O HIV/aids continua a representar um problema mundial de saúde pública. No mundo, aproximadamente 37,7 milhões de pessoas viviam com a doença em 2020, sendo que nesse mesmo período foram registradas aproximadamente 680.000 mortes relacionadas à infecção (United Nations Programme on HIV/AIDS, Unaids, 2021). Nas últimas décadas, verificou-se uma importante diminuição da morbimortalidade relacionada ao HIV/aids com a introdução e a disponibilidade da terapia antirretroviral (TARV), transformando a infecção em uma condição crônica com possibilidades de controle (Drain et al., 2020; Seidl & Remor, 2020).
A TARV tem como objetivo modular a progressão do HIV por meio da supressão de sua carga viral plasmática, melhorando a reconstituição imunológica da pessoa vivendo com HIV (PVHIV) e impedindo a transmissão do vírus (Rodger et al., 2019). Contudo, a eficácia do tratamento depende necessariamente da adesão à TARV por toda a vida (Carvalho et al., 2019). A adesão a um medicamento envolve sua tomada na dose e frequências prescritas, sendo um processo complexo, dinâmico e multideterminado que se relaciona diretamente com o contexto econômico e sociocultural em que PVHIV está inserida (Mendelsohn et al., 2014).
Progressos recentes têm sido observados no enfrentamento da epidemia, como a recomendação de testes regulares para o HIV e o protocolo denominado Tratamento como Prevenção (TasP), configurando-se como uma das medidas mais relevantes no controle da transmissão do vírus (Sabapathy et al., 2022). Outra importante resposta ao HIV/aids é o modelo conceitual da cascata de cuidados contínuos da PVHIV, usado para monitorar e acompanhar a desafiadora meta 95/95/95 da Unaids, na qual os países devem procurar atingir em 2030: 95 % de PVHIV diagnosticadas; 95 % das PVHIV diagnosticadas em uso de TARV e 95 % das PVHIV em TARV com supressão viral. Esses indicadores foram de 84/87/90 em 2020. A cascata de cuidados também permite a identificação de lacunas e oportunidades para intervenções específicas para melhorar a retenção nos serviços e os resultados em saúde nesse campo, apontando para a necessidade do enfrentamento das vulnerabilidades que perpassam a prevenção e o viver com o HIV/aids (Sabapathy et al., 2022; Unaids, 2015; Unaids, 2021).
Observa-se que a epidemia concentra-se desproporcionalmente em alguns segmentos populacionais, as chamadas populações-chaves: profissionais do sexo, homens que fazem sexo com homens, pessoas transgênero, pessoas que usam drogas, pessoas em privação de liberdade e suas parcerias sexuais, que se encontram em maiores vulnerabilidades ao HIV/aids, que estavam presentes antes e que permanecem após o diagnóstico, dificultando o acesso e a prevenção e ao tratamento, bem como sua manutenção, além de prejuízos na saúde e no bem-estar (Unaids, 2019).
Para compreender a adesão aos antirretrovirais, é necessário um olhar sistêmico: a vivência do HIV/aids é atravessada por vulnerabilidades estruturais, culturais, políticas, sociais, psicológicas, por processos estigmatizantes e discriminatórios, desigualdades sociais e de gênero, entre outras, que têm grande repercussão na qualidade de vida dessa população, que precisa constantemente adaptar-se e lidar com os desafios de sua condição. Nesse contexto, os recursos de resiliência ganham destaque (Carvalho et al., 2019; Carvalho et al., 2022; Dulin et al., 2018; Seidl & Remor, 2020).
A resiliência encontra-se entre os fatores que podem interferir na adesão à TARV (Dulin et al., 2018), pois representa um aspecto significativo que pode (ou não) ser desenvolvido pelas pessoas no itinerário terapêutico. Nesse sentido, alguns estudos têm sugerido que a resiliência pode estar associada a uma melhor adesão aos antirretrovirais e supressão viral (Dale et al., 2014).
A resiliência é compreendida como a capacidade da pessoa ou um grupo de recuperar ou enfrentar com êxito uma situação apesar das adversidades (Harrison & Li, 2018). Esse construto tem sido investigado como uma característica, um traço de personalidade, ou como um processo (Pruchno et al., 2015). Ungar et al. (2013) conceituam a resiliência em uma estrutura socioecológica, como a capacidade da pessoa de lidar de maneira adaptativa diante das adversidades e/ou de se recuperar após experiências traumáticas por meio de recursos físicos, psicológicos, sociais e culturais.
Nos estudos sobre HIV/aids, a introdução do conceito da resiliência mudou a ênfase de vulnerabilidade para fatores de proteção (Jimenez-Torres et al., 2017). Os recursos de resiliência podem proteger as PVHIV por meio da promoção de comportamentos positivos de saúde (adesão à TARV e frequência regular nos serviços de saúde), além de ajudar a pessoa no enfrentamento de vulnerabilidades e de eventos estressores relacionados ao viver com HIV, melhorando, assim, sua saúde integral e comportamentos de saúde (Dulin et al., 2018; Harper et al., 2014; Jimenez-Torres et al., 2017).
Dulin et al. (2018), ao revisarem a definição e o estudo dos recursos de resiliência em PVHIV, apontam lacunas significativas nesse campo da pesquisa, havendo necessidade do fomento de pesquisas sobre esse tema de modo que seus resultados sejam incorporados em contextos clínicos. Devido à importância que assume no processo de atenção à saúde, mostra-se importante estudar o impacto da resiliência em PVHIV e sua relação com a adesão ao tratamento (Araújo et al., 2019; Dulin et al., 2018; Jimenez-Torres et al., 2017). Assim, o objetivo desta revisão integrativa de literatura foi sintetizar as evidências disponíveis sobre o papel da resiliência na adesão à terapia antirretroviral em PVHIV, a fim de que se possam delinear práticas em saúde que considerem tais relações.
Método
Tipo de estudo
Trata-se de uma revisão integrativa de literatura. A revisão integrativa caracteriza-se por ser um método de pesquisa que permite incorporar evidências na prática profissional, na medida em que reúne e sintetiza resultados de trabalhos sobre um tema ou questão, de maneira sistemática e ordenada, empregando diferentes níveis de evidência (Beyea & Nicoll, 1998). A pergunta norteadora foi: ¿Quais as evidências disponíveis na literatura sobre a relação entre resiliência e adesão à TARV em PVHIV?
Percurso de seleção dos artigos
A busca e seleção dos artigos foi realizada por dois juízes independentes em julho de 2021, utilizando nas bases de dados o filtro de data do período de janeiro de 2010 a julho de 2021. Esse recorte temporal teve por objetivo retratar os estudos da última década, permitindo o acesso a um repertório recente de publicações. Uma bibliotecária da universidade a qual os autores são vinculados auxiliou na construção da estratégia de busca, realizando testes prévios junto com os autores para definição da estratégia que melhor se adequasse ao objetivo do estudo, além de acompanhar todo o processo. Foram realizadas buscas nos indexadores eletrônicos Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs), Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PePSIC), Cumulative Index to Nursing and Allied Health Literature (CINAHL), National Library of Medicine (USA) (Pubmed), Psychology Information (PsycINFO), Scientific Electronic Library Online (SciELO), Scopus e Web of Science. Nas bases CINAHL, PsycINFO, PubMed, Scopus e Web of Science foram utilizados os seguintes cruzamentos de descritores: (resilience) AND (adherence) AND (antiretroviral) AND (HIV OR AIDS OR Acquired Immunodeficiency Syndrome), enquanto que nas bases LILACS, SciELO e PePSIC utilizou-se: (resiliência OR resiliencia OR resilience) AND (adesão OR adhesión OR adherence) AND (antirretroviral OR antiretroviral) AND (HIV OR VIH OR SIDA OR AIDS OR síndrome de imunodeficiência adquirida OR síndrome de inmunodeficiencia adquirida OR acquired immunodeficiency syndrome).
Os critérios de inclusão estabelecidos para a seleção dos artigos foram: a) artigos empíricos que identificassem a relação entre resiliência e adesão à TARV; b) artigos publicados nos idiomas inglês, espanhol ou português e c) artigos realizados com PVHIV. Foram excluídos artigos de revisão de literatura, estudos teóricos, relatos de caso, dissertações, teses, capítulos de livros, livros, consensos, suplementos ou comentários ao editor ou do editor, obituários, bem como trabalhos sobre elaboração e validação de instrumentos.
Para verificar se os artigos atendiam aos critérios de inclusão e exclusão, dois juízes independentes e com experiência na temática e no delineamento de revisão de literatura realizaram em consenso a seguinte sequência de avaliação de evidências: 1. Leitura, análise e seleção dos títulos de todos os estudos identificados; 2. Leitura, análise e seleção dos resumos dos estudos selecionados na fase anterior e 3. Leitura na íntegra, análise e seleção dos artigos finais. Caso houvesse discordância entre os revisores quanto à adequação do estudo, havia uma avaliação por um terceiro juiz. Todo processo de seleção dos artigos foi realizado utilizando-se a plataforma Rayyan (Ouzzani et al., 2016).
Após exclusão dos artigos que não cumpriram com os critérios adotados, foi realizado pelos dois juízes um fichamento do material que compôs o corpus de análise, com os seguintes dados: autores, título do estudo, ano de publicação, local de realização do estudo, número de participantes, delineamento do estudo, tipo de abordagem conceitual da resiliência, instrumentos utilizados para abordar a resiliência, medidas de adesão utilizadas, níveis de adesão e associação da resiliência e a adesão. A partir da leitura minuciosa do corpus, os dados foram organizados e discutidos em eixos temáticos, já previamente estabelecidos, visando responder à pergunta norteadora da revisão: (a) abordagem e nível da adesão; (b) abordagem da resiliência; (c) associações entre resiliência e adesão.
Resultados
A Figura 1 apresenta o fluxograma de estratégia de seleção dos estudos de acordo com o protocolo PRISMA (Galvão et al., 2015) e a Tabela 1 explicita as principais características dos estudos inseridos na amostra final. Conforme apresentado na Tabela 1, foram recuperados 14 artigos.
Com relação aos participantes, três trabalhos foram realizados com homens que fazem sexo com homens (HSH); desses, dois estudos realizaram-se com a população negra (Tan et al., 2018; Graham et al., 2018) e um estudo com HSH de um centro de saúde americano para latinos próximo à fronteira com o México (Sauceda et al., 2016). Três artigos foram realizados com mulheres (Dale et al., 2014; Fletcher et al., 2020; Kerkerian et al., 2018). Dois estudos investigaram usuários de centros de saúde públicos com recursos limitados no continente africano (Musiimenta et al., 2018; Nanfuka et al., 2018). Um trabalho se deu com a população negra e latina de baixa renda (Jaiswal et al., 2020). Um estudo foi realizado com refugiados (Mendelsohn et al., 2014). Uma pesquisa entrevistou adolescentes e jovens adultos com HIV (Chenneville et al., 2018), enquanto Chongo et al. (2020) investigaram homens nativos canadenses. Wen et al. (2020) entrevistaram usuários de serviços de saúde de uma cidade chinesa e Seidl e Remor (2020) abordaram pessoas em acompanhamento médico e psicossocial em um hospital brasileiro.
Ainda conforme a Tabela 1, verifica-se que foram recuperados seis estudos quantitativos, sete qualitativos e um trabalho de métodos mistos. A categorização do corpus é apresentada a seguir em três temas principais:
1) Abordagem e nível da adesão
Em relação à abordagem da adesão à TARV, oito pesquisas utilizaram o autorrelato sobre o uso da medicação como medida da adesão, empregado por meio de questionários (Dale et al., 2014; Fletcher et al., 2020; Mendelsohn et al., 2014) e instrumentos validados (Chenneville et al., 2018; Kerkerian et al., 2018; Sauceda et al., 2016; Seidl & Remor, 2020; Wen et al., 2020). Dentre os instrumentos, Wen et al. (2020) fizeram uso da Morisky Medication Adherence Scale, Seidl e Remor (2020) do Questionário para Avaliação da Adesão ao Tratamento Antirretroviral (CEAT-VIH), Chenneville et al. (2018) da BEHKA-HIV e Sauceda et al. (2016) e Kerkerian et al. (2018) empregaram a Escala Visual Analógica para Adesão-VAS. Observa-se que cinco estudos abordaram esse tema por meio de entrevistas, explorando as narrativas dos participantes sobre adesão (Chongo et al.,2020; Graham et al., 2018; Musiimenta et al., 2018; Nanfuka et al., 2018; Tan et al., 2018), enquanto Jaiswal et al. (2020) não utilizaram instrumentos para aferir a adesão, pois entrevistaram participantes que previamente apresentavam baixo engajamento na adesão e na retenção nos serviços de saúde.
Dos 14 estudos que compõem essa revisão, seis apresentaram um ponto de corte estabelecido para a adesão, que variou entre 80 % (Chongo et al., 2020), 90 % (Kerkerian et al., 2018), 95 % (Dale et al., 2014; Fletcher et al., 2020; Mendelsohn et al, 2014) e 100 % (Wen et al., 2020). Já o grau de adesão encontrado foi informado por seis estudos (Dale et al., 2014; Fletcher et al., 2020; Kerkerian et al., 2018; Mendelsohn et al., 2014; Sauceda et al., 2016; Seidl & Remor, 2020), sendo que a menor adesão aferida foi de 76,5 % em uma pesquisa realizada no Estados Unidos (Dale et al., 2014), enquanto o maior grau de adesão foi de 91,6 % em um estudo também realizado no mesmo país (Sauceda et al., 2016) e de 90 e 91 % em um trabalho realizado no Quênia e na Malásia respectivamente (Mendelsohn et al., 2014).
2) Abordagem da resiliência
Os artigos analisados trataram a resiliência sob diferentes abordagens conceituais. Essas abordagens, bem como os instrumentos de medida da resiliência empregados, foram sumarizadas na Tabela 2 T3.
Mendelsohn et al. (2014), Chenneville et al. (2018), Tan et al. (2018), Graham et al. (2018), Jaiswal et al. (2020), Chongo et al. (2020) e Fletcher et al. (2020) abordaram resiliência como um processo. Destaca-se que Chenneville et al. (2018) trazem em seu trabalho processos de resiliência, em que essa pode ser abordada como biológica, comportamental, social e comunitária. Em cinco pesquisas a resiliência foi definida como uma característica da pessoa que lhe permite lidar com as adversidades (Dale et al., 2014; Kerkerian et al., 2018; Sauceda et al., 2016; Seidl & Remor, 2020; Wen et al., 2020). Já Nanfuka et al. (2018) e Musiimenta et al. (2018) abordaram a resiliência como a capacidade da PVHIV superar adversidades e sustentar a adesão ao tratamento, nesses dois estudos e no de Chenneville et al. (2018) a adesão aos antirretrovirais foi uma indicadora de resiliência.
Com relação aos instrumentos empregados para abordar resiliência (Tabela 2), sete estudos utilizaram entrevistas (Chongo et al., 2020; Graham et al., 2018; Jaiswal et al., 2020; Mendelsohn et al., 2014; Musiimenta et al., 2018; Nanfuka et al., 2018; Tan et al., 2018). Chongo et al. (2020) além das entrevistas, fizeram uso de grupo focal e Nanfuka et al. (2018) de conversas e observação dos participantes. Dentre os estudos que empregaram instrumentos validados, Dale et al. (2014), Sauceda et al. (2016), Seidl e Remor, (2020) e Wen et al., (2020) usaram a Connor Davidson Resilience Scale - CD - RISC, Kerkerian et al. (2018) utilizaram o Resilience Scale - RS10 e Fletcher et al. (2020) a Brief Resilience Scale. Já Chenneville et al. (2018) utilizaram a carga viral como parâmetro para resiliência biológica e a adesão à TARV para a resiliência comportamental.
3) Associações entre resiliência e adesão
Observa-se que nos 14 estudos analisados a resiliência esteve envolvida no processo de adesão, sendo que 11 demonstraram que a resiliência esteve associada a uma melhor adesão à TARV ou influenciou no envolvimento com o tratamento e com a adesão (Chongo et al., 2020; Dale et al., 2014; Fletcher et al., 2020; Graham et al., 2018; Jaiswal et al., 2020; Kerkerian et al., 2018; Mendelsohn et al., 2014; Sauceda et al., 2016; Seidl & Remor 2020; Tan et al., 2018; Wen et al., 2020). Já em três pesquisas a adesão aos antirretrovirais foi uma indicadora de resiliência (Chenneville et al., 2018; Musiimenta et al., 2018; Nanfuka et al., 2018). Esses achados serão melhor discutidos a seguir.
Discussão
Esta revisão integrativa de literatura explorou o papel da resiliência na adesão à TARV em PVHIV. A análise de uma década de produção nesse campo demonstrou um aumento dos estudos a partir de 2018, sendo que esta tendência pode estar relacionada ao acúmulo teórico recente sobre a infecção e as novas tecnologias de prevenção surgidas nos últimos anos, em especial aquelas estruturadas a partir do uso da TARV (Rodger et al., 2019; Sabapathy et al., 2022).
O TasP, a cascata de cuidados para o HIV e as metas da Unaids levaram a um aumento do número de pessoas em tratamento (Brito & Seidl, 2019; Seidl & Remor, 2020), além de fomentar o acompanhamento e à investigação dos indicadores da resposta mundial à pandemia e dos fatores de vulnerabilidade e de proteção para prevenção e enfrentamento do HIV/aids. Contudo, pesquisas sobre o tema ainda são insipientes na literatura nacional e internacional (Araújo et al., 2019; Brito & Seidl, 2019; Dulin et al., 2018; Jimenez-Torres et al., 2017). Esses autores apontam para a falta de literatura sobre resiliência em contextos de doenças crônicas, principalmente em relação ao HIV/aids e associados ao impacto desse constructo nos cuidados em saúde, na saúde física e na progressão da doença.
Houve variações nos grupos de participantes dos estudos revisados. A maioria dos estudos foram realizados com populações expostas a múltiplas vulnerabilidades, como por exemplo, desigualdades sociais, étnicas, raciais, de gênero e de processos estigmatizantes, além da própria vivência do HIV. A literatura destaca que existem diferenças na maneira como a adesão à TARV e a resiliência se apresentam entre populações e contextos de PVHIV, permanecendo um desafio sustentar a adesão em cenários com realidades sociais e estruturais diferentes (Lacombe-Duncan et al., 2020; Mendelsohn et al., 2014; Nanfuka et al., 2018). No geral, a infecção pelo HIV afeta desproporcionalmente grupos minoritários e economicamente desfavorecidos, sendo importante o estudo da resiliência com essas populações, que precisam de estratégias especificas para prevenção do HIV e de intervenções para o enfrentamento da doença (Chenneville et al., 2018; Kerkerian et al., 2018).
Segundo a Unaids (2021), em 2020, 1,5 milhões de novas infecções por HIV ocorreram predominantemente entre as populações-chave, seus parceiros e suas parceiras sexuais, correspondendo a 65 % das infecções. Contudo, esses grupos populacionais permanecem invisibilizados, distantes e aos serviços de saúde para HIV, como pode ser corroborado na presente revisão.
As desigualdades existentes no acesso e adesão ao tratamento são decorrentes de políticas públicas e ações excludentes ou inexistentes. As vulnerabilidades apoiam na experiência de invisibilidades social, que por sua vez está relacionada ao estigma, ao preconceito e à discriminação, que leva a um intenso sofrimento psicossocial (Unaids, 2019). Investigar o papel da resiliência individual e das comunidades na superação dos resultados adversos em saúde e de barreiras sociais, em especial em pessoas que enfrentam adversidades e estressores significativos é prioridade para saúde pública mundial (Fletcher et al., 2020; Graham et al., 2018; Kerkerian et al., 2018; Nanfuka et al., 2018; Tan et al., 2018).
Nesta revisão, foi possível perceber variações nas taxas de adesão entre grupos populacionais, inclusive dentro de um mesmo país, como por exemplo, nos Estados Unidos, em que foram realizados estudos com PVHIV com baixa adesão (Jaiswal et al., 2020) e pesquisas que encontraram taxas médias e altas de adesão. Dale et al. (2014) aferiram uma adesão de 76,5 % em mulheres vivendo com HIV, enquanto Sauceda et al. (2016) obtiveram uma adesão de 91,6 % em sua pesquisa com HSM latinos. Altas taxas de adesão também foram encontradas em países em desenvolvimento. Mendelsohn et al. (2014) verificaram entre 90 e 91 % de adesão em refugiados do Quênia e da Malásia. Esta variabilidade nas taxas de adesão além de demonstrar o caráter heterogêneo da pandemia por HIV/aids e consequentemente da adesão aos antirretrovirais, o que representa um grande desafio para saúde pública, remete para a complexidade da avaliação da adesão à TARV, haja vista que não há uma medida padrão ouro para adesão, o que pode dificultar a comparação dos desfechos entre os estudos (Carvalho et al., 2019).
Todos os estudos analisados trouxeram a conceituação de resiliência, mas sob diferentes enfoques. De maneira geral, destacaram que a resiliência permite a pessoa superar circunstâncias potencialmente traumáticas e adaptar-se de maneira positiva a condições adversas. Alguns estudos abordaram resiliência como processo, outros como características da pessoa. Para Pruchno et al. (2015) há um debate contínuo envolvendo a natureza da resiliência, ora como traço de personalidade, ora como um processo dinâmico. Há críticas crescentes sobre a definição de resiliência exclusivamente como um fenômeno individual, pois assim se ignora o contexto social e os sistemas sociais nos quais a resiliência pode ocorrer. No contexto do HIV/aids, perpassado por significativas vulnerabilidades, tal abordagem poderia contribuir para a culpabilização da PVHIV e aumento do estigma relacionado ao adoecimento, havendo o risco de se perder o olhar para os múltiplos determinantes em saúde que atravessam a existência dessa população (Dulin et al., 2018; Harrison & Li, 2018; Unaids, 2019).
Neste cenário, Dulin et al. (2018) exploram a resiliência como recurso que promove a adaptação psicológica, comportamental e/ou social positiva diante de estressores e adversidades. Logo, tais recursos protegeriam a saúde da PVHIV por meio da promoção de comportamentos positivos em saúde e ao permitir a ela lidar de maneira positiva com as adversidades do viver com HIV. Dentre os recursos de resiliência, a literatura aqui recuperada refere à autoeficácia, à capacidade de enfrentamento positivo junto às adversidades, ao enfrentamento religioso positivo, ao otimismo, à esperança, à autocompaixão, à resistência, ao amor compassivo, à autoestima, às crenças de controle e solução de problemas, ao bom relacionamento com os profissionais e serviços de saúde e ao apoio e suporte social.
Alguns estudos revisados conceituaram a resiliência como a capacidade da PVHIV sustentar à adesão ao tratamento (Chenneville et al., 2018; Musiimenta et al., 2018; Nanfuka et al., 2018). Dentre esses trabalhos, Chenneville et al. (2018) abrangem os processos de resiliência como biológicos, cognitivos, comportamentais, sociais e comunitários. Harper et al. (2014) também utilizaram essa definição e evidenciaram em sua intervenção com mulheres trans adolescentes e jovens adultas vivendo com HIV que os processos de resiliência incluíamos processos cognitivos promotores de saúde, a adoção de práticas comportamentais saudáveis e a mobilização do apoio social. Para Hussen et al. (2017) a resiliência cognitiva e a comportamental associam-se a fatores psicossociais promotores de saúde. Ainda em termos conceituais, também emergiu a definição do constructo como envolvimento no cuidado em saúde (Jaiswal et al., 2020; Tan et al., 2018), em uma acepção que permitiria a adaptação e o manejo de elementos associados ao itinerário terapêutico.
Acerca dos instrumentos de testagem, observa-se que foram empregadas escalas gerais de resiliência que não foram desenvolvidas ou adaptadas para a condição da PVHIV. Dulin et al. (2018) pontuam a importância de medidas de resiliência voltadas para PVHIV que capturem esse constructo não apenas em nível individual, mas na sua complexidade e multiníveis. Brito e Seidl (2019) relataram sobre a dificuldade de encontrar instrumentos validados de resiliência para PVHIV no Brasil, o que demonstra uma lacuna significativa no campo da pesquisa sobre resiliência e a infecção pelo HIV. A utilização de instrumentos de base qualitativa, a exemplo das entrevistas, foi referida como adequada em um contexto complexo, permitindo maior flexibilidade e aprofundamento (Jimenez-Torres et al., 2017; Pruchno et al., 2015).
Todos os trabalhos analisados reconhecem que a resiliência pode modular a capacidade da pessoa de lidar com os estressores do viver com HIV e os seus cuidados em saúde, sendo que 11 estudos demonstraram que a resiliência esteve associada a uma melhor adesão à TARV ou influenciou no envolvimento com o tratamento e com a adesão. Ao se pensar na soropositividade, a resiliência permite que as PVHIH superem barreiras psicológicas, sociais e econômicas para aceitar sua condição, prevenindo os impactos da doença e desenvolvendo seu bem-estar e qualidade de vida, mas reitera-se que a resiliência deve ser compreendida como um fenômeno complexo, dinâmico, construído a partir da relação entre pessoa e seu contexto social (Brito & Seidl, 2019; Jimenez-Torres et al., 2017). O estudo de Nanfuka et al. (2018) demonstrou que mesmo com várias barreiras, os participantes mantiveram a adesão à TARV, recorrendo aos recursos de suas redes sociais para continuarem o tratamento, o que reitera a importância da rede de apoio social na promoção da resiliência entre PVHIV em ambientes com recursos limitados (Dulin et al., 2018; Nanfuka et al., 2018; Ungar et al., 2013).
O estudo de Sauceda et al. (2016), com HSH latino-americanos vivendo com HIV, evidenciou que pessoas com histórico de abuso sexual na infância relatavam maiores sintomas depressivos e pior adesão, principalmente quando não conseguiam lidar com o evento estressor, mas conforme sua resiliência se fortalecia, conseguiam lidar melhor com a situação traumática e sua adesão aos antirretrovirais aumentava. A resiliência pode ser desenvolvida ou reforçada e depende de fatores sociais e influências ambientais e que os processos de resiliência ocorrem quando indivíduos encontram uma situação estressora e tem acesso ou possuem condições protetivas que os isolam contra efeitos negativos desse estresse (Harper et al., 2014). Chongo et al. (2020) advertem, que embora, alguns estudos postulem que a resiliência aumenta com a exposição exponencial a uma experiência traumática, este pressuposto precisa ser compreendido com parcimônia para não se banalizar e romantizar o processo de resiliência, haja vista embora um trauma seja sempre prejudicial e traga sofrimento, nem todos que o vivenciam desenvolvem uma psicopatologia e/ou se tornam mais resilientes.
A introdução do conceito da resiliência tem trazido um novo panorama para os estudos sobre HIV/aids: o olhar para os fatores de proteção, reconhecidamente associados a desfechos positivos em saúde (Brito & Seidl, 2019; Jimenez-Torres et al., 2017). Ao se pensar em estratégias para o fortalecimento dos recursos de resiliência, é importante considerar a complexidade desse fenômeno, a multiplicidade de elementos a que está relacionado e os diversos contextos culturais envolvidos. A partir da síntese das evidências disponíveis na literatura, recomenda-se a sua inserção de modo mais sistemático nos protocolos de pesquisa e de cuidado em saúde, ampliando o rol de conhecimentos para delineamentos futuros.
Considerações finais
A revisão de literatura indicou que poucos estudos avaliaram a relação entre resiliência e adesão, além de uma diversidade de abordagens para a resiliência e uma escassez de instrumentos validados desse constructo voltados para PVHIV, o que se apresenta como uma significativa lacuna nessa temática. Observa-se que os trabalhos analisados reconhecem que a resiliência pode modular a capacidade da pessoa de lidar com os estressores do viver com HIV e os seus cuidados em saúde, evidenciando a importância da resiliência neste contexto e a necessidade de ações baseadas em evidências nos serviços de saúde para o aprimoramento da adesão aos antirretrovirais, com foco no fortalecimento da resiliência. Assim, reforça-se que o papel da resiliência nesse contexto é o de fortalecer a adesão, o que pode conduzir a melhores desfechos em saúde. Destaca-se que essa síntese foi produzida a partir de poucos estudos recuperados a partir da presente revisão, salientando a necessidade de que esse tema continue a ser investigado, bem como a importância de levantamentos vindouros que recuperem evidências cada vez mais recentes e que se somem aos conhecimentos já consolidados na área.
Esta revisão também sinalizou para a importância em se estudar a resiliência e seus determinantes sociais e populacionais. Salienta-se que pesquisas que investiguem a relação entre resiliência, adesão à TARV e condições clínicas, emocionais e sociais, assim como intervenções que abordem essas dimensões contribuiriam para as áreas acadêmicas e técnicas, bem como para a população em geral. Entre as limitações do presente estudo, destaca-se que a revisão não considerou a retenção nos serviços de saúde e os desfechos clínicos, como a relação entre resiliência com a contagem de linfócitos CD4 e a carga viral do HIV. Para estudos vindouros, recomenda-se tal delimitação. Embora este estudo tenha privilegiado a estratégia da revisão integrativa sustentada no conceito da prática baseada em evidências, o que considerou apenas artigos empíricos, pode-se agregar conhecimentos advindos de outros delineamentos, a exemplo das revisões de escopo. Pelo fato de poucos estudos terem sido recuperados, a exploração do fenômeno a partir da revisão de escopo, mais exploratória, pode permitir o acesso a evidências construídas em cenários distintos e que ainda não foram publicadas, por exemplo, em fontes capturadas pelas bases/bibliotecas empregadas na presente revisão. O acompanhamento dessa literatura, atualizando perenemente as evidências disponíveis, pode contribuir para que o papel da resiliência na adesão possa ser cada vez mais amadurecido. É mister que haja um incremento dos instrumentos de medida, que devem ser cada vez mais refinados para o cotejamento de um conceito complexo e que também vem sendo problematizado no campo da saúde.