O construto forças de caráter é discutido pela Psicologia Positiva desde a década de 1990, quando um grupo de pesquisadores organizou uma relação inicial de forças, que formaram a base para uma conceituação mais completa dos traços positivos dos sujeitos (Noronha & Reppold, 2019; Park, 2009). Os pesquisadores lançaram mão de vários recursos para a obtenção da primeira relação, inicialmente fazendo uso da recuperação da produção científica já existente. Os autores Peterson e Seligman (2004) após participarem de várias conferências e seminários e estudarem sobre tradições, documentos, livros religiosos e obras da filosofia, publicaram um amplo material, internacionalmente reconhecido, no qual constavam 24 forças de caráter que se agrupam teoricamente em seis virtudes. O livro recebeu o nome de Manual de Sanidades, em uma crítica à ênfase dada até aquele momento, à investigação das patologias humanas e não ao florescimento.
Dessa maneira, as forças de caráter podem ser entendidas como atributos positivos fundamentais, os traços de personalidade positivos, para que a pessoa tenha uma vida plena e feliz (Noronha & Reppold, 2019). Park (2009) complementa tal definição definindo-as como traços singulares que podem ser expressos por pensamentos, ações, sentimentos. Recentemente, Noronha e Reppold (2021) sugeriram que a tradução mais adequada de character strengths para o português seria forças pessoais. Por esta razão, a partir deste momento, usaremos tal nomenclatura.
As forças pessoais condizem com os aspectos saudáveis da personalidade dos indivíduos sendo crucial a utilização deste construto psicológico na práxis. Elas são estáveis nos sujeitos, mas suscetíveis a serem intensificadas e precisam ser analisadas de acordo com o desenvolvimento da pessoa e o âmbito que está inserida (Reppold et al., 2021). Existem pesquisas de intervenção relacionadas às forças pessoais com resultados satisfatórias. Como na área clínica que elas promovem o aumento da autoestima, felicidade, autoeficácia; na hospitalar observou-se um crescimento da qualidade de vida e adesão ao tratamento; no contexto escolar as forças pessoais auxiliam no aumento do desempenho escolar e diminuição de situações de bullying, bem como ocorrências de sintomas associados a humor deprimido e ansiedade; no âmbito familiar contribui no entendimento das relações familiares e no aprofundamento da conscientização da dinâmica entre seus membros (Noronha & Reppold, 2019; Reppold et al., 2021). Para uma eficácia interventiva em diversos contextos com as forças pessoais se faz necessário um instrumento com qualidade teórica, técnica, científica robusta.
Com a publicação da classificação das forças pessoais, pesquisas foram realizadas com vistas a avançar nas compreensões teóricas e nas comprovações empíricas. Desta feita, instrumentos que acessassem as forças de pessoais foram construídos, sendo que, o mais recorrentemente encontrado na literatura internacional é o Values in Action (VIA; Peterson & Seligman, 2004). O VIA permitiu que pesquisas fossem desenvolvidas em muitos países como África do Sul, Croácia, Israel, Índia, Alemanha, entre outros (Noronha et al., 2015). No contexto brasileiro, com base no VIA, foi desenvolvida por Noronha e Barbosa (2016) a Escala de Forças de Caráter (EFC). Esta é composta por 71 itens que avaliam as 24 forças sendo que a escala conta com 3 itens para cada uma delas, exceto Apreciação do Belo que conta com apenas 2 itens. Cabe reiterar, que a EFC não se trata de uma adaptação do VIA, apenas o teve como referencial.
EFC é a única escala que se tem conhecimento que avalia as forças pessoais de brasileiros. Há uma versão em português do VIA-IS, no entanto, os estudos de validade realizados por Seibel et al. (2015) apontaram para algumas fragilidades. Neste estudo os autores analisaram a estrutura fatorial da versão em português brasileiro do VIA-IS. Primeiramente, usaram como método de retenção de fatores a análise paralela, que apontou para uma solução de três ou quatro fatores. Então, realizaram a Análise Fatorial Exploratória para ambas as possiblidades, agrupando os itens correspondentes a cada força pessoal. Porém, tanto na solução de três quanto na de quatro fatores, várias das forças pessoais apresentaram cargas cruzadas (cargas acima de 0,30 em mais de um fator). Os autores então optaram por considerar a solução proposta pelo método de Hull, que diferentemente da análise paralela, sugeriu a solução unifatorial para a VIA-IS, argumentando que as forças seriam todas interligadas e que, portanto, não deveriam ser divididas em virtudes. Nenhuma das soluções encontradas, acatam a divisão das forças em seis virtudes, conforme proposto originalmente por Peterson e Seligman (2004). Na realidade, os achados apontam para fragilidades psicométricas dos resultados, especialmente, no que tange as soluções multifatoriais para a escala (Seibel et al., 2015).
Em relação à EFC, foram realizadas várias investigações com vistas a buscas de evidências de validade. No tocante às evidências de validade com base na estrutura interna, por exemplo, os autores publicaram três estudos, sendo que os resultados foram distintos entre si. O primeiro deles, por não ter encontrado a estrutura teórica de seis virtudes, propôs uma interpretação unidimensional para a EFC (Noronha et al., 2015). O estudo foi realizado com fatores de segunda ordem, guiando-se por intermédio das 24 forças pessoais. No entanto, com o avanço das pesquisas, ficou elucidado que a interpretação de um escore geral de forças pessoais tinha pouca ou nenhuma utilidade.
Isto posto, os autores testaram em dois outros artigos diferentes estruturas. Noronha e Zanon (2018) em um estudo com amostra composta por 981 universitários apontaram uma solução de três fatores para a EFC (intelecto, intrapessoal e coletivismo e transcendência). Os autores argumentam que, apesar de encontrarem índices de ajuste melhores nas estruturas testadas com maior número de dimensões, a solução com três fatores era a única que fazia sentido e se sustentava do ponto de vista teórico.
Posteriormente, Noronha e Batista (2020) em um estudo com amostra composta por 1,500 universitários, identificaram, a partir de uma Análise Fatorial Exploratória, uma solução de 6 fatores para o instrumento. No entanto, a classificação teórica de Peterson e Seligman (2004) não foi replicada (ver Tabela 1). No referido estudo, diversos itens obtiveram cargas fatoriais cruzadas, de modo que os autores propuseram a alocação destes nos seus respectivos fatores, não somente a partir da carga fatorial, mas também pautados no aspecto teórico. Os itens foram distribuídos entre os seguintes fatores propostos: Forças Interpessoais (FI); Forças de Coragem (FC); Forças Teologais (FT); Forças de Humanidade (FH); Forças de Autorregulação (FA) e Forças Intelectuais (FINT).
Também foram realizados estudos com vistas à busca de evidências de validade com variáveis externas de construtos relacionados como personalidade, estilos parentais e suporte social. Os fatores de personalidade Extroversão e Socialização foram mais explicativas das forças pessoais. Quanto aos estilos parentais, as forças se associam com maiores magnitudes com a responsividade, que interpreta o afeto, envolve sensibilidade, aceitação e compromisso (Noronha & Batista, 2017, 2020; Noronha & Campos, 2018; Noronha & Reppold, 2019).
Temática recente referente às forças pessoais refere-se às diferenças de endosso entre grupos diferentes (e.g. homens e mulheres; adolescentes e adultos). Meta-análises recentes apontam que os achados dos estudos são divergentes sobre quais forças seriam predominantes entre os grupos citados (Heintz et al., 2019; Heintz & Ruch, 2022). Porém, antes de analisar eventuais diferenças, é necessário investigar se o instrumento utilizado para avaliar as forças pessoais mede o mesmo construto entre os grupos. Em outras palavras, se o instrumento é invariante entre eles (Damásio, 2013).
A análise de invariância pode ser realizada a partir de três modelos, quais sejam, (1) Configural, que indica se o número de fatores e o número de itens por fator são adequados para ambos os grupos; (2) Métrica, que indica a equivalência das cargas fatoriais dos itens entre os grupos; (3) Escalar, que indica que os interceptos (nível de traço latente necessário para endossar as categorias dos itens) são equivalentes para os grupos. Assim, caso a invariância não seja evidenciada, por exemplo, ao comparar as médias de homens e mulheres no construto, o pesquisador pode encontrar uma diferença entre os sexos explicada pelo erro de medida e não propriamente por uma diferença real do construto entre eles (Fischer & Karl, 2019; Peixoto & Martins, 2021).
Desta forma, o presente estudo conta com os seguintes objetivos: (1) testar a estrutura fatorial da EFC no modelo de 6 fatores encontrado por Noronha e Batista (2020) a partir de uma AFC, buscando evidências de validade com base na estrutura interna do construto (American Educational Research Association (AERA) et al., 2014); (2) testar a invariância da EFC entre adolescentes e adultos; (3) testar a invariância da EFC entre homens e mulheres adolescentes; (4) testar a invariância da EFC entre homens e mulheres adultos.
Método
Participantes
A amostra deste estudo foi constituída por 4,522 participantes, com idades entre 13 e 65 anos (M = 22,12; DP = 7,623) sendo que 62,7 % reportaram ser do sexo feminino. Posteriormente, para a análise de invariância da escala entre os sexos de adultos e de adolescentes a amostra foi separada em duas subamostras. A subamostra de adultos contou com 3,549 sujeitos, com idades de 18 a 65 anos (M = 23,86; DP = 7,723), sendo que 62,4 % relataram ser do sexo feminino. A subamostra de adolescentes contou com 973 sujeitos, com idades de 13 a 17 anos (M = 15,76: DP = 1,008), sendo que 63,8 % relataram ser do sexo feminino.
Instrumentos
Questionário sociodemográfico: este questionário foi elaborado para o presente estudo visando coletar informações sobre sexo e idade dos participantes.
Escala de Forças de Caráter (EFC; Noronha & Barbosa, 2016). A escala é composta por 71 afirmações com respondidas em escala Likert de cinco pontos (0 = nada a ver comigo; 4 = tudo a ver comigo). O instrumento foi desenvolvido para avaliar 24 forças pessoais, organizadas em seis virtudes, de acordo com a definição de Peterson e Seligman, (2004). Cada força é representada por três itens, exceto a força Apreciação do Belo que conta com apenas dois. O resultado é calculado a partir da soma do valor dos itens respondidos. O modelo de 6 fatores proposto por Noronha e Batista (2020) conta com bons índices de consistência interna: FI (α = 0,89); FC (α = 0,88); FT (α = 0,93; FH (α = 0,91); FA (α = 0,83) e FINT (α = 0,88).
Procedimentos
O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa. Após aprovação (Parecer n.º 365.343), foi conduzida a coleta de dados de forma presencial (caneta e papel). As aplicações ocorreram sempre nas dependências das instituições de ensino, sendo que para os menores de idades se deu em escolas e, para os maiores, em universidades. Os participantes maiores de 18 anos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Por sua vez, para a coleta nas escolas, após a autorização dos diretores, estabeleceu-se um cronograma, de modo que inicialmente foi explicado o objetivo da pesquisa e foi entregue o TCLE para pais. Após o recebimento dos TCLE assinados, foram marcados os horários da coleta. As aplicações ocorreram nos horários de aula, após a assinatura ao Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE). Para todos os participantes, os questionários foram apresentados na seguinte ordem: questionário sociodemográfico e Escala de Forças de Caráter. Estimou-se que o formulário tenha sido concluído em aproximadamente 20 minutos.
Análise de dados
Para avaliar a estrutura fatorial da escala, realizou-se uma AFC conduzida a partir do software R (R Core Team, 2022), por meio do pacote lavaan (Rosseel, 2012), com método de estimação weighted least square mean and variance adjusted (WLSMV; Asparouhov & Muthén, 2010). Para avaliação do ajuste dos modelos foram considerados os índices: χ², graus de liberdade (gl), Root Mean Squared Error of Approximation (RMSEA), Standardized Root Mean Residual (SRMR), Comparative Fit Index (CFI) e Tucker-Lewis Index (TLI). Estes são considerados adequados quando valores de RMSEA e SRMR < 0,08 e valores de CFI e TLI > 0,90, preferencialmente > 0,95 (Hu & Bentler, 1999).
Em seguida, a invariância de medida de cada um dos fatores da EFC entre adultos e adolescentes foi estimada a partir da Análise Fatorial Confirmatória Multigrupo (AFCMG). Optou-se por realizar o teste de invariância fator a fator, considerando cada um deles como um construto unidimensional, justamente por cada um destes ter uma interpretabilidade singular e por possuírem evidências de validade que sustentem.
A análise foi realizada por meio do software estatístico R (R Core Team, 2022) e foi utilizado o método de estimação WLSMV (Asparouhov & Muthén, 2010). A invariância da escala foi avaliada em três modelos: Configural (estrutura fatorial), Métrico (cargas fatoriais) e Escalar (intercepto dos itens). A avaliação da invariância é realizada de forma hierárquica, ou seja, o modelo mais complexo só é avaliado se o seu antecedente for invariante (Peixoto & Martins, 2021).
Para avaliar a invariância no modelo Configural, são considerados os mesmos critérios de índices de ajuste da AFC. Já para avaliação da invariância, nos modelos Métrico e Escalar, é considerada a variabilidade dos índices CFI, RMSEA e SRMR, sendo que pioras de ΔCFI ≤ 0,01, ΔRMSEA ≥ 0,015 e ΔSRMR ≥ 0,01 entre um modelo e o seu antecedente indicam a sua não-invariância. O ΔCFI é indicado como índice mais robusto para avaliação da invariância entre grupos (Cheung & Rensvold, 2002), porém, ΔRMSEA e ΔSRMR podem ser utilizados como índices suplementares (Chen, 2007). Em seguida, conforme já exposto, a amostra foi separada em duas subamostras, uma de adultos e outra adolescentes. A partir disto, utilizando o mesmo procedimento supracitado, foi avaliada invariância entre sexo em ambas as etapas do desenvolvimento.
Resultados
Os resultados da AFC realizada na EFC estão expostos na Tabela 2 T2a. Como é possível observar, apenas o item 3 não obteve carga fatorial satisfatória (≥ 0,30) em seu respectivo fator (FC). O item refere-se à força criatividade (Faço as coisas de jeitos diferentes).
Nota: FI = Forças Interpessoais; FC = Forças de Coragem; FT = Forças Teologais; FH = Forças de Humanidade; FA = Forças de Autorregulação e FINT = Forças Intelectuais
Os índices de ajuste obtidos na AFC da EFC foram aceitáveis (χ² = 55127,615; gl = 2399; RMSEA = 0,076; SRMR = 0,071; TLI = 0,909; CFI = 0,912). Devido ao item 3 não apresentar carga fatorial satisfatória, foi realizada uma nova CFA excluindo-o, porém não foram encontradas mudanças significativas nos índices de ajuste (χ² = 601118,791; gl = 2415; RMSEA = 0,076 (90 % IC = 0,075-0,076); SRMR = 0,071; TLI = 0,910; CFI = 0,913). Desta forma, optou-se por manter o item 3 para as análises posteriores. A respeito da consistência interna dos fatores, todos obtiveram bons índices de confiabilidade: FI (α = 0,79; ω = 0,82); FC (α = 0,84; ω = 0,86); FT (α = 0,87; ω = 0,89); FH (α = 0,75; ω = 0,78); FA (α = 0,73; ω = 0,80); FINT (α = 0,80; ω = 0,85). Os menores alfas foram encontrados nos fatores FA e FH.
Com vistas a atender ao segundo objetivo deste estudo, os resultados obtidos na análise de invariância entre adolescentes e adultos estão expostos na Tabela 3. Conforme pode ser observado, os resultados indicam, a partir de todos os índices considerados, a invariância configural, métrica e escalar dos fatores FC, FT e FINT, ou seja, estes apresentaram equivalência forte entre os grupos, de modo que adolescentes e adultos respondem de modo similar aos itens destes fatores.
No caso dos fatores FI e FH, estes apresentaram invariância configural e métrica em todos os índices, porém para o modelo Escalar o ΔCFI obtido (-0,012) excedeu o critério proposto (-0,010), enquanto o ΔRMSEA e ΔSRMR foram adequados. Mesmo sendo o ΔCFI o índice considerado mais robusto para avaliação da invariância, este ultrapassou apenas em -0,002 o critério proposto, portanto, é possível considerar que ambos os índices suplementares indicaram a invariância do modelo métrico. Sob esta perspectiva, também se pode considerar estes fatores como tendo equivalência forte entre adolescentes e adultos. Por fim, em relação ao fator FA, este não apresentou índices de ajuste aceitáveis no modelo Configural. Portanto, não pode ser considerado equivalente entre as faixas etárias em nenhum dos modelos.
Os resultados obtidos na análise de invariância por sexo na subamostra de adolescentes estão expostos na Tabela 4. Conforme pode ser observado, apenas o fator FT apresentou invariância nos três modelos (Configural, Métrico e Escalar). Os fatores FI, FH e FINT apresentaram invariância configural. Já os fatores FC e FA não apresentaram invariância. Desta forma, pode-se afirmar que apenas o fator Forças Teologais apresenta invariância forte entre homens e mulheres adolescentes.
Os resultados da análise de invariância por sexo na subamostra de adultos estão expostos na Tabela 5. Conforme pode ser observado, os fatores FC, FT, FH e FINT, apresentaram invariância nos três modelos (Configural, Métrico e Escalar), ou seja, invariância forte entre os grupos. Em contraste, os fatores FI e FA não apresentaram invariância em quaisquer modelos.
A Tabela 6 apresenta uma síntese dos resultados das análises de invariância dos seis fatores EFC. Nela estão expostos, separadamente, os modelos de invariância acatados para cada um dos fatores da escala nas três situações analisadas (entre adolescentes e adultos, entre sexos em adolescentes e entre sexos em adultos).
Discussão
O presente estudo objetivou replicar a estrutura interna da EFC proposta por Noronha e Batista (2020), visando buscar evidências de validade com base na estrutura interna. Embora o instrumento tenha outros estudos de análise da estrutura interna (Noronha & Batista, 2020; Noronha et al., 2015; Noronha & Zanon, 2018), tal como preconizado por AERA et al. (2014), novas evidências de validade devem ser pesquisadas com amostras distintas. No caso deste estudo, usou-se uma ampla amostra. Além disso, o estudo buscou avaliar se os fatores encontrados, quando considerados como escalas unidimensionais (devido à interpretabilidade de cada um deles e as reiteradas evidências de validade), se demonstravam invariantes entre adolescentes e adultos e entre os sexos destes grupos.
Em relação aos achados da análise da estrutura interna, os índices foram aceitáveis, replicando, portanto, o estudo de Noronha e Batista (2020). Os índices de ajuste ficaram dentro dos parâmetros mínimos sugeridos por Hu e Bentler (1999), sendo que todos os itens, exceto o 3, tiveram carga > 0,30 em seus respectivos fatores. Além disso, todos os fatores do instrumento apresentaram boa consistência interna (Cronbach, 1951). Tais resultados estão em concordância com outros estudos (Littman-Ovadia & Lavy, 2012; McGrath, 2014; Neto et al., 2014; Ng et al., 2016; Noronha & Batista, 2020; Noronha et al., 2015; Noronha & Zanon, 2018; Solano & Cosentino, 2018) que indicam uma distribuição das forças pessoais divergente do modelo teórico proposto por Peterson e Seligman (2004).
Tratando da análise de invariância do instrumento, primeiramente cabe ressaltar a importância deste tipo de procedimento antes de se realizar comparações entre os grupos. Conforme abordado, a literatura aponta divergências entre quais forças pessoais tem maiores e menores médias entre homens e mulheres e entre adolescentes e adultos (Heintz et al., 2019; Heintz & Ruch, 2022). Porém, as diferenças encontradas, podem não refletir diferenças reais nas forças entre os grupos e sim serem decorrentes de erros ou vieses de medida do instrumento. Instrumentos com medidas errôneas ou enviesadas, podem não apenas apontar para diferenças inexistentes, como podem também podem encobrir diferenças existentes entre os grupos. Justamente por ser capaz de trazer luz a esta questão, a avaliação da invariância do instrumento se faz extremamente relevante (Chen, 2008).
No presente estudo realizamos a análise de invariância nos modelos Configural, Métrico e Escalar. A título de compreensão, o modelo Configural avalia se a estrutura do instrumento, ou seja, sua configuração é adequada para ambos os grupos analisados. Quando a invariância não é acatada neste modelo, isto significa que os itens carregam em diferentes fatores para cada grupo. O modelo Métrico avalia se as cargas fatoriais dos itens são estatisticamente iguais para ambos os grupos. Quando este não é acatado, significa que os itens não têm a mesma importância para o instrumento em ambos os grupos, o que indica viés nas respostas aos itens por um dos grupos, portanto qualquer comparação de média estará enviesada. Por fim, o modelo Escalar avalia se o nível de traço latente para responder determinado item, é equivalente entre os grupos. Quando este não é acatado, significa que um dos grupos pode endossar mais facilmente um item do que o outro (Damásio, 2013; Milfont & Fischer, 2010).
Desta forma, conforme a descrição dos modelos, fica evidente que estudos comparativos entre sexos, diferentes faixas etárias e diferentes nacionalidades são capazes de refletir diferenças ou similaridades reais entre os grupos, se o instrumento utilizado for equivalente entre os grupos. Afinal, a invariância acatada no modelo Configural, diz respeito à configuração correta dos itens no modelo e a invariância no modelo métrico, somente indica que as cargas fatoriais são estatisticamente equivalentes, enquanto a invariância no modelo Escalar, indica que os itens realmente avaliam de maneira equivalente o traço latente dos sujeitos pertencentes a ambos os grupos. Portanto, apesar da relevância de cada modelo avaliado, comparações diretas entre os grupos e não enviesadas por erro de medida só são possíveis quando os três níveis de invariância são acatados (Fischer & Karl, 2019; Milfont & Fischer, 2010).
No presente estudo, a equivalência escalar da EFC foi acatada entre adolescentes e adultos nos fatores FI, FC, FT, FH e FINT, entre homens e mulheres adolescentes no fator FT e entre homens e mulheres adultos nos fatores FC, FT, FH e FINT. Conforme explicitado, estes resultados sugerem que comparações de média nas forças pessoais entre os grupos, são possíveis naquelas pertencentes a estes fatores supracitados (e.g. humor entre adolescentes e adultos; espiritualidade entre homens e mulheres adolescentes; sensatez entre homens e mulheres adultos). Desta forma, pode-se afirmar que comparações entre forças de caráter pertencentes aos fatores que não acataram invariância escalar entre os grupos avaliados, não são possíveis, pois não irão refletir diferenças ou similaridades reais, mas sim erros e vieses do instrumento de medida (Damásio, 2013; Fischer & Karl, 2019; Peixoto & Martins, 2021).
É relevante destacar que o fator FA não obteve sequer invariância configural em nenhum dos pares de grupos testados. Ao investigar cuidadosamente os resultados do modelo, foi observado que alguns funcionaram de forma diferente entre os grupos. No caso da comparação entre adolescentes e adultos o item 60 (“Sou uma pessoa cuidadosa”) obteve carga fatorial < 0,30 para ambos. Já os itens 18 (“Sempre tenho muita energia”) e 53 (“Eu me sinto cheio(a) de vida”) obtiveram cargas maiores para os adultos do que para os adolescentes; isso pode indicar que, talvez, para alguns adolescentes estes itens não estejam diretamente relacionados aos demais itens de autorregulação e sim a outras características de sua personalidade. No caso da comparação entre os sexos em adolescentes, os itens 18, 60 e 38 (“Mantenho a calma mesmo em situações difíceis”) carregaram adequadamente no fator apenas para o grupo do sexo feminino. Estudos anteriores demonstraram que meninas adolescentes costumam pontuar mais alto autorregulação do que meninos (Coyne et al., 2015; Sanchis-Sanchis et al., 2020; Tetering et al., 2020), portanto, é possível que a não invariância configural entre os grupos decorra desta diferença. Já para a comparação entre os sexos em adultos, o item 60 teve carga fatorial muito baixa para o grupo do sexo masculino (0,167) e o item 38 teve carga mais alta para mulheres do que para homens. Ambos os itens envolvem questões relacionadas a calma/cuidado e, como aponta a literatura, mulheres tendem a relatar mais estratégias de autorregulação do que homens (Nolen-Hoeksema, 2012), o que pode justificar a ausência de invariância deste fator entre os grupos.
O fator FC também não foi invariante sequer no nível configural entre os grupos de adolescentes. Uma observação das cargas fatoriais indicou que os itens 3 (“Faço as coisas de jeitos diferentes”), 6 (“Faço bons julgamentos, mesmo em situações difíceis”), 7 (“Penso em diferentes possibilidades quando tomo uma decisão”), 29 (“Penso muito antes de tomar uma decisão”) e 36 (“Analiso o que as pessoas dizem antes de dar minha opinião”) obtiveram carga < 0,30 para o grupo de adolescentes do sexo masculino. Diferentemente de itens como o 35 (“Enfrento perigos para fazer o bem”) que refletem mais diretamente uma coragem com teor positivo, o conteúdo destes itens envolve algo mais próximo de pensar/refletir antes de agir. Desta forma, é possível que para o grupo de adolescentes do sexo masculino estes itens estejam captando outro tipo de conteúdo como, por exemplo, controle de impulsividade (Weinstein & Dannon, 2015).
Por fim, o fator FI não apresentou invariância configural entre os sexos para adultos. O item 10 (“Não minto para agradar as pessoas”) obteve carga fatorial < 0,30 para homens (0,222), mas também não obteve uma carga muito elevada para mulheres (0,317). Por ser um item positivo (no sentido do traço latente), mas que contém a palavra “não” a interpretação do significado da sentença pelos participantes pode ter sido dificultada o que pode ter penalizado o ajuste do modelo Configural e resultado na não invariância do fator. Porém, o item 33 (“Sou uma pessoa verdadeira”) também apresentou maior carga para as mulheres do que para os homens, o que pode indicar que, de fato, pode haver uma diferença no funcionamento do conteúdo dos itens entre os sexos em adultos para além da questão apontada para o item 10.
Considerações finais
A estrutura encontrada por Noronha e Batista (2020) para a EFC foi replicada no presente estudo. Isto traz um novo indicativo de que esta forma de distribuição das forças pessoais tem sustentação empírica. Apesar de o item 3 não causar grande prejuízo ao ajuste do modelo, talvez sua reformulação pudesse ser considerada, devido à baixa carga fatorial. Em especial, o item refere-se à criatividade (“Faço as coisas de jeitos diferentes”) e é possível que o significado de fazer coisas diferentes tenha variadas interpretações, o que pode ter impactado nos resultados. É ímpar que novos estudos sejam conduzidos, dentre os quais, aplicações adicionais de estudos pilotos.
A respeito da invariância dos fatores, os resultados indicaram apenas o fator FT como tendo invariância escalar em todos as comparações de grupos, porém, ao menos em uma das comparações de grupo, os outros fatores demonstraram invariância completa, exceto o fator FA, que foi não-invariante em todas as comparações de grupo. Isto pode ser um indicativo para a revisão prioritária dos itens que o compõem. O fator FC e o fator FI também merecem atenção em uma futura revisão do instrumento, já que o primeiro não funcionou de forma equivalente em nenhum nível entre os agrupamentos por sexo em adolescentes e ocorreu o mesmo com o segundo em adultos.
Como limitação do presente estudo, pode-se indicar que devido ao número de itens dispostos para cada força de caráter ser menor que quatro, não foi possível avaliar a invariância destas, uma a uma, a partir da AFCMG (Czerwiński & Atroszko, 2023). Recomenda-se que futuros estudos utilizem métodos capazes de avaliar a invariância de cada uma das forças isoladamente.