1. Introducción
Na América Latina existe uma tradição bastante consolidada de estudos de usuários da informação, embora, diversas vezes, essa tradição de pesquisa apareça na literatura a partir de nomes muito distintos, tais como “formação de usuários”, “comportamento informacional”, “estudos de necessidades de informação”, “sujeito informacional” ou “práticas informacionais”. Há, ainda, muitos casos em que se realizam estudos e pesquisas em temas como “leitura”, “competência em informação” ou “ação cultural” nos quais há uma grande aproximação com os estudos de usuários da informação.
Essa tradição de pesquisa é muito vasta: ela inclui estudos de usuários de bibliotecas, de arquivos, de centros de memória, de bases de dados, entre outros sistemas, serviços ou produtos de informação; grupos muito diferentes de usuários tais como trabalhadores, agricultores, cientistas, empresários, estudantes, comunidades economicamente vulneráveis, entre vários outros. A produção científica na área inclui tanto um volume significativo de produções e elaborações teóricas quanto, também, estudos empíricos. Os estudos empíricos utilizaram uma variada gama de métodos de coleta de dados (questionários, entrevistas, observação participante, contagem de empréstimos, análise de log, entre outros) e análise desses dados (medições estatísticas, identificação de padrões, análise de conteúdo, discurso do sujeito coletivo, entre muitas outras).
A tarefa de organizar ou sumarizar essa produção é bastante desafiadora, porque muitos critérios poderiam ser organizados. Seria possível sistematizar os estudos de usuários da informação na América Latina pelos critérios levantados no parágrafo anterior: por categoria de usuários (grupos profissionais, sociodemográficos ou outros), por tipo de sistema ou serviço de informação utilizado, ou pelos métodos de coleta de dados. Outros critérios poderiam ser utilizados: apresentar o desenvolvimento dos estudos por país, ou a partir de uma perspectiva histórica.
Neste artigo, destinado a apresentar uma tentativa de síntese da produção científica latino-americana sobre usuários da informação, optou-se pela utilização de um outro critério: a perspectiva teórica orientadora dos estudos. Contudo, a noção de perspectiva teórica é utilizada aqui de uma maneira bem ampla: desde uma perspectiva propriamente epistemológica, isto é, a vinculação a uma tradição de pensamento filosófica, psicológica ou social, passando por uma perspectiva conceitual (a própria definição do que seriam “usuários da informação”) ou o foco ou abrangência da análise (a unidade de análise, conceitualmente definida, nos estudos).
Em relação ao quadro epistemológico no qual se situam os estudos de usuários da informação, é preciso destacar a dupla natureza dos estudos: de um lado, são estudos sobre sujeitos, sobre seres humanos, o que os coloca no ramo das ciências humanas e sociais, dos quais tomam os conceitos e quadros de referência. Tais estudos são, também, estudos sobre informação, sobre fenômenos informacionais, o que os coloca no interior da ciência da informação e, dessa forma, também se inserindo nos quadros de referência desta área de pesquisa. É no cruzamento destes dois quadros de referência que é possível se analisar epistemologicamente os estudos de usuários da informação.
Não cabe, nos limites desse texto, desenvolver e explorar as várias manifestações teóricas nos dois campos mencionados acima (as ciências humanas e sociais, no geral, e a Ciência da Informação, em particular). Apenas constatamos aqui que, de maneira bastante consolidada e disseminada, é possível identificar três grandes abordagens ou formas de estudo dos fenômenos humanos e sociais: as perspectivas funcionalista, crítica e compreensiva (Giddens, 1979; Demo, 1989; Lallement, 1993; Minayo, 2000; Dortier, 2005; Wieviorka, 2007). De uma forma muito resumida, pode-se dizer que a perspectiva funcionalista se centra nos aspectos macroscópicos da realidade humana e social, isto é, na atuação das instituições para a conformação do equilíbrio e da ordem social, a partir do cumprimento de determinadas funções e eliminação de possíveis disfunções; a perspectiva crítica parte da constatação das desigualdades estruturais que compõem as sociedades humanas, enfatizando os conflitos entre diferentes grupos como elementos centrais da vida humana; e a perspectiva compreensiva foca em aspectos microssociais, enfatizando como os sujeitos são ativos na estruturação da vida social, sobretudo a partir de sua ação de atribuir significados às suas ações e às instituições.
No campo da ciência da informação, existe relativo consenso de que existem três grandes modelos de estudo: o físico, o cognitivo e o social (Saracevic, 1999; Ørom, 2000; Fernández Molina & Moya-Anegón, 2002; Capurro, 2007; Salaün & Arsenault, 2009; Bawden & Robinson, 2012). Também de uma forma muito resumida, pode-se dizer que a perspectiva física enfatiza a dimensão objetiva dos fenômenos informacionais, isto é, os conteúdos objetivos dos documentos e seus processos de criação, circulação, recuperação e uso; a perspectiva cognitiva se foca nos aspectos subjetivos da informação, isto é, na relação que os indivíduos estabelecem com os documentos, percebendo a informação como produto da interação entre os dados e os conhecimentos; e a perspectiva social se volta para uma dimensão intersubjetiva, enfatizando a importância das várias ações desempenhadas pelos sujeitos no trato com a informação e a centralidade dos contextos sociohistóricos na conformação da informação.
Os três modelos das ciências humanas e sociais e os da ciência da informação não são coincidentes, mas incidem, ambos, sobre o campo de usuários da informação, gerando uma complexa rede de articulação de modos de definição do objeto de estudo e de condução das pesquisas (Araújo, 2013).
2. A primeira perspectiva de pesquisa: a abordagem funcionalista
A origem dos estudos de usuários da informação na América Latina está diretamente relacionada com o ensino universitário de Biblioteconomia nos países da região, começando, conforme Hernández-Salazar (2006; 2020), na Argentina, no México, na Colômbia e no Brasil, se disseminando depois para os outros países da região. Nos cursos de Biblioteconomia, o tema “usuários da informação” fazia parte dos conteúdos curriculares, algumas vezes como disciplina específica, outras vezes como conteúdo dentro de outra disciplina. Esse fato motivou tanto a consolidação do tema como um campo científico como, também, o desenvolvimento de práticas de pesquisa, de produção de artigos científico e também de tradução de artigos científicos de outras regiões (sobretudo Estados Unidos e Europa) para o espanhol e o português (Castro, 2000; Morales López, 2005; Pérez Pulido e Herrera Morillas, 2006).
Os estudos de usuários que surgiram nesse primeiro momento podem ser enquadrados, desde uma perspectiva das ciências humanas e sociais, no modelo funcionalista e, desde uma perspectiva da ciência da informação, no modelo fisicista. São pesquisas que se centram em aspectos objetivos dos usuários da informação (dados de perfil sociodemográfico, indicadores quantitativos de preferências e satisfação) e também em aspectos objetivos dos produtos, sistemas e serviços de informação (indicadores de uso, de frequência, de avaliação, entre outros). Sua principal motivação é justamente o melhoramento destes produtos, sistemas e serviços, como por exemplo Carvalho (1976), Alvea (1978), Tarapanoff (1995) e Bustamante Paco (2003).
Dentro dessa grande abordagem é possível identificar alguns subgrupos com ênfases específicas. Há, assim, estudos de usuários da informação considerados em uma perspectiva essencialmente instrumental, isto é, como uma ferramenta de diagnóstico, de produção de dados para a avaliação dos serviços bibliotecários, dentro da grande temática do planejamento em bibliotecas.
Dentro do planejamento em bibliotecas, a avaliação de coleções se tornou um campo central de pesquisas. Seu objetivo era o de prover elementos para decisões acerca de aquisição de livros e outras fontes de informação, de políticas de descartes, de disposição física nas estantes, entre outros. Dentro da avaliação de coleções, desenvolveram-se métodos como compilação de estatísticas sobre tamanho da coleção, gastos, verificação de listas e catálogos, equilíbrio de assuntos, entre outros. E, em meio a esses métodos, ganharam destaque aqueles que envolvem algum tipo de consulta aos usuários, buscando identificar estatísticas de uso, pedidos não atendidos, empréstimos realizados, cópias fornecidas, questões respondidas e livros solicitados. Alguns exemplos de estudos nessa linha são os de Botelho, Novais & Inque (1999), Ferrada Cubillos (2005) e Garcez (2007).
Os métodos para realizar tais estudos utilizavam tanto fontes documentais (como as estatísticas de empréstimos) quanto envolvendo usuários, tanto usuários reais em situações reais, quanto usuários participando de simulações. O estoque de conhecimento acumulado nestas áreas (estudos de uso, avaliação de coleções) foi enorme, principalmente nos campos relacionados com a importância das fontes de informação (de sua aquisição) e dos instrumentos para sua representação e organização (catálogos, linguagens documentárias, etc), como por exemplo em Cunha (1998) e Casarin & Oliveira (2012).
Paralelamente, uma outra linha de pesquisas se constituiu: os chamados estudos de comunidade, isto é, estudos com usuários de bibliotecas, preocupando-se com hábitos de leitura e potencial socializador da biblioteca a partir da identificação de traços e perfis sociodemográficos de comunidades (bairros, cidades, instituições) para a adequação dos serviços bibliotecários a estes perfis, suas necessidades e demandas. Alguns exemplos de estudos empíricos são os de Stumpf (1988), Costa & Andrade (1998), Núñez Paula (2000) e, mais recentemente, Abe & Cunha (2011) e Guevara Villanueva (2014).
Um terceiro grupo de estudos são os estudos de usuários de informação científica e tecnológica, isto é, estudos feitos com cientistas buscando identificar suas necessidades para adaptar os serviços bibliotecários e de informação a essas necessidades. Na agenda de pesquisa desse campo estão estudos sobre as fontes de informação mais utilizadas pelos cientistas, diferenças de comportamento informacional entre cientistas de diferentes áreas, mapeamento dos colégios invisíveis (redes informais de trocas de informação entre cientistas interessados em um mesmo assunto), entre outros, como mostram estudos empíricos como os de Garcez & Rados (2002), de Crespo & Caregnato (2005) e de Cunha e Cendón (2010).
Nos três casos, é possível identificar uma mentalidade administrativa no âmbito das bibliotecas (Almeida, 2000) que não se trata de mero exercício intelectual, mas de reunião de dados úteis para solucionar problemas ou tomar decisões. A avaliação não ocorre isoladamente, mas faz parte de um processo maior, o planejamento de bibliotecas e sistemas de informação, por meio do controle dos métodos, padrões, capacidades e incentivos de produção, com os objetivos de minimizar custos, otimizar processos, melhorar a qualidade dos produtos e serviços, diminuir incertezas e acasos (nesse sentido, é o oposto da improvisação) e prever soluções para os problemas. É assim que o planejamento bibliotecário passa a vincular-se de forma significativa aos estudos de usuários (Rabello, 1988; Dias & Pires, 2004). Os estudos de usos prosseguiram incorporando, em suas temáticas, a avaliação de coleções, a produção de indicadores de uso, os processos e fluxos da comunicação científica, a produção de dados para o diagnóstico e o planejamento e a gestão da informação no ambiente organizacional.
Sociologicamente falando, tais estudos possuem um mesmo modelo teórico, o modelo positivista, que consiste na aplicação dos mesmos métodos das ciências naturais (exatas e biológicas) aos fenômenos humanos e sociais. Isso se verifica sobretudo com a preocupação em estabelecer leis do comportamento do usuário da informação (como, por exemplo, o princípio do menor esforço) com o objetivo de estabelecer padrões de comportamentos invariáveis, isto é, válidos para diferentes contextos, em diferentes locais e épocas; e a necessidade de medir o comportamento dos usuários. A maior parte dos estudos realizados nesta abordagem utiliza como técnica de coleta de dados o questionário, normalmente composto por perguntas com o objetivo de quantificar hábitos de comportamento de busca e uso da informação e verificar frequências de acesso e graus de satisfação, como, por exemplo, o estudo de Nascimento & Weschenfelde (2002) e González Valdés (2019).
Além do positivismo, também o funcionalismo é o fundamento de tais estudos, na medida em que a busca pela otimização das funções da biblioteca, isto é, o atendimento às necessidades de informação dos usuários, se torna o objetivo maior dos estudos. Uma das consequências dessa filiação funcionalista foi, justamente, o surgimento da temática de formação de usuários (ou treinamento de usuários ou, ainda, educação de usuários), com o desenvolvimento de diversos programas de orientação e instrução. Realizam-se estudos de usuários para descobrir os padrões de comportamento informacional (fatores que dificultam o uso da informação, demoras toleráveis, etc) de forma a, também, levantar possíveis ações que possam incidir sobre os próprios usuários para que tenham o comportamento mais adequado do ponto de vista do sistema (Figueiredo, 1981; Hernández Salazar, 1998).
Nos anos seguintes esse campo ganhou uma grande fundamentação conceitual, em torno da ideia de formação de usuários (Hernández Salazar, 2007), como mostram estudos de vários países, entre os quais se destacam os de Arellano Rodríguez,(1994), Rodríguez & Arguedas (1995), Córdoba González (1998; 2000), Naranjo Vélez & Rendón Giraldo (2003), Rendón Giraldo & Herrera Cortés (2008), Ávila Barrientos (2014), Quevedo Pacheco (2016) e Romero Lamorú, Lores Lara y Cantalapiedra Bello (2019).
Outra grande marca funcionalista desses estudos se encontra na preocupação constante com a busca das variáveis explicativas do comportamento dos usuários. Trata-se dos estudos para determinação de perfil de usuários, nos quais se tenta decompor os dados encontrados (fontes mais utilizadas, grau de satisfação com os serviços, frequência de acesso ao sistema) a partir de características demográficas dos usuários, como por exemplo Hernández Salazar (2001), Frade (2004), Carvalho et al (2005), Nathansohn & Freire (2005), Guimarães (2007) e Dal’Evedove, Neves & Fujita (2014).
3. Outras abordagens de estudo de usuários
É possível identificar outras três grandes maneiras de se estudar os usuários da informação no âmbito latino-americano. Todas elas se desenvolveram a partir de alguma crítica ou discordância em relação aos estudos de usuários de abordagem funcionalista, aliando-se a diferentes tradições de pensamento social ou informacional.
O primeiro desses três grandes campos de estudos se desenvolveu na América Latina - e consistiu, talvez, na maior originalidade da América Latina em relação ao cenário mundial. Trata-se uma perspectiva crítica de estudos de usuários da informação, frequentemente baseada numa perspectiva epistemológica marxista, que marcou uma ruptura no modo de estudar e examinar o objeto de estudo da área, em dois níveis: tanto o “para onde olha”, isto é, os temas estudados; como o “como olha”, isto é, a postura epistemológica particular dos pesquisadores dessa perspectiva.
São estudos que, num primeiro momento, se distinguiram pelos seus temas: inclusão e exclusão informacional, governo eletrônico, cidadania, animação cultural, extensão bibliotecária, entre outros. Essa distinção é útil e permite já, por si própria, formar toda uma agenda para os estudos de usuários. Afinal, os estudos de usuários, tradicionalmente, se desenvolveram em torno de problemáticas de avaliação, de produção de indicadores de uso, de planejamento e de gestão (como apontado no tópico anterior). Essas problemáticas estão diretamente relacionadas com posturas epistemológicas positivistas e funcionalistas acerca do comportamento do ser humano e da sociedade. A postura crítica se constrói exatamente na crítica a essas abordagens, reivindicando uma outra maneira de estudar o ser humano, na qual ocupam papel central a historicidade dos fenômenos humanos (ou seja, contra a busca de leis do comportamento humano), a totalidade destes fenômenos (contra o isolamento da ação humana em apenas uma dimensão como, por exemplo, a informacional) e a sua tensionalidade (a existência de grupos com interesses antagônicos é o que define a realidade humana). A busca por uma fundamentação crítica para os estudos de usuários se deu com a mudança do ponto de partida de tais estudos (a realidade institucional, seja a biblioteca, seja a organização onde os usuários trabalham) e também com a crítica ao fato de tais estudos ignorarem as dinâmicas sociais de dominação e poder (Lima, 1994).
Em lugar de estudar os usuários da informação, como clientes que, a partir de um estímulo externo, procuram um sistema de informação para satisfazer suas necessidades de informação, a perspectiva crítica propõe a ideia de uma práxis informacional, entendendo por práxis um modo de agir no qual o agente e o produto de sua ação são ligados, produzindo os modos de vida de uma sociedade e a distribuição de poder nela. Ao se colocar o conflito como elemento estruturante da realidade humana, a agenda de pesquisa muda. Passa-se a problematizar não mais o que o usuário quer ou seu grau de satisfação com a biblioteca e os serviços de informação, mas as diferenças estruturais no acesso à informação, à possibilidade de estruturação de necessidades de informação, entre outros. Mais do que a adequação e o bom funcionamento de bibliotecas e sistemas de informação existentes, discutem-se as contradições na posse e condições de uso da informação, questionando-se as prioridades das políticas informacionais.
Assim, as temáticas da inclusão social, inclusão digital, cidadania e democratização da informação são muito frequentes nessa perspectiva de estudos, como evidenciam trabalhos como os de Lucas (2002), Silveira (2003), Serrano Santoyo & Martínez Martínez (2003), Sorj (2003). Dowbor (2004), Felicié Soto (2006), Laipelt, Moura & Caregnato (2006), Gonzáles Zabala & Sánchez Torres (2013), Jaramillo (2013), Sabelli (2014), Silva & Olinto (2015), Ramírez Castañeda & Sepulveda López (2018), Sabelli (2020) e Martínez Mancilla, Mata Tapia & Vega (2021). Em lugar de treinamento ou educação de usuários, a perspectiva crítica desenvolve a ideia de ação cultural (Flusser, 1983), leitura como prática cultural (Maina & Angelozzi, 2022) e informação como cidadania (Álvarez Zapata, 2005).
A segunda das três tendências apontadas nesse tópico é a dos estudos em comportamento informacional. Essa expressão foi criada pelo pesquisador inglês Tom Wilson e foi bastante utilizada por diversos pesquisadores europeus e estadunidenses na década de 1980, dentro de um grande movimento que ficou conhecido como “abordagem alternativa” ou abordagem “centrada no usuário”, em contraste com a abordagem anterior, chamada de “tradicional” ou “centrada nos sistemas”.
O impacto dessa abordagem pode ser evidenciado em uma pesquisa sobre estudos de usuários na Ibero-América durante o período de 2010 a 2020, na qual González-Teruel, Araújo & Sabelli identificaram 121 estudos empíricos de usuários da informação. Eles foram analisados em termos dos modelos teóricos utilizados. Os modelos mais utilizados, encontrados nos estudos analisados, foram: Information behavior models de Wilson, Information use model de Choo, Information search process de Kuhlthau, Information seeking model de Ellis, Sense-making de Dervin, Information needs model (NEIN) de Calva-González (que será analisado em um artigo específico neste volume especial de Informatio), Anomalous state of knowledge de Belkin, Everyday life information seeking (ELIS) de Savolainen e Model of information seeking de Krikelas. Ainda que a abrangência do estudo tenha sido um pouco maior do que o deste artigo (a Ibero-América, mais ampla que a América Latina), ele é bastante elucidativo de como os modelos de comportamento informacional anglo-saxões foram adotados nas pesquisas latino-americanas: dos modelos teóricos utilizados nos estudos analisados, apenas um é de origem latino-americana (o de Calva González) e um de práticas informacionais (o de Savolainen). O modelo sobre Necessidades de Informação (NEIN) criado por Calva González, da Universidad Nacional Autónoma de México, não será apresentado neste texto pois será abordado em um artigo específico deste fascículo. Todos os demais modelos encontrados são de comportamento informacional e de origem anglo-saxã. Mais do que isso, essa pesquisa demonstrou que, em grande medida, os estudos em comportamento informacional na América Latina são, em sua maioria, aplicações de modelos estrangeiros ao estudo da realidade empírica local.
Os estudos chamados de tradicionais (de natureza funcionalista) examinam os usuários a partir de suas características sociodemográficas e nas interações com os sistemas de informação. A perspectiva do comportamento informacional parte da constatação de que os atributos demográficos (sexo, idade, raça, religião, renda familiar) não são indicadores potenciais do comportamento de busca e uso da informação, mas sim os modos como as pessoas sentem faltam de informação, isto é, percebem sua lacuna cognitiva. É em torno da centralidade dessa dimensão que se desenvolvem tais estudos.
Os estudos de comportamento informacional tiveram uma ampla disseminação em praticamente todos os países da América Latina, incidindo sobre uma imensa variedade de realidades empíricas. Alguns exemplos de estudos e países são o estudo de Henríquez-Coronel, Andrade & Moreno (2018) no Equador; de Romanos-de-Tiratel (2000), Corda & Albornoz (2014) e de Fumagallo (2014) na Argentina; de Sabelli (2012) e Sabelli & Bercovich (2018) no Uruguai; de González-Rivero & Santana-Arroyo (2008), Valero-Rivero & Ponjuán-Dante (2014) e de González Guitián et al (2022) em Cuba; de Gómez-Restrepo (2012) e Tinoco Carrillo & Fino-Garzón (2021) na Colômbia; de Castillo Barrera (2017) e de Hernández Salazar (2019) no México; e de Berti, Bartalo & Araújo (2014), Figueiredo & Paiva (2015), Silva & Gasque (2016), Tabosa & Pinto (2016), Ramalho, Hamad & Guimarães (2016), Cavalcante et al (2017) e Santana & Lima (2019), no Brasil.
A última das três grandes perspectivas desenvolvidas neste tópico é a das práticas informacionais, a partir do trabalho pioneiro de Reijo Savolainen na criação desse conceito na década de 1990. Essa perspectiva foi trabalhada depois por seus colegas finlandeses e por pesquisadores da Suécia e Canadá, entre outros países. Essa perspectiva começou a ser desenvolvida na América Latina nos primeiros anos do século XXI e, como apontado no estudo de González-Teruel, Araújo & Sabelli (2022), utilizou como principais referenciais autores das ciências humanas e sociais como Erving Goffman, Pierre Bourdieu, Michel de Certeau, e Lev Vygostky.
A concepção central dessa perspectiva vem da etnometodologia, teoria que entende que o significado dos objetos do mundo sempre já se acha realizado nas atividades corriqueiras da vida cotidiana; que as pessoas agem com base nesses significados; e que tais significados são construídos socialmente, por meio das interações sociais (como postulado pela teoria do interacionismo simbólico). Por isso os estudos em práticas informacionais rejeitam a perspectiva objetivista da abordagem funcionalista, assim como a perspectiva subjetivista do modelo cognitivo, propondo, em seu lugar, uma perspectiva intersubjetiva de pesquisa. Ainda não é uma tendência tão difundida como a de comportamento informacional (Rocha, Gandra & Rocha, 2017), mas já vem sendo desenvolvida em vários países da América Latina, como evidenciam estudos como os de Sánchez-Navarro & Aranda (2011), Terto & Sirihal Duarte (2014), Vesga Vinchira (2019), Santos & Kafure (2019), Schleifer (2020), Souza, Moraes & Valentim (2020), Costa & Furtado (2021) e Silva & Zattar (2022). Importantes compilações de estudos empíricos usando o modelo de práticas informacionais são as de Alves, Brasileiro, Côrtes & Melo (2020), Tanus, Rocha & Berti (2021) e Araújo (2022).
4. Tendências contemporâneas
Nos últimos anos, vêm se desenvolvendo algumas tendências de estudos de usuários da informação, que buscam mesclar contribuições das diferentes perspectivas teóricas apresentadas até agora para o enfrentamento de novas questões e realidades informacionais que vêm se apresentando ao campo.
Uma das tendências é a de estudos de usabilidade, que trazem o mesmo modelo teórico dos tradicionais estudos de uso da informação para o ambiente das tecnologias digitais. A usabilidade é um atributo dos sistemas de informação, mas que é descoberto e analisado sempre a partir das experiências concretas de interação dos usuários com os sistemas de informação (Dias, 2003; Nascimento, 2003; Böhmerwald, 2003). Mais recentemente, essa linha se aproximou de conceitos oriundos da arquitetura da informação e da user experience, como nos estudos de Aveleira & Silva (2011) e Rodríguez Castilla, González Hernández & Pérez González (2016).
Numa outra linha, o ambiente digital também inspirou a realização de estudos voltados para as experiências dos sujeitos, principalmente nas redes sociais. Neste caso, a aproximação maior se deu justamente com a perspectiva das práticas informacionais, a partir de métodos de pesquisa inspirados na netnografia. Alguns exemplos são os estudos de Ferreira (2011), de Arias-Robles (2014), de Villaseñor Rodríguez (2015) e de Laudano et al (2016).
Outra tendência importante é o desenvolvimento de estudos de usuários de arquivos. Embora, num primeiro momento, se poderia pensar tratar-se apenas de uma nova realidade empírica a ser estudada (um outro sistema de informação), aos poucos se foi realizando também o diálogo com uma outra área científica, a arquivologia. O contato com a Arquivologia trouxe uma renovação com o desenvolvimento de novas temáticas de estudo (memória, políticas de informação, transparência), o que convocou para os estudos o aporte de outras matrizes teóricas. Inicialmente, os estudos de usuários de arquivo se filiaram à perspectiva instrumental da abordagem funcionalista, como por exemplo os de Acosta et al (2006), Jaén García (2006) e Rubio Hernández (2006). Posteriormente, as problemáticas arquivísticas conduziram ao contato com tendências críticas, cognitivas e socioculturais, entre os quais podem ser destacadas as pesquisas de Campos Ramírez (2009), Barros & Neves (2011), Brasileiro, Azevedo & Freire (2014), Corrêa & Rozados (2016) e Andaur Gómez (2018).
Uma outra frente de estudos mais recente vem se construindo em torno da ideia de mediação da informação. Embora focada na atuação do profissional da informação, essa tendência dialoga fortemente com os estudos de usuários, na medida em que conhecer o usuário, entender suas necessidades, seus contextos e suas dinâmicas é fundamental para o exercício da atividade de mediação (Gomes, 2014). Essa linha de estudos é bastante diferente daquela promovida pela perspectiva instrumental funcionalista, pois o objetivo não é levantar dados de usuários para diagnósticos, mas sim considerar os usuários como sujeitos ativos, em suas dimensões políticas, históricas, culturais e outras. Alguns exemplos são os estudos de Pirela Morillo (2006), Giraldo & Román Betancur (2011), Oliveira Del Massa & Almeida Jr (2018), Almeida & Farias (2019), Elen Righetto, Brito & Vitorino (2022).
No âmbito da biblioteconomia e ciência da informação, existe uma subárea chamada competência em informação (ou alfabetização informacional), que surgiu nos Estados Unidos, em 1974, a partir da noção de information literacy. Essa área sempre foi um campo distinto dos estudos de usuários da informação, já que seu foco de estudo é o estabelecimento de determinados padrões ou metas de como as pessoas devem utilizar a informação, e o desenvolvimento de estratégias para desenvolver, nos usuários, as competências mais adequadas para o atingimento de tais padrões. Contudo, em diversos momentos, foram realizadas pesquisas que buscaram entender os usuários da informação, como uma maneira de se pensar numa adequação dos critérios de competência ou em formas específicas de desenvolvimento das competências junto a determinados públicos. Alguns estudos nessa linha são os de Lanzi et al (2013), Moreira & Ribeiro (2020) e Anguita-González & López Soto (2022).
Uma vertente que vem marcando presença nos últimos anos é de natureza mais teórica. São estudos voltados para o desenvolvimento do conceito de sujeito informacional, em oposição ao conceito de usuários da informação. A ideia que sustenta esse movimento é a de que a expressão “usuários” limita a compreensão na medida em que foca os indivíduos em sua interação com um serviço ou sistema específico, ou com vários serviços ou sistemas - mas, nesse movimento, sempre os serviços e sistemas têm a primazia no próprio delineamento de quem são as pessoas que se relacionam com a informação. O uso da expressão “sujeito” vem sendo defendida em utilizada por pesquisadores que buscam uma abordagem mais complexa e mais ampla das pessoas que usam a informação, ressaltando tanto seu caráter ativo como suas distintas dinâmicas informacionais. Não se trata exatamente de uma nova abordagem, mas sim de uma proposta mais geral a ser considerada e adotada pelo campo, em suas distintas perspectivas. Alguns dos trabalhos nessa linha são os de Rendón Rojas & García Cervantes (2012), Rabello (2017), Cruz & Araújo (2020) e Tanus, Berti & Rocha (2022).
Há, ainda, uma linha de pesquisa que vem se construindo fortemente em todos os âmbitos das ciências humanas e sociais, nas últimas décadas, e que mais recentemente tem se apresentado na ciência da informação e, mais especificamente, nos estudos de usuários da informação. Sua origem remonta ao desenho de propostas de pesquisa científica a partir dos movimentos feminista, negro e LGBTQIA+. Mais do que apenas apontar uma nova realidade empírica a ser estudada (as mulheres, os negros e afrodescendentes, os homossexuais), tais propostas têm discutido a própria constituição do campo científico, isto é, apontado como as próprias práticas de fazer ciência muitas vezes são contaminadas por conceitos e ideias patriarcais, misóginas, racistas e homofóbicas. Assim, se trata de uma desconstrução do próprio fazer científico, do desenho de maneiras novas de fazer as perguntas e construir os problemas de pesquisas. Especificamente no âmbito da América Latina, tais tendências se aliaram às perspectivas do pensamento decolonial e das epistemologias do sul, questionando também o lugar da América Latina no cenário geopolítico mundial, bem como problematizando questões sobre justiça epistêmica. Alguns exemplos são os trabalhos de Oliveira & Aquino (2012), Díaz Jatuf (2017), Morán (2019), Rueda Romero (2022) e Eufrásio & Sousa (2022).
Por fim, uma última tendência que vem sendo observada nos estudos de usuários é a realização de pesquisas ligadas às questões recentes da desinformação. Essa temática ganhou bastante evidência a partir de fatos como a eleição de Donald Trump e a votação do Brexit no Reino Unido, eventos de 2016, e da pandemia de Covid-19 no ano de 2020, a ponto de a Organização Mundial da Saúde ter cunhado a expressão “infodemia” para caracterizar o momento atual, de grande produção de informações, muitas delas falsas, tornando difícil para as pessoas comuns diferenciarem o que é informação verdadeira e o que é informação falsa. Diversos estudos empíricos vêm sendo realizados, como por exemplo os de Espinoza Portilla & Mazuelos Cardoza (2020) e Goulart & Kafure (2020).
5. Considerações finais
O mapeamento realizado neste artigo demonstra a vitalidade e a abrangência dos estudos de usuários na América Latina, ainda que, no cenário internacional, tal produção não tenha visibilidade (Vilchez-Román 2005; Herrero-Solana & Liberatore 2008). É possível perceber que, em parte, a construção teórica das pesquisas latino-americanas consiste na aplicação de teorias e modelos produzidos em outros países, no estudo das realidades empíricas locais. Mas, em muitos outros casos, se pode perceber a construção de perspectivas originais, às vezes de uma forma quase completa (como na perspectiva crítica e na recente tendência decolonial), outras vezes em apropriações originais de modelos produzidos em outros países, como, por exemplo, nas aproximações entre práticas informacionais e o conceito de cultura. De toda forma, considerando-se as várias tendências e abordagens de estudo realizadas na América Latina, é possível dizer que uma de suas principais características, em comparação com o cenário mundial, é justamente o fato de privilegiar aproximações culturais e antropológicas nos estudos de usuários, em detrimento da tendência internacional, dominada por Estados Unidos e Europa, de estudos mais técnicos, gerenciais e centrados nos indivíduos e nos sistemas de informação.