, 2021).
No Brasil, apenas no ano de 2020, de acordo com o 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2021), 6.416 pessoas foram vítimas da letalidade policial no país. Esse número, o maior registrado desde que a série histórica começou a ser contabilizada no ano de 2013, demonstra de forma cabal a falta de controle do Estado brasileiro para lidar com o monopólio do uso da força (Weber, 1999). Tendo como maioria dos mortos pela atuação da polícia no país homens (98,4%), negros (78,9%), jovens (76,2%) e moradores de regiões periféricas das grandes cidades (FBSP, 2021), chacinas como a que ocorreu no Massacre do Jacarezinho em maio de 2021, e que deixou 29 mortos, têm sido frequentes.
A respeito dos assassinatos em massa de pessoas pretas e vulneráveis no Brasil e do constante estado de violência resultante de medidas de necropolítica a qual estão submetidas, nas palavras de Silvio de Almeida, atual Ministro de Direitos Humanos:
A descrição de pessoas que vivem “normalmente” sob a mira de um fuzil, que têm a casa invadida durante a noite, que têm que pular corpos para se locomover, que convivem com o desaparecimento inexplicável de amigos e/ou parentes é compatível com diversos lugares do mundo e atesta a universalização da necropolítica e do racismo de Estado, inclusive no Brasil. (Almeida, 2020, p. 125)
Se as execuções sumárias cometidas por parte da polícia brasileira, além de causarem espanto e se destacarem por sua desproporção, quando se compara à situação de outros países analisados no estudo, outros indicadores também relevantes foram aqueles referentes à internação de usuários para tratamento compulsório e a escolha pela não adoção de políticas de redução de danos. Nesse sentido, com a implementação de medidas fundamentadas na abstinência e na repressão criminal de consumidores, a partir da Lei 13.840/2019, sancionada no governo de Jair Bolsonaro -que alterou uma série de dispositivos da atual Lei 11.343/06-, entre os quais a modalidade de internação involuntária de usuários, que passou a ser admitida.
Ademais, questões como a obrigatoriedade da aplicação de penas mínimas para delitos envolvendo drogas e o fato de o consumo e porte para uso pessoal ainda serem considerados crime foram fatores que igualmente contribuíram para que o Brasil ficasse na última colocação do Índice Global de Política de Drogas (IGPD, 2021). Ainda, a Lei 11.343/06, em vigência há mais de 15 anos e que, como anteriormente apontado, foi considerada a principal responsável pelo encarceramento massivo de jovens negros e moradores de regiões periféricas do país, age como fio condutor para toda a gama de incoerências presentes na política de drogas brasileira corrente.
Conclusão
De tudo que foi exposto neste ponto do trabalho, é possível constatar que a Lei 11.343/06 desde sua entrada em vigor, contribuiu significativamente para o aumento do encarceramento no Brasil. Do mesmo modo, foi possível constatar que por não estabelecer critérios quantitativos de distinção entre usuários e traficantes, abriu-se uma lacuna legal que permitiu a atuação discricionária, primeiro da polícia e em seguida dos juízes.
Assim, buscou-se evidenciar que os juízes cumprem um importante papel nas incriminações por tráfico e, consequentemente, nas altas taxas de encarceramento no Brasil. De acordo com as pesquisas analisadas, ficou evidenciado que a maioria dos magistrados se valem devotamente dos elementos do inquérito policial e da palavra dos policiais para decretar as prisões preventivas, que são aplicadas em cerca de 90% dos casos, bem como para fundamentar suas decisões majoritariamente condenatórias (aproximadamente 80%).
As pesquisas também evidenciam que o excesso das prisões provisórias e das posteriores condenações contrastam com o fato de que as abordagens, majoritariamente efetuadas sem investigação e por agentes da lei mediante policiamento ostensivo, decorrem de crimes sem violência e da apreensão de pequenas quantidades de droga, circunstâncias que não parecem causar incômodo aos juízes. Isso de modo que esses magistrados, ao proferirem sentenças condenatórias para réus, que são predominantemente primários (80%), aplicam penas demasiadamente altas. Igualmente se mostra clara a resistência dos juízes em determinar um regime para início de cumprimento de pena diverso ao fechado, não obstante essa matéria já esteja superada pelo STF.
Outro fator, que foi percebido em muitos casos e que contribui para o aumento das taxas de encarceramento, foi a não concessão do direito à diminuição de pena prevista para o tráfico privilegiado. Ademais, o respeito ao devido processo legal, a partir da presunção de inocência, da garantia ao contraditório e à paridade de armas no rito processual, não parece ser caro aos magistrados que julgam os processos de tráfico.
Assim, as evidências demonstram que, ainda que os juízes tenham em mãos um alto potencial despenalizador, eles optam justamente pelo contrário, de maneira que exercem um comportamento altamente punitivista e inquisitorial nos processos por tráfico de drogas nos tribunais brasileiros. Por fim, a partir do estudo internacional, que avaliou a política de drogas de mais de trinta países e considerou o Brasil na pior posição, restou evidenciado que a abordagem brasileira em relação às drogas ilícitas é ineficaz e problemática, também quando comparada a outros locais do globo.